Volume 2

Capitulo 46: Visão da Liberdade

[Sábado 17 de setembro de 2412, 23:13 da noite]

Estrangeiro.

 

A farsa durou o bastante… ou apenas se cansaram de nós?

 

Encarei o prédio à minha frente ponderando em minha mente que tipo de armadilha terá dentro dele, mesmo com o tempo e imaginação, acho que sou incapaz de listar todas as possibilidades. O telefonema a algumas horas confirmou minha hipótese inicial, quando chegamos no bar que servia de fachada para encontros, um grande sentimento misto de satisfação e medo me percorreu ao ver o lugar completamente vazio e intacto. E aqui estamos, direto na onde o caçador quer que estejamos… isso é bom.

 

Cada vez mais próximo dele. 

 

O pensamento veio carregado com memórias passadas, fantasmas e vozes que me guiaram até esse lugar, o mais importante é que estou cada vez mais próximo do meu atual objetivo final… isso é tudo que me importa. Mantive meu rosto inexpressivo encarando o shopping, o grande prédio de entrada tinha quatro andares sem contar o térreo e a fachada, janelas escuras em cada um refletia o céu noturno nublado, ao redor dos limites do shopping havia uma enorme plantação de milho que solidificava o ar calmo. Passos a minha direita estragaram o clima, apenas movi meus olhos para ver o rosto do meu subordinado

 

Z, sem nomes reais aos iniciados, apenas um dígito para serem catalogados e alocados para descarte ou promoção, limpo e rápido… o mais próximo de humanidade que a fundação tem a oferecer. Ele parecia procurar meios para falar, algum tipo de vergonha eu acho, deixei de me importar com todos dentro daquele lugar, estar aqui é quase um suspiro de alívio e a presença dele apenas me lembra que isso seria temporário, por isso odeio todos que estão comigo nesse lugar. Não os culpo, se estão aqui é por dois prováveis motivos: querem se provar ou estão sem escolha. 

 

Jimmy era interessante, sua morte valeu de algo… 

 

— Senhor, nada num raio de quilômetros no milharal ao redor do shopping, sem nenhuma presença anormal… — ele parecia procurar desesperadamente algo de interessante para falar em sua pausa antes de continuar — todos estão em posição, três pela porta de trás e enviei três pelo teto do andar térreo. 

 

Ele parou, me encarando enquanto eu estava escorado no nosso carro, seus olhos famintos por reconhecimento entregava o porque ele estava aqui e o porquê dele ser o que menos gosto de todos que vieram comigo. Olhei para o estacionamento antes do shopping, vazio com exceção de um carro sedan GT e uma motocicleta clássica, os canteiros com pequenas árvores que dividiam as seções do estacionamento balançavam com os ventos. Acho que… tudo ocorrerá da forma certa, se for para morrer, que seja cuspindo na cara daqueles filhos da puta do alto comando. 

 

Um pouco de liberdade, apenas um pouco. 

 

Me dei ao trabalho de virar minha cabeça para Z, seu rosto me fazia ter dúvidas sobre sua idade e juntando isso ao corpo de um atleta, nem parecia que era apenas um saco de carne cheio de tônicos com 22 anos. Saquei minha pistola da cintura, puxei o ferrolho para ver a bala na câmara, me desencostei do carro indo em direção a entrada do shopping sentido um arrepio crescendo em minha nuca. A metros da entrada com portas de vidro, o arrepio cresceu, olhei para o interior do shopping, o vidro escuro com gotas de água ainda permitia ver algumas luzes lá dentro. 

 

A chuva deixou de cair continuamente sobre mim quando entrei abaixo do teto da fachada que cobria a calçada, as gotas da chuva chegavam através dos ventos mais fortes que vinha de diferentes direções. Encarei as portas ignorando o interior pouco luminoso para focar no meu reflexo, meu rosto sombrio emoldurado por cabelo longo deixava difícil interações sociais desde de cedo, antes de ser puxado para a espiral de decadência moral, antes de perder a única coisa boa da minha vida. Movi meus olhos para o reflexo de Z que tinha dificuldade em esconder a ansiedade, decepção era tudo que conseguia sentir.

 

Se a dádiva que é ele estar vivo pudesse ser dado a outra pessoa, certamente seria a ação mais importante e útil de sua vida.  

 

— Você pode sentir sua alma? — perguntei movendo minha mão livre para o bolso interno do meu casaco.

 

Z parou de ter tiques nos dedos das mãos, quase podia sentir seus olhos em minha nuca. 

 

— Eu acho que sim, me sinto mais próximo do meu verdadeiro eu a cada missão e…

 

Eu ri, tão espontaneamente que até mesmo fiquei surpreso antes de suprimir o sentimento.

 

Que resposta sem sal. 

 

— Você já perdeu ela garoto, talvez se tivesse ficado em casa, teria conseguido avançar mais dentro da fundação, uma pessoa a sensibilidade na alma conseguem ir mais longe lá dentro, que pena que sua história termina aqui… você teria sido uma ferramenta perfeita para aqueles idiotas. — Meu rosto voltou a seu estado inexpressivo, me dei ao trabalho, pela última vez, de me virar para Z. — Vá na frente, vou preparar nossa caixa preta, alguma mensagem que queira enviar?

 

Ele nem mesmo me encarou, apenas abaixou a cabeça e deu um único passo antes de tentar alcançar a arma em sua cintura, mas a minha já estava na mão e sou mais rápido do que ele nunca será. Seus olhos se alinharam com os meus, desespero era o que melhor descreve a emoção presente neles, de toda nossa estadia no continente das lágrimas, talvez essa fosse sua maior expressão de emoção que eu tenha visto, naquele momento ele sentiu o medo real e puro. Meu antebraço esticado se alinhando com meu ombro, a arma mirada em sua cabeça e o peso do gatilho era suave… eu te liberto, pequeno títere. 

 

Bang.    

 

Seu corpo caiu mole em meio a sua ação, sangue que jorrou do ferimento na lateral da sua cabeça foi jogado em meu rosto por uma rajada de vento, o cheiro da pólvora e sangue me trazia muitos fantasmas. Observei o corpo do garoto, a lateral esquerda da sua cabeça tendo seu cabelo loiro manchado de vermelho enquanto sangue se represava no chão abaixo da cabeça, peguei quatro discos de metal pouco maiores que uma moeda do bolso, todas cobertas de inscrições rúnicas, me abaixei colocando três das quatro moedas dentro da mão estendida do garoto. O último amuleto em minha mão seria a caixa preta, a última mensagem para o alto comando…

 

— Parabéns, Garoto, você alcançou a escala três como um verdadeiro investigador da fundação, uma ótima ferramenta até o final — falei me levantando. — Infelizmente eu tenho outros planos em mente, planos que você é cego demais para entender, mas parabéns por sua última promoção e com minha autoridade como seu superior eu te dou um novo nome: Zendo, que o inferno seja gentil com você.

 

Mais um fantasma para me assombrar. 

 

Segurei o amuleto em frente ao meu rosto, meu aperto sobre a moeda de metal escuro com escritas rúnicas se espalhando por suas dimensões estava aumentando. Olhei para cima, o teto de vidro chapiscado de gotas refletiam o neón do letreiro, como um céu cheio de estrelas, mas havia uma pequena parte do céu acima do vidro, uma brecha nas nuvens escuras que estava límpido com as verdadeiras estrelas lá, eu só quero uma unica coisa, uma coisa que preciso fazer antes da morte me alcançar. Alcancei outro objeto no meu bolso interno, a forma de uma agulha afiada do tamanho da minha palma com inúmeros sulcos. 

 

Queimarei a fundação, até a última maldita alma que os servem de bom grado, transformarei o legado desses desgraçados em cinzas… 

 

Com um único movimento, apunhalei o espigão em meu peito pouco abaixo da clavícula esquerda, a dor era apenas o começo de algo maior e a recebi de bom grado, uma cachoeira de energia quente correu por meu corpo a partir do ferimento. O deixei alojado em minha carne, a sensação quente apagando os rastros de energia dos amuletos que retirei, foi um plano ousado retirar todos, a distância entre os continentes e a atmosfera antinatural brasileira que possui riqueza em energia ajudou, no final, estou livre da influência da fundação e de seus protocolos de autodestruição. Pela primeira vez em muito tempo, um sorriso genuíno apareceu em meu rosto.  

 

Eu vou pegar vocês… lembrem-se disso.

 

Usando um último comando antes da conexão com o amuleto se desfizesse, deixei que essas palavras adentrassem a moeda de metal como energia antes da conexão se desfazer de uma vez por todas. Fechei meus dedos sobre o amuleto e o apertei até sentir o metal entortar e se dividir em duas parte, energia vestigial escapou entre meus dedos e se desfez na atmosfera quando a moeda se partiu, liberei meu aperto deixando as duas partes caírem no chão e comecei a caminhar em direção a entrada. A porta giratória de vidro tinha filamentos em sua composição, esses estavam emitindo um brilho verde para mostrar que a porta estava aberta.

 

Olhando ao redor no interior, era como qualquer outro shopping, lojas de diferentes comércios nas extremidades com um caminho no meio dividido por um canteiro de arbustos floridos. Meu cérebro se contorceu dolorosamente quando tentei enviar um pulso para sondar o lugar, uma coisa que admiro no sistema de ocultismo brasileiro é sua “autonomia”, meus estudos mostram que eles usam ferramentas como forma de canalização, mas os feitiços estão dentro dos indivíduos. Sem meus amuletos, estou basicamente restrito a manipulação de energia crua, fora a abstinência devido a certos amuletos.     

 

Caminhei pelo corredor principal do shopping indo em direção a maior fonte de luz que havia em uma escada que leva ao segundo andar, quanto mais próximo da escadaria, um som semelhante a um riscar de isqueiro se tornava mais nítido. Meus olhos encontraram a fonte do som quando estava aos pés de uma escadaria, a luz que vinha de um lustre no segundo andar criava uma esfera de luz abaixo tornando a escada o lugar mais bem iluminado do térreo já que as demais lâmpadas na frente das lojas eram fracas. Um homem estava sentada no último degrau no topo da escada, riscando um isqueiro, o fechando para apagar o fogo e abrindo de novo para riscá-lo.

 

Você…

 

O homem sentado no último degrau superior da escada era a pessoa que eu mais estudei nos últimos meses, Marcelo, observei o sujeito com sua atenção presa na pequena chama do isqueiro. Mesmo sentado dava pra ver que ele era alto, ombros largos cobertos por um sobretudo azul marinho com gola alta e se estendia até seus joelhos, o maxilar afiado era coberto por uma barba negra bem aparada e seu cabelo de mesma cor ia um pouco abaixo da orelha. Seus olhos se moveram para mim, meu estômago se embrulhou com esse pequeno movimento, medo era muito pouco para descrever o que senti.

 

Os olhos que antes tinham apenas uma marca dourada na íris agora estavam completamente dourados, eles brilhavam de uma forma única, não acesos como já presenciei uma vez a distância, mas o dourado intenso tinha seu próprio brilho. Sua feição estava diferente desde a última vez que o vi, o rosto outrora cansado agora parecia revitalizado mesmo com as olheira, ele parecia completamente renovado e um tanto diferente de como imaginei que estaria. A forma despreocupada de como estava sentado falava muito sobre nossos status, a forma como me encarava e a distância física entre nós também me mostravam minha posição diante ele.     

 

De classe especial a um mero homem em segundos.  

 

— Estranho como as coisas nunca são o que parecem… você me intrigou, matar seus aliados de uma forma que pareceu tão espontânea, eu estava ansioso para tirá-lo do meu caminho o mais rápido possível para focar no alvo principal, mas algo me diz que se eu te ouvir, talvez esse tempo perdido seja na verdade um investimento. — Ele voltou seus olhos para o isqueiro antes de risca-lo novamente. — Você tem dois minutos, comece a falar antes que eu mude de ideia.          

 

Por onde começar?

 

A fundação deveria ter o mesmo papel da ordem do abutre, mas quanto mais tempo e mais fundo eu ia, mas as discrepâncias aparecem e tomam forma ao meu redor antes de explodir e levar o que eu amava. Simpatia, lealdade, amor… pena? Isso nunca foi o que busquei ao entrar na fundação, nunca foi meu objetivo ser honrado ou um “herói”, mas tudo mudou e meu objetivo também amadureceu, fazer minha parte e limpar a sujeira já ajudava as pessoas e fazia… fazia ela ter orgulho de mim. Um único erro foi o que precisei cometer para que meus olhos se abrissem, um único erro para que eu visse o que precisava ser feito. 

 

A Fundação é exacerbadamente confiante demais que suas ações estão imunes a consequências. 

 

Um mundo sem regras nunca será uma utopia, nunca será pacifico ou o lugar com o qual se deve sonhar a longo prazo, um mundo onde consequências são inexistente estão fadado a permanecer no pó até que as primeiras regras surjam. Animais que constantemente se digladiam e chamam os corpos no chão de progresso são a única e verdadeira falha da natureza, nós humanos cumprimos esse papel com mais maestria do que muitas criaturas do obscuro que andam pela terra. Preciso lembrá-los disso, é impossível salvar animais de si próprios, mas construirei uma grande regra que a fundação se lembrará pela eternidade e vou garantir isso pessoalmente.

 

Matar pessoas importantes para certos indivíduos pode tirar a capacidade do mesmo de parar, os ensinarei a medir o peso de cada morte.

 

— Assim como você, vingança, nua e crua para fazer com que a marca penetre fundo o bastante e sirva de lição a aqueles que se acham deuses de algo além de suas vidas, a única diferença são as proporções dos nossos alvos e os motivos pelo qual os  queremos mortos para… “passar nossa mensagem”.  

 

Sua atenção voltou para mim, os olhos dourados me analisando fixamente.

 

— Eu não tenho direitos aqui, mas minha viagem e pesquisa valeram algo mesmo que eu tenha que insistir muito, eu quero uma audiência com seu mestre, O Abutre que Tudo Vê, para renascer por completo preciso reaprender tudo que me foi ensinado na fundação e me tornar a arma perfeita para destruí-los.  

 

O arrepio em minha nuca se solidificou nos segundos que se seguiram, o medo deixou de se tornar um incêndio apenas para que fosse o alimento necessário para manter minha compostura. Minhas pernas tremeram, meus joelhos cederam quando um pesado lençol invisível aos olhos caiu sobre mim, de joelhos aos pés da escadaria eu fiquei confuso pelo medo estar tão distante, olhei para onde o homem estava com minha visão escurecendo ao ponto de ver apenas um silhueta. Eu estava lúcido o suficiente para distinguir a silhueta de Marcelo e com certeza a “pessoa” que eu estava vendo na beirada da consciência estava longe de ser ele. 

 

A silhueta do homem esguio estava em pé no topo da escadaria, seus traços encobertos pelas sombras que turvavam cada vez mais minha visão, uma luz forte vinha de trás dessa figura o que tornava mais difícil tentar encará-lo. O que senti em seguida foi o abraço frio da inconsciência, encolhido em um campo de sombras que me cercavam de todos os lugares e direções possíveis, me encolhi cada vez mais certo de que tinha conseguido algo, algum tipo de progresso para alguma direção. Soltei um suspiro que guardei desde que entrei no shopping, uma espécie de peso deixando meu espírito enquanto aguardava o que quer que fosse acontecer acontecesse… até lá, essa tranquilidade era bom. 

 

Eu estou tentando e sempre irei tentar, Mirella. 



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