Volume 2
Capitulo 50: Infindo.
[Sábado 17 de setembro de 2412, 00:22 da noite]
Marcelo Merial Dias.
As luzes vermelhas começaram a piscar mais e mais, o som do alarme ficou fraco até ser silenciado e a constante água que caía sobre nós se reduziu para se tornar uma leve garoa. Tudo dentro do plano D. O plano A consistia em enfrentar Ciro e possíveis reforços em um ambiente onde ele estivesse em desvantagem, uma parte pequena do plano A também tinha como meta dar um jeito nos estrangeiros, a forma como as coisas desandaram fez com que o plano D se tornasse a melhor opção. A atmosfera ainda está úmida, isso vai debilitar as técnicas de Ciro o suficiente, quanto a sua companheira…
Movi meus olhos para Lady, algumas partes de sua armadura ainda brilhavam pelo calor causado por Ciro, mas sua postura e aura me dizia que ela estava pronta para a luta que iria acontecer. Minha obra primária pode lidar com muitas situações, espero que as habilidades dela se limitem em ampliação física… um dos conselhos que Glória havia me dado durante uma de nossas sessões de treino foi utilizar minha obra primária através das complementares, algo que entendo melhor agora. No Brasil, escolhemos uma obra para nos dedicar a vida inteira, qualquer outra obra que possuímos serve apenas como complemento para a obra primária, isso também se aplica às disciplinas.
Estômago da Fera Abissal.
Comecei a ampliar minha obra primária, à infundindo com minhas três obras complementares para que ganhassem suas características, o Estômago me permite “digerir” os feitiços lançados sobre mim em partes para depois “devorá-las”. Uma parte importante de escolher a obra primária é escolher as outras duas obras que a irão complementar, o ideal é possuir apenas duas obras complementares para que a memória não se sobrecarregue, mas isso tende a variar de pessoa para pessoa com o máximo sendo de três obras complementares, passando disso, na minha opinião, é exagero. Imbuindo a fissão de Cetim da mesma forma que fiz com o Rio Fugaz ao dispersar as chamas de Ciro, os fios teriam um poder de corte mais eficiente.
Mergulhei mentalmente com Caelum relaxando meu cérebro fazendo o tempo passar devagar, vendo as informações retidas pelo Estômago sobre a energia dos meus oponentes para poder digeri-las. O fogo de Ciro tinha em seu princípio o consumo, sendo simples, a chama consome tudo que toca com Ciro podendo decidir o que, porém, as chamas parecem armazenar o que consome no próprio Ciro o que faz com que eu visualize o fogo como a boca e o Ciro como um reservatório, tudo que ele queima é transformado em energia potencial. Isso pode explicar essa mudança radical na aparência como sendo uma mutação causada pelo consumo da maldição do Vincent, o que explica o porquê de sua presença possuir traços da energia dele.
O que o fogo consome o fortalece mesmo que seja algo nocivo a ele.
Me posicionei virando para Ciro, em uma conversa anterior, eu, Hana e Armando decidimos que eu o enfrentaria em caso de visitantes inesperados por causa da característica de adaptação do Estômago da Fera Abissal. Inflamei meu foco fazendo uma última alteração nas minhas obras complementares antes de partir para o ataque, em suma eu possuía três obras complementares: o Metalúrgico Obstinado, a Fissão de Cetim e o Rio Fugaz, elas reservavam partes da minha memória para se manterem e crescerem para suplementar o Estômago. Havia uma quarta obra complementar que não tinha espaço para crescer e nem mesmo motivo, a Velação, que me permitia acelerar a cicatrização, serviria de alimento para os demais feitiços.
Pasce, Effusio Quod Mortuus Est.
Rompi o adorno que guardava a energia íntima da Velação, toda a evolução e observações que fiz durante meu uso dela fez com que a energia que a formava amadurece-se, deixei que o Rio Fugaz se alimenta-se dessa energia. O adorno da Velação desapareceu de meu corpo com sua energia se movendo até o adorno do Rio Fugaz, sacrificar uma obra em prol do crescimento de outra faz com que a características da obra sacrificada se liguem a obra que será ascendida, o Rio Fugaz é puramente focado na movimentação através dos canais e absorver o dom curativo da Velação ira permitir que eu possa “cicatrizar” os canais de energia, caso rompidos. Abrasei ainda mais meu foco, ampliando a escala fluida enquanto visualizava os canais de energia, os movendo em direção a Ciro e Lady.
Vamos lá.
Mergulhando Hana, Armando e a mim nos canais, novamente, senti que eles estavam no limite, mas dessa vez, eu pude ver a própria energia enfeitiçada suturando os caminhos onde eles pareciam frágeis. Mentalmente me convenci que Hana e Armando ficariam bem, ainda assim, pedi para que Moll os auxiliassem em sua luta, Ciro podia ser forte, em contrapartida, Lady poderia ter um alguma carta na manga ou uma força que superasse todos nós, nessa situação onde suas habilidade são um mistério para nós, ela é um risco maior que Ciro até que se prove o contrário. Desaguei atrás de Ciro segurando Ukri com ambas as mãos prestes a mover a lâmina em direção ao seu pescoço, vi de relance Hana, Armando e Moll barrando o caminho de Lady que estava vindo em nossa direção.
Se cuidem…
O bastão com pontas flamejantes girou antes de Ciro se inclinar para frente, se esquivando do corte, ele girou o corpo movendo seu bastão com velocidade antes de se posturar e avançar contra mim. As armas se encontraram em meio a giros, o som do fogo de Ciro parecia um urro quanto mais rápido ele movia o bastão, as duas pontas criavam uma miragem de um anel de fogo que as conectavam em meio ao giro da arma, foquei em meus pés, usando ao máximo minha agilidade e calculando cada pequeno movimento da parte inferior e superior do corpo. Os movimentos erráticos de Ciro eram um incômodo que eu já estava me habituando, mesmo que de forma muito complicada, havia um padrão em seus ataques.
Golpe pesado.
Reiniciando a observação, seu primeiro padrão era composto por golpes pesados com o bastão, o fogo complementava seus ataques com faíscas sendo vomitadas em minha direção pela ponta do bastão. Aumentando a emissão de energia pelos meus anéis, me cobri com uma aura de foco invisível destilado que abraçava minha pele perfeitamente como um cobertor confortável, usando a força dos golpes de Ciro, alivie a pressão sobre meus pés, permitindo que seus golpes me empurrassem para trás, utilizando a força de seus ataques para girar Ukri e reaproveitando a energia cinética para atacar e defender. Era como dançar com um Ogro, os segundos se passaram antes que uma brecha surgisse em um de seus ataques.
Armadilha.
Ignorei sua brecha me preparando para o próximo ciclo de seu estilo de luta, sua brecha era uma finta para me atrair, ele pareceu notar que eu notei, dando um último golpe pesado que me fez escorregar metros pra trás. O som do seu fogo era um dos poucos sons que restavam além dos ruídos distantes da batalha de Hana, encarei sua feição deformada, seu tronco com cortes de diferentes tamanhos que fiz em nossa dança, em meio a sangue vermelho que descia por suas feridas, sua carne tinha um brilho laranja como se estivesse fervendo e fumaça escura saia junto ao sangue. O ar úmido ficou escuro, as luzes vermelhas estavam mais fracas deixando a atmosfera com um tom magenta enquanto as gotas de água caíam.
— Quer que eu faça uma fonte de luz? — ele perguntou.
Fui incapaz de segurar o canto dos meus lábios.
— Faça o que quiser, pouco terá diferença no resultado.
— Perfeito… continuemos então.
Ele girou o bastão, o fogo das pontas brilhou intensamente e seu som agora se assemelhava a um rugido, três esferas de fogo do tamanho de olhos se ramificaram das pontas e começaram a orbita-lo. As esferas avançaram em minha direção com Ciro logo atrás, aproveitei o tamanho de Ukri para interceptar a primeira esfera com o fio da lâmina, deixando que a energia enfeitiçada pelo Estômago da Fera devora-se o fogo, porém, o que não previ foi a explosão que eclodiu do olho flamejante, o calor devorou a aura sobre minha pele, e o coice veio logo em seguida, me empurrando para trás. Ainda zonzo, girei meu corpo para cair de joelhos e manobrei Ukri o usando para rebater a segunda esfera com a parte plana da lâmina para esquerda.
Explodem apenas quando danificadas, já vi algo semelhante.
A segunda esfera saiu de sua rota, mas a mantive no meu campo de visão logo antes de rebater a terceira esfera para direita, colocando a haste na frente do corpo. Ciro saiu da nuvem de vapor criada pela explosão, a ponta flamejante do bastão bateu contra haste de Ukri a trincando me prendendo de costas ao chão, pude sentir as esferas se aproximando pelas laterais vindo em minha direção, encarei o rosto de Ciro, o sorriso em sua feição parecia ansioso e seus olhos devorando os meus cheios de expectativa. A força da explosão foi reduzida porque a energia enfeitiçada dentro da lâmina de Ukri devorou uma grande quantidade de potencial do feitiço, posso replicar isso com um território… mas seria o suficiente?
Meu aperto sobre Ukri aumentou, muitas ideias se formando em minha cabeça, mas todas tinham uma falha que me deixaria exposto à explosão. O calor devoraria os canais do Rio Fugaz me deixando vulnerável às chamas e Ciro, matutei internamente antes de chegar a uma conclusão. Ele estava colocando mais força e a rachadura na haste de Ukri parecia deixar seu sorriso ainda maior, havia menos de dois segundos para fazer algo, minha relíquia danificada emitia sinais de dor que eu sentia em meu corpo, o calor da presença de Ciro junto ao vapor que ele liberava estava corroendo a nova aura sobre minha pele. Eu realmente queria esperar mais antes de romper o último Frame.
Estamos sem saída, Ukri, peço desculpas por colocar essa responsabilidade em você.
A haste se partiu, a ponta flamejante do bastão de Ciro começou a avançar em direção ao meu peito, as esferas estavam a menos de um metro, mas tudo estava passando em câmera lenta em minha cabeça. Ninguém sabe o que são as relíquias, apenas que são mais que meras ferramentas enfeitiçadas, recebemos nossas relíquias após a iniciação, ou melhor dizendo: as encontramos em meio a iniciação, elas nos escolhem e evoluem conosco, a evolução é dividida em quatro Molduras, sua evolução para o próximo Moldura significa crescimento. Eu queria poupar a mim e Ukri de ser dono de tamanha força e mostrá-la apenas para meus amados… necessidades sempre irão vencer o capricho.
Liberação Máxima: Lágrima da Fissão Sinuosa.
Ao invés de me concentrar em uma única obra, fiz com que três se reunissem em Ukri, canalizando o Rio Fugaz e a Fissão de Cetim em minha obra primária, unindo todas em uma única liberação. Usando uma pequena parte da minha concentração, canalizei energia embebida com a obra do Metalúrgico pelo chão enquanto focava todo o restante da minha atenção na Liberação Máxima, meu cérebro estava beirando o limite antes que Veritas passeasse pelo meu corpo e alivia-se a fadiga e pressão interna, a realidade se espaguetificou indo em direção liberação em meu peito que assumiu a forma de uma esfera translúcida feita de fios. Os olhos flamejantes foram devorados pela liberação junto a ponta do bastão de Ciro.
A esfera translúcida emitia uma brisa suave e um som baixo semelhante ao dos ventos, sem brilho ou luzes fortes, apenas energia enfeitiçada assumindo uma forma que corresponde às três naturezas que a compõem. O Estômago da Fera Abissal seria o equivalente de um ponto de ligação para as duas obras complementares, a capacidade de “cortar” da Fissão de Cetim única a manipulação espacial do Rio Fugaz fundidas com a capacidade de inutilizar a energia do adversário. A esfera começou a se mover parecendo rápida e lenta ao mesmo tempo, deixando apenas uma névoa de energia cinza para trás que a seguia como uma cauda.
Avance.
Os olhos da entidade encontraram os meus, sua feição estando presa em um estado catatonico de surpresa, movendo meu braço esquerdo empunhando uma das partes de Ukri, a enfiei na lateral de seu pescoço entre suas escamas. Antes que o sangue fervente caísse sobre mim, ele também foi devorado pela esfera, a mesma avançou em direção a Ciro o tirando de cima de mim e entrando em seu estômago antes de sair pelas costas, minha emissão de energia estava em seu auge, a raízes que moviam energia em meu interior aperfeiçoadas e minhas obras estavam em perfeita sintonia. Comecei a me levantar, usando as duas partes de Ukri para me sustentar antes de unir suas duas partes para que ele se recuperasse.
A madeira começou a se reconectar, cicatrizando com a haste encolhendo de tamanho e formando um cabo adornado com aço opaco, uma guarda de mão se curvava sobre o cabo com quatro segmentos que lembravam uma garra e sua lâmina se alongou. A lâmina ficou longa como uma cimitarra, a cor dourada opaco com escritas rúnicas e sigilos dispostos uniformemente sobre o metal a embelezavam com uma marca escura sinuosa à dividido na horizontal como uma cicatriz, a guarda que lembrava quatro garras curvas eram de bronze com os ornamentos de metal no cabo de madeira sendo da mesma cor. Quebrar uma relíquia é um feito e tanto, mas de qualquer forma, todo dano causado é regenerado de forma natural, com isso deixando a relíquia mais forte.
Minha Liberação Máxima continuou avançando após atravessar Ciro antes de simplesmente se desfazer em particulas de energia cinza, tão silenciosa quanto a sua formação, está incompleta, mas serviu a um propósito. Direcionei minha atenção para Ciro, ele estava a poucos metros estirado no chão, segurando seu bastão sem uma das pontas flamejantes com a única restante coberta por fogo baixo, por um breve momento, desejei com todas as forças que ele estivesse morto, porém, ele começou a se levantar se apoiando no bastão. As escamas sobre seu dorso estavam mais protuberantes, o buraco em sua barriga começou a ser fechado por tentáculos vermelhos semelhantes a raízes.
Se adapte.
Seus pés começaram a se mover quando o buraco em sua barriga estava quase completamente fechado pelas raízes de carne, os chifres retorcidos na lateral de sua cabeça aumentaram com algumas protusões rasgando a carne para sair. Notei seu braço que seu braço esquerdo também tinha sido arrancado pela Lágrima Sinuosa, mais das raízes vermelhas saiam do coto com sangue gotejando no chão, mesmo comigo sabendo que Ciro era forte, isso chega a ser completamente fora do padrão, a forma como sua regeneração sustenta o corpo é… desumano. As Relíquias são capazes de atingir coisas que normalmente seriam intangíveis, como a própria energia ou a alma, um espírito que é “morto” por uma Relíquia pode ter dois finais.
Misericórdia ou Impiedade.
Retive meus pensamentos vendo que já estava desviando minha atenção, Ciro é mais que um espírito, isso faz com que o conceito de exorcizar seja inútil já que ele está forçando seu corpo a se manter vivo e não apenas habitando uma casca, teoricamente vivo. As deformações no corpo de Ciro começaram a se alastrar para outras partes, mais raízes retorcidas rasgavam sua carne para sair em suas costas, peito, braços e pernas, mesmo com a aparência mutilada e com uma poça de sangue se formando abaixo dos seus pés, turvando a água no chão com vermelho, ele deu um passo de cada vez em minha direção. Retive minha pena, retive minha compaixão e empatia, as coisas estão assim por um motivo e me recuso a ser taxado de insensível por fazer o que preciso fazer.
A culpa é sua.
Acompanhei seus movimentos antes de seguir em seu encontro, ter utilizado uma liberação total imperfeita cobrou muito das minhas reservas, comecei a destilar energia, unindo Sine e Fie para formar Foco, com a purificação aliviando um pouco do meu cansaço. Inflamei meus músculos, depois que ele estiver morto, depois que isso tiver acabado, apenas terei que deixar o relatório com Armando e dormir no colo de Hana antes de voltar para casa, só preciso sobreviver, só preciso pedir desculpas a Samuel e Glória, só preciso voltar pra casa. Veritas correu por meu corpo, o sentimento que vinha da visualização de estar com Glória, Samuel, Hana e todos os outros ao redor da mesa na sala de jantar fazia com que meu corpo exausto parecesse anestesiado.
Eu preciso vencer.
Ciro disparou no mesmo momento que eu, a lâmina sinuosa restante na ponta do bastão se alongou com fogo fátuo a cobrindo, firmei meus pés e girei meu corpo movendo a espada em direção ao seu ataque. Nossos golpes se encontravam com gritos ecoando do metal e se dispersando por todo shopping, suprimindo qualquer outro som, faíscas rosas voavam entre nós, a beleza de nossos estilos de combate se misturando em uma dança com a água sob nossos pés se agitando com a velocidade dos movimentos. Talvez a adrenalina, talvez a anestesia causada pela cura da Veritas ou talvez apenas o sentimento de que o final estava perto, meus movimentos ficaram mais rápidos a cada vez que nossas lâminas se encontravam.
Mesmo com apenas uma mão para manejar a arma, Ciro, no início, estava conseguindo acompanhar meus golpes, mas isso mudou quando as memórias das aulas de esgrima que tive com Glória e Hana entravam em minha cabeça. Usando energia apenas para sustentar a Malha de Escala Fluida pelo interior do meu corpo e da lâmina de Ukri, fazendo a energia ciclar e me limitando em melhorar meu desempenho e resistência, Ciro tinha inúmero cortes causados por Ukri com raízes vermelhas saindo junto ao sangue deles. Girando Ukri ao mesmo tempo que girava meu corpo, Ciro, tinha seu braço armado para cima prestes a descer sua lâmina contra minha, observei além do golpe a vista, vendo as raízes vermelhas que saiam do seu coto esquerdo formando um espigão retorcido.
Lampejo.
Usando o máximo da minha manipulação de Foco puro, fiz com que a explosão interna ocorresse em meu corpo e espírito, me joguei dentro do ataque do Reencarnado trazendo Ukri para mais perto do meu corpo. Refletindo com a espada o ataque do seu espigão de raízes vermelhas que vinha em direção as minhas costelas, eu estava próximo o suficiente para sentir o calor que seu corpo emanava e ao mesmo tempo; para reconhecer que a emissão de energia de Ciro estava infinitamente inferior ao que era na sua chegada, seja o que for que o mantém de pé… eu colocarei prova. Tirando meus pés do chão com um impulso para trás, me foquei na única obra que poderia usar, visualizando a corrente de comando que levava ao chão onde energia enfeitiçada aguardava para ser moldada.
Jardim da Mata Gótica.
Os pisos racharam quando espigões de aço romperam o chão na forma de galhos retorcidos que saíram aos montes dentro de uma área circular, caindo no único lugar onde galhos de aço se mantiveram distantes. Esperei muito, em vários sentidos, desde a hora certa para ativar a obra até esse momento em questão. As pernas de Ciro estavam empaladas desde os pés até as coxas com os galhos de metal entrando e saindo de sua carne para prendê-lo onde estava, seus suspiros de dor eram falhos, o som agudo do ar sendo puxado pela boca e liberado pelo nariz, mas uma sequência de risos moribundos cortaram a respiração. Visualizei o metal entrando mais fundo em sua carne, serpenteando em seu interior e o puxando para ficar de joelho no chão.
Manipulando a obra, fiz com que os galhos retorcidos entre mim e Ciro se abrissem para minha passagem, o metal me obedeceu liberando um som agudo enquanto se dobrava, a visão das pernas de Ciro era de carne rasgada de dentro para fora por galhos de metal e raízes vermelhas. Um passo de cada vez em direção a Entidade, a cada passo, um enorme peso saia das minhas costas, como se cada ano de desespero, ódio, dor tivessem valido de algo além dos erros que cometi, a umidade na atmosfera ficou mais densa, as particulas de agua descendo do teto como garoa, a luz vermelha das lâmpadas de emergência brilhando sobre os galhos de metal cinza ao meu redor deixando a cor magenta do ambiente mais escura e intensa, vermelha como o sangue. Oito anos, onze meses e treze dias, perdi a conta das horas, o que importa é que…
— Eu te peguei filho da puta.
Os olhos de Ciro subiram para encontrar os meus, a cor laranja da íris perfurando a atmosfera vermelha com as rachaduras ao redor dos seus olhos pulsando em laranja no ritmo da batida de um coração. Tudo que senti foi alívio, a paz que eu já havia alcançado se solidificou ainda mais dentro de mim, ergui meu braço, meus anéis vibrando junto a energia de Ukri, no final de tudo, sua morte vai valer de algo, é difícil pensar assim, mas… graças a você e posso dizer que sou a melhor versão de mim, queria que… Você está aqui, Vincent, olhe para mim enquanto dou um fim nele, olhe para mim enquanto eu andar, dormir e caçar, olhe para mim… pois vou dar meu máximo para orgulhar você e os que ainda estão aqui.
— Mors, Ode Larai… Impiedade — recitei empalando o peito de Ciro com a lâmina de Ukri.
Sua boca entreaberta liberou sangue pelos cantos, seu corpo deformado parou de emitir energia e o calor que antes ele emanava diminuiu até ser quase imperceptível, seus olhos estavam fixos nos meus quando um sorriso apareceu em seus lábios. Antes que eu pudesse me recompor, o presságio me alarmou, coloquei o máximo das forças que me restou nas pernas para me impulsionar para trás, usei toda minha agilidade para me afastar do senso de perigo que se aproximava pela esquerda, um estrondo ocorreu em frente a Ciro com o som de correntes vindo logo em seguida. A cabeça do mangual de Lady estava onde eu deveria estar a poucos segundos, seguir a corrente com os olhos antes que a cabeça do mangual fosse puxada.
— A morte deste maldito Verme… pertence… somente a mim! — Lady rugiu se esquivando dos ataques de Moll enquanto Hana e Armando a cercavam.
A armadura de Lady estava danificada com rachaduras, seu elmo tendo uma fenda que permitia ver um pouco do maxilar mesmo na atmosfera escurecida. Mal tive tempo para reagir quando a corrente do mangual dobrou de tamanho e circundou ao seu redor em um ataque em área, a cabeça do mangual foi em direção a Moll que mergulhou nas sombras para evitá-lo, a corrente se abriu dobrando de tamanho a cada metro para alcançar uma enorme área circular, Hana e Armando desviaram enquanto vinham em minha direção, fiz o mesmo abaixando meu corpo para passar por debaixo da corrente. O estrondo atrás de mim foi alto com o arrepio que veio quando ela puxou a corrente novamente me ajudando a saltar sobre a mesma quando avançou para sua mestra.
Hana e Armando tinham ferimentos visíveis, com Armando estando com seu braço direito mole ao lado do corpo e sangue escorrendo pelos dedos, Moll saiu das sombras entre nós com alguns ferimentos visíveis também. Lady estava suspirando tão pesado que parecia uma besta, sangue escorria pela fenda do seu elmo e diversos outros pontos onde sua armadura estava danificada, mesmo assim, ela se posturo erguendo o braço armado, mas parou antes de concluir o movimento, o ar começou a vibrar com o calor repentino que apareceu, a presença de Ciro retornou mais forte com ondas de calor para acompanhá-la. Fixei meus olhos na Entidade Moribunda, as raízes vermelhas que saiam do seu corpo brilhava como ferro quente e sua carne aos poucos se tornava uma crosta escura com rachaduras pulsando em laranja vivo.
— Foi uma ótima última luta… espero poder encontrá-lo novamente em nossa próxima vida… no fim, minha morte é apenas minha.
Cada instinto ansiava pela fuga, alcancei o Rio Fugaz, mesmo que exaurido, eu poderia contornar isso usando todas as minhas reservas para tirar eu, Hana e Armando do alcance da liberação de Ciro. Pedi que Moll retornasse, mas ele avançou em direção a Lady que estava indo em direção a Ciro, seus pensamentos em completo êxtase e excitação, qualquer tentativa de pará-lo custaria uma quantidade de energia e esforço que já estavam sendo depositados em outra tarefa, me concentrei no Rio Fugaz visualizando três caminhos que levavam para fora do shopping e os fortalecendo o máximo que podia. Alcancei Hana e Armando os mergulhando primeiro, antes de mergulhar, olhei uma última vez para Ciro que emanava tanto calor que distorcia a atmosfera ao redor.
Nós vamos sobreviver.