Volume 2

Capítulo 47: Cão

[Sábado 17 de setembro de 2412, 23:42 da noite]

Marcelo Dias. 

 

Silêncio…

 

Encarei o isqueiro em minha mão vendo a pequena chama ondular antes de fechar a tampa para apagá-la, reabrindo-o risquei a pederneira para reacende-la, a chama continuava reta sem apontar nenhuma direção. Meu visitante mais recente prova que a notícia do meu paradeiro se espalhou para chegar aonde eu queria que chegasse, confesso que fui pego de surpresa pelo que aconteceu a alguns minutos, um desertor da fundação buscando o Abutre, é interessante. Movi minha atenção para o homem inconsciente aos pés da escada, o fato de ainda estar respirando dizia que seu pedido foi aceito.

 

Eu realmente queria matá-lo, afinal ele poderia ter representado risco para Samuel enquanto estava atrás de mim, o que mais me intriga foi o porque ele escolheu a mim para ser seu interlocutor para o Abutre. “O mesmo que você’ ele disse, o quanto ele achava que me conhecia para dizer isso? Estando agora esclarecido, eu vejo a reputação que criei nos últimos oito anos, um homem perseguindo uma entidade e matando todos que entravam no caminho. Essa é a minha natureza, um cão que nunca para de farejar os perigos que o cercam, essa reputação pode ser útil. 

 

Cacei como um sonar a presença de Hana e Armando para verificá-los em seus esconderijos, o fato do desertor ter matado seus aliados poupou energia que será usada na presa principal. Olhei uma última vez para o homem desmaiado, o que mais me incomoda além de representar um risco, é a estranha identificação que sua presença causa, quase como olhar uma versão antiga de mim, perdido e com raiva, talvez o fato de eu querer matá-lo também seja para superar esse sentimento. Abri o isqueiro analisando mais profundamente o pensamento, quando o risquei, uma fagulha também surgiu em minha mente. 

 

De certa forma, talvez ele seja um outro eu, uma outra história de vingança em seu início…

 

O fogo do isqueiro nasceu e ondulou se inclinando em direção a onde ficava a entrada do shopping, ele chegou, isso era de alguma forma quase irrelevante no momento. Pessoas que nascem com Singularidades Inatas possuem um tipo único de presença, Ciro já foi um humano e de acordo com registros ele tinha a singularidade da pirocinese, isso torna o fogo suscetível a sua vontade de forma natural, mesmo que inconscientemente, faz com que as chamas sejam atraídas para ele como um imã. Fechei o isqueiro o guardando no bolso, me indaguei onde estava minha animação pegando minha relíquia. 

 

A lugares melhores para se estar, eu vejo isso. 

 

Eu ri, a ironia de usar a palavra “ver” mesmo tendo ficado cego nas últimas horas, minha visão era completamente nova e diferente de antes em muitos sentidos, desde as cores mais intensas até poder ver pontos onde a energia vaza pelo véu. Nada faz sentido nessa existência, cegos nunca são realmente cegos, sempre a uma forma diferente de se ter o que foi tirado em meio a tantas percepções e realidades possíveis, se agarrar a um só sentido é tão… limitante. Desperto, esclarecido ou apenas deixei de ser um total tolo, o abismo que vivo parece completamente diferente agora.

 

Voltar para casa, mimar Samuel e Hana, escutar as divagações estranhas da Glória e as péssimas piadas do Goro. 

 

Passos ecoaram pelo corredor principal dividido por um canteiro de arbustos floridos, as luzes das fachadas dos estabelecimentos mais próximos começaram a fraquejar quanto mais próximo os sons dos passos ficavam. Um homem de pele pálida com cabelo cinzento apareceu, sua aparência parecia mais madura do que quando o vi pela última vez, parecendo agora estar na casa dos 30, seu cavanhaque acinzentado estava pingando a água que escorria por sua face. Minha atenção foi para seu rosto, a íris laranja como uma caldeira com esclera negra e rachaduras escuras ao redor da pele dos olhos que tanto tive pesadelos, ver a cicatriz em sua testa me trazia algum conforto. 

 

Reparei em suas vestes, um manto preto com bordas em marrom um tanto esfarrapado, abaixo do manto havia uma vestimenta que reconheci quase instantaneamente, sendo a veste laranja características dos monges shaolin. Ele deu mais alguns passos para ficar diante a escadaria, seus pés descalços emitiam um som úmido quando tocava o chão, ele parecia ter ficado curioso a respeito do homem inconsciente nos pés da escada, mas o silêncio se manteve em ambas as partes. A última coisa que reparei em suas vestes foi a faixa roxa com padrões laranja amarrada em sua cintura, a única peça de suas roupas que estava conservada. 

 

Interessante.

 

— E então… aqui estamos, vejo que já tinha uma visita aguardada além de mim, espero que tenha gastado pouca energia nele — ele cutucou o estrangeiro com o pé antes de continuar — odiaria que houvesse uma desculpa para justificar quando eu matá-lo, Marcelo.

 

Sua voz era profunda, a qualidade aguda de antes havia se perdido. 

 

— Sabe… parece que tudo foi um pesadelo, às vezes eu gostaria de acordar ofegante no sofá da sala da casa que você destruiu, mas depois de tanto tempo desejando que a realidade fosse apenas um pesadelo… eu me cansei de viver assim. — Passei os dedos pela lâmina da minha relíquia, os sulcos preenchidos com niello formando padrões escuros pelo aço dourado opaco, a presença dentro da lâmina aguardava minha atenção. — Você é apenas um obstáculo para meus sonhos futuros, um degrau na minha jornada, então quando morrer… lembre-se de mim, lembre-se desse dia e nunca esqueça aquele momento.

 

Me levantei segurando a empunhadura de Ukri, minha relíquia, sua presença se animando quanto mais energia eu permitia que ele absorvesse, sua intenção tão clara, complexa e única que era impossível tratá-lo como uma mera arma. Deixei que o aspecto do Esmero preenchesse meu corpo enquanto iniciava a escala de malha fluida, estendi minha energia para o interior de Ukri, seu “coração” em sintonia com o meu enquanto sua forma se desenvolvia. A madeira da empunhadura se alongou formando uma haste escura com sulcos, em uma das pontas a lâmina se achatou e cresceu, mas manteve seu aspecto curvo, na outra ponta surgiu uma miniatura de madeira lembrando a cabeça de um cão.

 

Floresça.

 

— Quer saber… eu também admito que aquele dia me marcou mais do que gostaria de reconhecer, o que mais me enfurece é saber que de alguma forma, o que aconteceu naquele lugar foi bom para mim… morra Marcelo, morra e seja o MEU degrau enquanto rumo a eternidade. 

 

Um único movimento com minha lança fez o ar se encher com meu território, uma área em forma de cúpula que alcançava 20 metros em todas as direções comigo no centro, recebendo e tendo a informações projetadas em minha mente até o mínimo detalhe. Antes que ele agisse, me elevei no ar com um pulo usando o terreno a meu favor, alinhei a lança mirando em seu peito e a enviei com um movimento de braço usando todo meu corpo para aumentar a força do lançamento, sua cabeça se ergueu e no mesmo instante ele a abaixo para ver os próprios pés. A sombra abaixo dele era muito mais escura do que deveria ser, seus pés estavam dentro da própria sombra e afundando mais. 

 

Antes que Ukri o alcançasse, expandi meus sentidos enxergando canais de energia que estavam ligados a mim e se espalharam em diferentes direções como fios, selecionei um dos milhares de fios após milissegundos para ser levado aonde queria. Minha obra de movimentação estava concluída, sendo exatamente o que queria que fosse, mesmo que a forma que ela funcionasse fugisse um pouco dos meus rascunhos. Queria que fosse uma movimentação de desconstrução e reconstrução pela versatilidade, mas isso fugia um pouco da minha própria personalidade. 

 

As obras absorvidas possuem muitas variáveis para se prender ao indivíduo, desde a natureza do feitiço até sua criação. Com cada átomo do meu corpo completamente impregnado, eu podia transitar pelos canais que se sustentavam na penumbra e desaguavam na realidade comigo comprimindo minha “matriz atômica” com energia enfeitiçada, isso casa melhor com minha personalidade íntegra. Uma desvantagem seria o tempo para escolher a rota e montar a rota em si, mas com Caelum ampliando meus pensamento junto ao Esmero confortando meu cérebro, isso acontecia em segundos.

 

Rio Fugaz. 

 

Desaguando com partículas ao meu redor atrás de onde Ciro deveria estar, visualizei sua movimentação dentro do território para vê-lo se esquivando de Ukri com um salto em direção ao topo da escada. As partículas de areia sombria que seus pés haviam afundado se moveu em minha direção para entrar em minha sombra, observei o rastro de sangue que levava aonde Ciro estava, ambos os pés estavam ausentes com a ferida se fechando e carne começando a crescer de ambos os tocos. Meu familiar estava descontente por ele ter escapado, mas satisfeito por ter conseguido devorar seus pés e provado da carne de Ciro, podia sentir sua fome crescendo.    

 

Peguei Ukri de chão sem dar tempo para o Pálido se recuperar, com poucos passos o alcancei no meio da escada e fiz o primeiro ataque movendo a lâmina na ponta da lança e usando o peso do corpo para aumentar a força do corte. Ciro se esquivou apoiando o corpo sobre os braços enquanto seus pés cresciam, ele moveu o coto em meio a mortal e o sangue que veio em minha direção entrou em combustão no meio do caminho, o fogo rosado passou por mim na esquiva e me foquei em Ciro sentido sua movimentação através do território que nos englobava. Um de seus pés havia crescido de novo tendo uma aparência frágil comigo podendo ver seus nervos enquanto o outro estava quase totalmente crescido. 

 

Ele avançou para mim com uma postura estranha, nosso confronto estava balanceado de uma forma quase justa como da ultima vez: mover a lança era difícil principalmente pelo tamanho e pouco espaço para manobra-la, mas meus ataques eram devastadores. Movendo uma obra em conjunto com a escala de malha fluida, canalizei o feitiço Fissão de Cetim para Ukri fazendo com que todos os golpes liberassem um fio cortante, as desvantagem por lutar na escadaria foi superada quando um dos fios de cetim atingiu seu peito fazendo sangue jorrar e com que ele fosse empurrado para o segundo andar. Tracei uma rota com os canais do rio fugaz o usando para me mover em segundos para onde sua presença estava, cobri Ukri com a mesma energia comprimindo sua massa para trazê-lo comigo pelo canal.

 

Seus golpes queimam, mas isso já se tornou previsível. 

 

A dor com certeza é um dos piores inimigos da concentração, mas as queimaduras dos seus golpes tinham seus efeitos reduzidos em 30% pelo fato simples: meu manuseio da escala fluida era refinado, espalhando a força e efeitos de seu golpe pelo corpo e absorvendo o excesso com energia. Usando o Esmero para aliviar a tensão em meu cérebro e a Cortina para elevar densidade da energia e aumentar o fator de absorção e distribuição dos danos. Desaguei em frente a Ciro girando meu corpo para descer a lâmina  em sua cabeça, mas sua movimentação era rápida e por um breve momento ele desapareceu do meu território também sumindo do meu campo de visão. 

 

Meus olhos se arregalaram buscando sua presença antes que ela surgisse de forma abrupta ainda minha frente, seu pé impediu que eu retirasse Ukri do chão obrigando eu a me defender com os braços. O seu punho era pesado e a forma como ele esticou os dedos fez com que outro de seus ataques cortasse acima do meu olho esquerdo com suas unhas, aproveitei o impulso do seu golpe me movendo para trás escapando de seu combo de ataques. O sangue que descia da laceração no lado direito do meu rosto me dava ideias do que aconteceu, o momento em que ele desapareceu dos meus sentidos. 

 

Seu território ofuscou minha visão. 

 

Ter me tornado cego é um efeito colateral do despertar Áureo, ser capaz de ver o mundo através da energia tem muitos pontos positivos, na verdade, os pontos negativos apenas existem em circunstâncias específicas. A cúpula territorial ao meu redor permite que eu veja tudo com mais clareza dentro dos 20 metros através da projeção mental da energia, porém, para ampliar esse efeito eu fiz um pacto circunstancial que apenas me permite ver dentro desses 20 metros com tudo fora disso sendo sentido, limitei minha visão aumentando a percepção. Observei a forma como o território de Ciro repelia o meu, comigo só podendo vê-lo e não senti-lo. 

 

Territórios se inibem, quando ambos colidem a muitas variáveis e finais diferentes. 

 

Comprimi o meu território da mesma forma que Hana faz, abrindo mão dos 20 metros para um outro pacto mútuo, reduzindo o alcance da amplificação sensorial em 5 metros ao meu redor e ganhando a visão para além dos 20 metros novamente. Ciro tinha um olhar reconhecedor em seu rosto antes de avançar contra mim, mesmo que seu território fosse igualmente refinado, o peso do meu sacrifício temporário ampliava mais a estrutura do meu me permitindo acompanhar seus movimentos. Tentar entender seu estilo de luta era um quebra cabeça por si só, era uma mistura maluca de estilos diferentes da mesma forma que suas roupas. 

 

Centenas de anos e muitas viagens te refinam muito bem ao que parece. 

 

Usando as brechas em sua postura para acertar socos em pontos chaves como peito, queixo e ouvido para diminuir sua cognição. Mesmo na desvantagem, minha guarda elevada e a ampliação da defesa na escala de malha fluida limitou os danos a queimaduras, alguns ossos quebrados e o ferimento no olho esquerdo, mas o tempo usando apenas duas disciplinas, massageando e resfriando meu cérebro com uma obra da aurora me fez ganhar uma vantagem no que se diz respeito ao vigor da batalha, comigo recuperando o foco perdido ao utilizar mais de uma obra ao mesmo tempo. Meu condicionamento físico estava melhor já que ele estava sangrando mais.

 

No ápice de seus movimentos, um pequeno erro em um de seus golpes me confirmava que mesmo sendo um espírito poderoso, ter que lutar através de um corpo físico exige que ele também tenha que gerenciar seu vigor. Assim como na nossa luta no prédio de ensino, ele parece atinge o limite do seu corpo utilizando muita força e energia para manter seus ataques físicos em alto nível, isso se aplica a todas as entidades e seres, existe um limite a ser respeitado para corpo e espírito, com um treinamento certo para elevar esse limite. Me aproveitei de mais um erro em seu ataque, puxando seu corpo para perto e o atingindo no peito com o joelho.

 

“Mago das areias esquecidas”.

 

Sem deixar brecha para reação, girei meu corpo para atingi-lo na lateral direita da cabeça, girando novamente e mudando o pé de apoio para atingi-lo na lateral esquerda, dando uma sequência de socos rápidos em suas costelas e um soco pesado acima do coração. Segurando seu braço sem deixar que o peso do golpe abrisse espaço entre nós, puxei seu corpo para baixo alinhando sua cabeça com meu joelho, o soquei até que sua face estivesse completamente irreconhecível. Em um último movimento para terminar minha sequência, usei milissegundos alinhando a energia do meu corpo com meu espírito, provocando uma explosão interna que encheu meu corpo de energia. 

 

É Apenas um homem. 

 

Minha percepção de tempo ficou mais lenta e sua tentativa de bloquear meu último golpe foi ineficaz quando meu punho fez contato com seus braços a frente do corpo, um fio de cetim usou meu braço como ponte de conexão e disparou junto a micro explosão de energia do meu golpe. Ciro foi jogado para trás com seus dois braços se separando dele no meio do caminho e uma ponte de sangue se formou entre nós, seu corpo bateu uma pilastra de concreto rachando a laje atras dele, mesmo a visão de seu corpo escorregando para o chão apenas me trazia silêncio junto a um arrepio. O sangue que formava uma ponte entre nós começou a brilhar enquanto entrava em combustão, as labaredas rosa vieram em minha direção me engolindo.

 

Um homem com medo de morrer.

 

Sendo abraçado pelo calor infernal do fogo rosa, eu deveria estar com medo ou irritado pelo ataque inesperado, mas tudo que vinha à minha cabeça eram as palavras que proferi mentalmente a Ciro. Medo de morrer, eu nunca tive isso de fato, apenas tinha medo de sentir muita dor quando fosse morrer, a morte sempre me foi cativante como um suspiro de alívio após uma vida inteira de lutas, mas como um membro da aurora e com o sangue de um dos filhos da morte em meu espírito… minha vida representa muito mais do que apenas uma luta ansiosa por um final. Em minha mente, de forma inconsciente fiz o foco ser o catalisador para unir Sine e Fie. 

 

Eu quero vê-los crescer.

 

Meus sonhos, minhas expectativas, minha noção e entendimento sobre vida e morte e acima de tudo, Samuel, a pequena Milena, meu relacionamento com Hana e nosso futuro juntos como… marido e esposa. Abri meus olhos para ver uma paisagem sombria e de alguma forma reconfortante, um mar de areia negra formando dunas escuras sob a luz prata da lua que atravessava as nuvens do céu, minha atenção foi para areia que começou a se esculpir em duas formas cada vez mais familiar a alguns metros à minha frente. Era Vincent com as mãos apoiadas nos ombros de Samuel, os dois me olhando de forma meiga enquanto meus olhos ficavam pesados.  

 

Meus olhos subiram para Vincent, seu sorriso fraterno e amoroso enquanto encarava Samuel se manteve ao me dar sua atenção. 

 

— Obrigado por tudo que fez, Marce, mas me sinto ainda mais grato por ter alcançado seu esclarecimento… pare de duvidar que estou ao seu lado, Imão. — Vincent disse ajeitando seus óculos parecendo ficar constrangido por usar o apelido que me deu quando tinha dificuldade em dizer “Irmão”.

 

Fui incapaz de segurar as lágrimas, mas mantive a compostura dando um passo de cada vez para mais perto deles, a areia escura começou a subir por mim diminuindo o peso e dores do meu corpo a cada passo. Sammy e Vincent eram quase espelhos um do outrop, com Samuel apenas tendo um olhar mais afiado e cabelo vermelho um pouco mais escuro, mas a forma como seus rostos eram meigos, cílios longos e lábios finos, mesmo a cicatriz no lado direito do rosto do Samuel que emoldurava seu olho e descia até um pouco na bochecha tornava difícil a diferenciação de ambos. Em frente aos dois, o único olho aberto de Samuel veio para meu rosto e preocupação nasceu nele. 

 

— Tio, seu olho, está tudo bem? — Sam deu um único passo à frente segurando minha camisa. 

 

Me agachei envolvendo suas mão nas minhas, um sorriso se formou naturalmente em meus lábios olhando de perto meu Sobrinho. 

 

— Está tudo bem, eu apenas quis imitar a cicatriz de um rapazinho bonito, você acha que combinou comigo?   

 

Sammy me encarou um pouco antes de sorrir junto a Vincent, seus corpos começaram a se transformar novamente em areia negra, mas antes disso, eu puxei ambos para um abraço deixando que se afastasse apenas quando me senti seguro o suficiente para deixá-los ir. 

 

 

— Apenas volte para casa, Tio Marcel — Sammy disse me dando um sorriso dentado enquanto suas bochechas ficaram levemente vermelhas.

 

Ambos se desfizeram em areia negra, a dor que antes me assolava agora era apenas um incômodo sutil, tudo parecia mais claro, cada motivação e pensamento que me rondavam eram lúcidos. Esse é o sentido da minha vida, protege-los, guardá-los, eu falhei uma vez, negligenciei minha verdadeira natureza por um preconceito infundado e por causa disso, Vincent morreu com medo de se abrir comigo, Samuel foi marcado com cicatrizes profundas e Glória… ela assistiu pessoas que amava morrer e se machucar e um lar seguro desmoronar novamente. Eu poderia ter feito mais e agora eu posso, posso protegê-los e cuidar deles enquanto os assisto crescer, como um cão.

 

Nada mais me será roubado. 

 

Me colocando de pé, fechei meus olhos sentindo a energia escura se espalhar por meu corpo e ampliar minhas reservas de foco, os ferimentos que antes ardiam e doíam agora estavam frios junto ao fogo que me cobria. Veritas, ampliando minha escala de malha, percebi que menos de dois segundos haviam se passado pelo efeito do lampejo ainda estar ativo, usei esse poucos milissegundos para inflamar minhas obras ao seu máximo antes de liberar uma pequena quantidade de energia por meus poros. Os anéis em meus dedos vibraram quando me concentrei no rio fugaz, fazendo a energia que alimentava o fogo que me cobria fosse sugada a nível atômico, as chamas se apagaram. 

 

— Marcelo! — A voz de Hana me alcançou antes de abrir meu olho direito para vê-la com lágrimas escorrendo por seu rosto. 

 

As luzes do shopping estavam piscando em vermelho e os sprinklers faziam a água cair sobre nós como chuva constante, Hana estava a minha frente e segurou meu rosto passando os dedos na ferida do meu olho esquerdo. Segurei suas mãos antes de envolvê-las com as minhas, seu rosto preocupado fazia meu coração doer, mas logo tudo estaria acabado e eu poderia passar o resto de nossas vidas a compensando por sempre preocupa-la. A olhei nos olhos, mais fundo e por mais tempo do que jamais fiz, haviam palavras que eu sempre queria dizer a ela, mas só conseguia quando ela adormecia ou em minha cabeça, sem antes ter a coragem para empurrá-las para fora.

 

— Eu te amo, Hana Bao Atsuya, gostaria de ser a Dama desse Vagabundo?

 

Seu rosto ficou pasmo por meio segundo antes dela colocar a cabeça sobre meu peito e nos abraçarmos, o silêncio foi quebrado por uma risada dela, tão meiga e doce que fazia o ruído dos alertas do shopping desaparecer. Armando estava encarando Ciro recostado na mesma pilastra que meu último golpe o enviou, mas logo ele olhou ao redor com seu rosto sério se desmanchando em um sorriso antes de voltar sua atenção ao nosso redor, presenças começaram a se aproximar como se nos cercando enquanto Hana se colocava ao meu lado e me entregava Ukri. As presenças que se aproximavam exalavam Miasma, mas havia uma presença ainda maior dentro de mim que queria muito sair.    

 

Vamos acabar com isso… tenho erros para compensar. 

 



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