Volume 2
Capítulo 48: Grande Ato
[Sábado 17 de setembro de 2412, 23:58 da noite]
Ciro Khan Al-Abadi.
Meu corpo estava inerte, a sensação de água caindo sobre mim constantemente fazia meu calor interno fraquejar, um dos meus olhos estava destruído e o único que me restou estava pendurado pelo nervo óptico. O cenário havia mudado de um segundo a outro quando meu último ataque alcançou Marcelo, as luzes do ambiente ficaram vermelha e algumas piscavam, aparelhos no teto liberavam água constantemente, um alarme irritante estava soando. Mesmo com meu olho pendurado fora da órbita, ainda tinha uma linha de visão para Marcelo e o que vi era humilhante.
Como?! COMO?!
Minhas chamas se apagaram, a fumaça subindo de suas roupas se extinguiram para revelá-lo ainda vivo e sem nenhum ferimento maior fora a mutilação que fiz no lado direito de seu rosto e algumas queimaduras. Seus olhos passaram por mim, a indiferença fazendo meu estômago se embrulhar, sua atenção foi para uma mulher carregando sua lança, ela se aproximou o abraçando fincando a lança no chão com um rapaz loiro poucos passos atrás de ambos. O jovem me encarava com raiva escrita nas feições, uma marca dourada brilhando em seus olhos, esses dois, eu lembro do nosso encontro a uma semana após enfrentar Marcelo.
Pouco importa, nada disso importa, venham até mim… me enfrentem!
A cada segundo que os três apenas ficavam parados com Marcelo e a mulher se abraçando, mais a raiva me tomava e mais impotente me sentia, mesmo tentando muito, meu corpo se recusava a obedecer. Venham até mim… VENHAM ATÉ MIM DESGRAÇADOS! Uma presença familiar começou a se aproximar enquanto tentava esboçar qualquer coisa que os fizessem se lembrar de que eu estava aqui, inúmeras presenças nos rodeavam, todas com um toque similar na frequência e todos pareciam me ignorar. Olhei como Marcelo recebia a lança da mulher, seus olhos fixos nos novos visitantes sem nem mesmo ligar para mim antes de se mover.
Não me ignorem! Me ataquem! ME MATEM, MAS ME RECONHEÇAM… EU ESTOU AQUI!
O som da batalha que se iniciou era como uma adaga de humilhação sendo alojada em meus ouvidos, a presença de todos estavam se afastando para atrás da pilastra onde fui arremessado, energia vestigial começou encher a atmosfera. Por favor… me deixe provar… me deixe lutar. Meu corpo se recusava a responder e cada vez mais minha visão, audição e todos os demais sentidos se escureceram até a escuridão me prender em seu interior oco. No vazio, a única coisa que me confortava era a dor, ela me lembrava que estava vivo, me lembrava que eu ainda poderia fazer algo.
— Continua carente como sempre, as vezes gostaria de tê-lo o orientado melhor, Labareda, mas aqui estou eu, vendo aquele que poderia ter me substituído decaindo cada vez mais. — A voz carregava com sigo o peso de uma sabedoria profunda, a ignorei taxando sua presença apenas como uma alucinação.
Você está morta, permaneça assim.
— Morta? Alucinação? Quando foi que se tornou um covarde, Labareda? Se lembra do que te ensinei? Lembra-se do que aprendeu em meus templos? A força é relativa aos indivíduos que a possuem, quando foi que perdeu a sua?
Cala boca, cala boca, cala boca…
— Você poderia ter sido muito mais… que pena… uma enorme pena.
Meu espírito borbulhou ao ouvir suas últimas palavras, tantos séculos que passei lutando para construir minha força e aprimorar minhas habilidades para ser menosprezado pelo fantasma de uma maldita velha pacifista. A escuridão se derreteu com solo de barro escuro se formando sob meus joelhos, grama e árvores se erguendo em meu entorno, os trocos se retorcendo para dar as árvores uma aparência gótica, névoa bailava rasteira ao chão enquanto partículas cinzas caiam sobre mim. Tentei me levantar, mas meu espírito estava preso de joelhos ao chão.
— Parece que suas forças acabaram, durou bastante, mas agora está na hora de um pequeno acerto de contas… lembra-se de mim? — Uma voz masculina veio de trás, mas um galho retorcido que parecia estar saindo do meu ombro cobria minha visão periférica, dedos se fecharam sobre meu cabelo puxando minha cabeça para cima enquanto o sujeito entrava em minha linha de visão.
Um olho verde com marcas douradas brilhou por de trás de um óculos, um rosto gentil que transbordava excelência tinha toques femininos, mas era impossível confundir mesmo que estivesse longe. Você… O canto dos lábios do homem se contraiu minimamente e ele soltou meu cabelo, ele se virou de costa para mim e deu alguns passos antes de para e se virar para mim de novo, o corpo esguio tinha ombros bem demarcados por um sobretudo cinzento com gola alta coberto de padrões geométricos minúsculos. Abaixo do sobretudo fechado, um suéter escuro com bordados era visível já que ia até a base do pescoço.
Você… Vincent.
O cabelo vermelho caía em uma franja sobre seu olho esquerdo e a lente do óculos, os fios vermelhos emolduravam seu belo rosto com o volume excedente indo um pouco abaixo das orelhas. Em minhas memórias no dia que o matei, ele parecia ser muito mais frágil, mas agora… havia uma superioridade que estava longe de seu corpo esguio, estava no semblante que preenchia o ar, tão denso e pesado que era difícil olhar para qualquer outro lugar longe de seus pés. Seu rosto ganhou um sorriso após me encarar por poucos minutos, ele se recostou em uma das árvores e me encarou pelo que parecia ser uma eternidade.
— Veja, Labareda, está vendo o que disse a você? Cada ato de nossas vidas moldam tudo ao nosso redor, se uma abelha operária devorar todo mel da colônia, as larvas irão morrer e muitas outras operárias passaram fome ou se rebelaram também, o ciclo da vida dentro da colônia se atrasará e com isso pouco mel será produzido, apenas o bastante para que a colônia sobreviva, mas muito pouco para ser coletado por nós.
— O que isso tem haver comigo? — Os olhos de Vincent se estreitaram quando respondi a voz em minha cabeça.
— Você afetou o ciclo, deveria ter morrido a muito tempo ou ao menos ter limitado sua presença na vida daqueles estavam vivendo, todos têm o direito de fazer o que quiser com suas almas, mas a liberdade acaba quando a soberba começa… você me perguntava todos os dias como alguém poderia se tornar imortal, mas nunca prestou atenção no que eu sempre respondia…
As palavras surgiram em minha cabeça junto a muitas outras lembranças, perdido no deserto após mais uma chacina, o frio da noite me atingia de forma mais severa por minha natureza. Meus seguidores, todos mortos após nosso último ato, minha busca por imortalidade terminaria com uma morte causada por hipotermia sob a luz de uma lua de 900 anos atrás, eu me lembro da dor, me lembro de todos eles e como daria minha vida sem nenhuma dúvida para que eles vivessem novamente. Ela me encontrou, cobriu meu corpo com seus mantos e cuidou de mim… pena, maldita seja a pena.
Se eu tivesse morrido acima das dunas, poderia ter conseguido o que queria sem ter que perder minha maior força… prender minhas chamas foi meu maior pecado.
O movimento de minhas mãos retornaram apenas para que eu pudesse fechá-las em frustração quanto mais lembranças da minha vida se revelavam para mim. Aceito nos templos da purificação, eu fui fraco demais, o fogo nunca deixa de cobiçar, nunca para de querer até devorar tudo e todos, minha maior fraqueza, meu maior erro foi ter se entregado a essa natureza em meu espírito sem controlá-lo acabei sendo controlado, mas uma grande insatisfação permeiava minhas lembranças com a Mestra Bao. Ela sabia o que eu poderia me tornar, tinha poder e razões para me matar, então por que…
Por que teve pena de mim?
Tudo que fiz após apunhalar minha Mestra durante sua meditação foi fruto de sua pena por mim? Tudo que eu conquistei e perdi, aprendi e esqueci, tudo foi por que ela teve pena de mim merda! Eu pensei ter a superado, mas tudo faz mais sentido agora, como uma Receptáculo de uma Força Anciã morreria para uma simples adaga de aço empunhada por um homem que tinha acabado de atingir a real fase adulta com 29 anos, como ela poderia ser morta por mim? Pena, maldita seja a pena, maldita seja essa pena que fez minha mente cobiçar tanto e me levar a uma gaiola.
A gaiola me tirou tudo, tudo que eu poderia ser devorado pelo fogo retido.
— A maior força dos mortais, morremos todos os dias, a cada segundo que se passa uma parte de nós morre para que uma melhor nasça e é assim durante toda nossa efêmera existência… Não existe imortalidade, apenas diferentes concepções da morte, deixamos de ser imortais quando limitamos nossa vida a morte de nossos corpos.
Eu me limitei a ser uma besta ao invés do próprio fogo nobre e ambicioso, que nunca seria domado nem mesmo por desejos.
Meus olhos estavam pesados, um fluxo quente escorria pelo meu rosto e descia até gotas caírem no chão, tão vulnerável, eu havia esquecido a sensação libertadora que vem com as lágrimas. Mesmo estando com um corpo vivo, eu pareço mais morto do que os espíritos em minha presença, eu ergui meus olhos para o homem de cabelo vermelho e vi uma expressão serena, a memória de quando o empalei com minha mão veio com vergonha, me tornei um covarde que ataca de surpresa e se vangloria da vitória fácil. Os fortes merecem a chance de demonstrar sua força, merecem a chance de defender sua honra…
Abracei a maldição que estava a um passo de me devorar completamente, minha mente lúcida é completamente renovada sendo açoitada de diversos lados pela energia que me devorava de dentro para fora. Sua expressão se manteve serena, nenhuma perturbação ou raiva, nenhuma indignação ou prazer, apenas a feição de um homem que parecia ter total controle de sua vida mesmo diante daquele que o matou… era lindo, uma força que fazia todos os meus feitos irrelevantes. Quando mais meu espírito era devorado, mais livre eu me sentia, todas as amarras sendo digeridas.
A maldição agora fazia parte de mim, minha carne sendo rasgada para que galhos saíssem cobertos com meu sangue. No silêncio do bosque escuro, o elo que me ligava ao Sr.Pólios era a única coisa que resistia ser devorado, mas nem mesmo o elo sobreviveria, eu corrigirei meu maior erro me libertando do lampião que prendia minha alma. Num último ato antes de desaparecer por completo, a presença de Pólios se manifestou em minha cabeça, sua aparência uma mera silhueta, ao mesmo tempo que imponente, parecia ferida e exalava admiração.
— Os mortais são realmente animais que precisam ser domados, mas é… tão belo, a capacidade de mudar e reescrever suas naturezas, quero que uma parte de mim faça parte desse renascimento. — Minha conexão com o Sr.Pólios se intensificou logo antes de desaparecer, deixando uma massa de energia quente em meu peito.
O poder de Pólios sobre mim se dissipou, a atmosfera começou a escurecer mais com ventos surgindo de todas as direções e a massa de energia mergulhando mais fundo em meu espírito. A maldição que agora fazia parte de mim mutilou a massa de energia que se espalhava pelo meu corpo apagando completamente a presença de Pólios, os galhos que saiam por minha carne começaram a mergulhar novamente em meu corpo com as feridas em meu espírito sendo fechadas dolorosamente com a maldição. Encarei Vincent entre meus gritos de dor, ele manteve a mesma feição calma dando alguns passos até estar sobre mim.
— Eu realmente nunca guardei sentimentos ruins contra você por ter me matado, mas em contrapartida, o que você fez com meu filho e minha esposa… eu quero que você sinta o mesmo que eles sentiram. — Ele se ajoelhou colocando a mão abaixo do meu queixo e ergueu minha cabeça para encarar seus olhos, a cor verde havia desaparecido da íris, estando completamente dourada com o mesmo brilho antinatural que Marcelo tinha em seus olhos. — Eu te amaldiçoou a morrer em minha gaiola, e assistir tudo que você tentou destruir renascer.
Meus braços reconstruídos queimavam em uma dor indescritível, a maldição se movia como raízes dentro de mim e saiu pela lateral da minha cabeça, essa mesma raiz da maldição me preenchia cada vez mais junto a outras energias que nunca havia experimentado antes. Eu podia sentir inúmeros olhos queimando meu ser, me julgando e condenando, açoitando minha existência, mas os olhos dourados que me encarava fixamente pareciam um vortex que sugava toda minha vida para a escuridão. O chão começou a me engolir, a terra escura me puxando para baixo e minha última visão foi o rosto inexpressivo de Vincent.
Maldito…
Gritei abrindo meus olhos para ver o cenário à minha volta, a atmosfera preenchida com luz vermelha enquanto gotas de água caiam sobre mim e o chão como chuva, a dor em meu corpo era grande demais para ser suportada em silêncio. Em meio aos urros que eu liberava, senti a presença de Marcelo e os demais que estavam lutando, cambaleei tentando me colocar de pé e fracassando inúmeras vezes antes de conseguir, algo caiu em cima do meu pé, minha atenção foi para o chão ver o que havia derrubado. Isso… isso é… ha ha… haha hi hi ha… seu maldito desgraçado… malditos desgraçados.
Malditos, malditos, malditos… MALDITA.
O útero, o receptáculo na forma de um tijolo branco que guardava a semente de Pólos estava fragmentado em duas partes, o poder que deveria estar dentro havia desaparecido completamente e foi fácil ligar os pontos. A massa de energia que vi a maldição retalhar era a semente, o último golpe de Marcelo deve ter danificado o útero e a energia se agarrou a mim para se salvar como um receptáculo temporário… Uma intensa dor atingiu meu corpo como um raio me colocando de joelhos no chão, a maldição se remexendo dentro de mim como videiras farpas enquanto sentia minha alma ser riscada por uma força invisível.
Não importa mais.
É o fim da minha soberba, o fim da história, posso sentir o Fio se agarrando ao meu espírito e marcando todas as vidas que tirei em meu ser,a maldição consumindo minha força, rasgando e curando meu corpo em um ciclo doloroso. Olhei meu próprio reflexo no piso branco coberto por água, meu rosto desfigurado com raízes se projetando do lado direito da minha cabeça como chifres retorcidos, meus dois olhos brilhando de forma intensa e minha mandíbula exposta… esse é meu fim? Uma presença familiar solidificou a minha frente comigo podendo ver a barra de seus mantos, ergui a cabeça para ver o rosto do fantasma ou alucinação de minha antiga mestra.
— O tempo cobrou seu preço… está pronto para sua eternidade de sofrimento, Labareda? — Seu rosto idoso tinha traços que demonstravam o quão bela um dia ela já foi, seus mantos vermelhos com uma faixa roxa amarrada em sua cintura tendo padrões em laranja vivo me trazia todas as lembranças que eu havia perdido.
— Então é isso… eu queria apenas tirar um questionamento da minha cabeça. — Empurrei as palavras vomitando sangue no processo.
Sua expressão nem mesmo vacilou, seus olhos estreitos se abriram me dando sua total atenção.
— Você se arrepende de ter tido pena de mim? nada disso estaria acontecendo se tivesse reagido ao invés de permitir que eu a apunhala-se… já pensou que tudo de ruim que eu fiz também possa ser sua culpa? Ou vê isso apenas como uma tentativa minha de reduzir meus erros perante o fim?
Sua pele enrugada com o tom amarelado dos orientais se enrugou ainda mais quando riu, era a risada de uma dama, elegante e controlada que carregava consigo uma grande excelência.
— Uma ótima pergunta, Labareda… Sim, eu tenho culpa nisso, mas vendo como as desgraças que você causou construiu pessoas fortes, continuo sem nenhum arrependimento maior além da dor que você causou aos inocentes para torná-los fortes, como um velho uma vez me disse: “O mundo precisa de monstros para evoluir”, seu papel como um monstro foi exemplar, mas agora está na hora se adaptar, será como monstro ou meu aprendiz ambicioso, Ciro?
Sorri ignorando as dores intensas em meu corpo e espírito, o fantasma de minha mestra se dissipou, olhei minhas próprias mãos para ver escamas vermelhas que cobriam meus braços até acima do cotovelo com uma textura semelhante à uma casca de árvore. Raízes vermelhas saiam por meu ombro direito e algumas outras escamas cobriam meu peito e barriga com sangue saindo entre elas, me coloquei de pé me virando em direção de onde o som da batalha vinha dei um passo de cada vez em direção a eles. Se for para morrer, vou morrer pelas mãos de um caçador e se for para matar uma última pessoa… que seja você, Marcelo, morrerei como Ciro nesse último ato.
— Dune Dune… Duniiiiiiiiiii… ha ha…
Meu corpo paralisou após poucos passos, um instinto primitivo subindo por minha coluna como uma unha fria me dizendo para me esconder.
— Dune Dune Te, que petisco apetitoso você parece se…
Em meio as gotas de água que caiam sobre mim saídas dos aparelhos no teto, um líquido viscoso com cheiro pútrido caiu sobre meu ombro, a textura e transparência me fizeram crer que era saliva… mas a quantidade que estava caindo sobre mim junto as gotas de água me fazia indagar o que poderia produzir tanta. Olhei para cima vendo que as gotas de água que caíam sobre mim reduziram, mas ao redor elas ainda caiam com constância, o instinto primitivo do medo quase me tomou ao ver as sombras se movendo. O teto estava a metros do chão, as luzes vermelhas piscando tornava difícil distinguir o que estava acima de mim, até que três orbes amarelos brilharam no teto e a figura sombria se revelou.
Que porra é você?!
O corpo de um cão coberto de pelos negros estava com as garras das patas traseiras presas ao teto, era grande, maior que um cavalo, sua cabeça de cachorro com tres olhos amarelos estava fixada em mim enquanto suas gengivas estavam retraidas para mostrar o que parecia um sorriso com dentes serrilhados. A saliva que escorria entre seus dentes pontiagudos, descendo pelos lábios antes de se misturar a água que caia por seus pelos antes de chegar a mim como uma chuva grudenta, encarei a feição canina apenas para perceber que suas orelhas apontadas para trás se assemelhavam a chifres. O olho no centro da sua cabeça piscou, esse mínimo movimento me trouxe de volta a realidade quando a sensação de perigo cresceu em mim.
— Dune Dune Te… eu vou comer você.