Volume 2

Capítulo 45: Pouco a Temer

[Sábado 17 de setembro de 2412, 21:27 da noite]

Glória Merial Bellagio Aurora Áureo

 

O vento balançava as folhas e a brisa fria era de alguma forma reconfortante, olhei para baixo da colina onde estava, a visão do imenso lago negro que refletia as estrelas do céu noturno era lindo. O lago por si só era encantador, grande parte de sua extensão sendo coberta pela floresta com a parte em evidência sendo a que ficava em frente a minha casa do bosque. Mesmo de longe eu podia ver Sammy e sua amiguinha conversando no pier, essa visão fazia um sorriso nascer em mim. 

 

Meu neném está crescendo muito rápido.

 

Tirei um cigarro do bolso interno do meu sobretudo, o colocando na boca, ponderei antes de acendê-lo olhando para o céu. Eu realmente nunca fui uma viciada e nem nunca vou ser, mas o fumo distrai minha cabeça, me entretem, depois de ler todos os mais de dez mil livros da biblioteca do meu pai, fica difícil achar algo para distrair minha cabeça. Acendi o cigarro, tragando enquanto colocava meu isqueiro no bolso, retornei minha atenção para Sammy e Maya no pier.

 

Sammy odeia quando eu fumo, mas ele está muito longe daqui para saber… hi hi.

 

Me recostei na árvore atrás de mim, me remexendo até achar a posição ideal como um travesseiro, quando finalmente a achei, comecei a meditar. Sammy está evoluindo rápido, isso era o esperado, mas também tinha esperança de vê-lo crescendo mais devagar, se eu pudesse controlar o tempo; com certeza o faria eu mesma, mas tenho que vê-lo crescer sem poder tratá-lo como queria o tratar. Minhas dragadas curtas faziam o cigarro durar mais tempo, mas era difícil até mesmo me concentrar em fumar quanto mais fundo meus pensamentos iam. 

 

Eu tinha tantos planos… tantas metas… só queria ser a mãe que sempre sonhei em ser.

 

Tratá-lo como um bebe, mimá-lo, dar a ele todos os apelidos fofos na minha cabeça… eu sacrifiquei isso para que ele aprendesse a ser auto suficiente, sacrifiquei isso para que ele crescesse antes da hora. Que porra. Quanto mais fundo pensava, mais dificil era conter minhas lágrimas, elas deslizavam pelo meu rosto enquanto eu tentava conter os soluços, tantos sonhos arruinados por um maldito emissario e seus arautos. Cerrei meus punhos, contendo minha raiva para que a atmosfera sensível não fosse influenciada pelo meu humor em declínio. 

 

Reabri meus olhos, marejados e carregando um calor do qual eu estava acostumada e até mesmo gostava. Nunca vou poder ser a mãe que ele merece, apenas a mãe que ele precisa ter para crescer, se desenvolver e quando eu me for… meu único consolo sera saber que eu o preparei para os males que nos perseguem, esse se tornou meu papel, eu vou te ensinar tudo e fazer parecer o mais divertido possível… me perdoe Sammy. Me curvei colocando meus cotovelos nos joelhos, uma aperto no meu peito sugava minhas forças. 

 

Preciso deixar meu presente antes de partir.

 

Vanilo, eu sei que ele está no meio disso, eu sei o quanto ele despreza minha existência e o que o faz desprezar ainda mais é saber que tenho mais potencial que ele desde o meu nascimento. Vincent me visita nos raros momentos que sou capaz de dormir, sua presença como um espírito nunca vai suprir a falta que me faz, mas é o suficiente para manter a saudade em um nível “aceitável”, nós temos planos, planos que precisam ser executados e os passos estão prestes a começar. A última tragada veio junto com os ventos frios da noite, me recostei novamente na árvore colocando meus pensamentos em linha.

 

O primeiro passo está sendo dado.

 

— A presença de Marcelo está mudando, seu despertar começou, me desculpe por duvidar da sua palavra, Filha. — Os passos do meu pai eram difíceis de serem escutados mesmo com o chão coberto de folhas caídas, com o canto de olho o vi se escorando em uma árvore ao lado, seu olhar direcionado ao pier onde estava Samuel. 

 

— Era uma questão de tempo, mesmo tendo crescido sob a percepção de um humano, ele era inteligente o bastante para encontrar a verdade dentro de si, mais devagar que Vincent, mas com um potencial idêntico…— Inclinei a cabeça me deixando sorrir vendo Sammy e Maya brincando. — Você já abriu a caverna? — perguntei. 

 

Meu pai deu alguns passos para ficar próximo a mim, ele se sentou nas raízes expostas da mesma árvore onde me recostava, um suspiro característico de quando ele estava escondendo seu sorriso saiu enquanto se sentava. Meu pai e eu somos parecidos de muitas formas, a frieza e introdiosidade, o carinho tímido entre muitas outras coisas… mas o que temos de idêntico é o ódio e a facilidade que temos de nos controlar mesmo sob os pensamentos mais maníacos. Por sorte Sammy tem uma raiva silenciosa mais semelhante a Vincent… espero que continue assim. 

 

— O local está pronto, os astros estão se alinhando, a presença espiritual do Samuel é mais intensa do que a minha mesmo nos momentos mais irritados, mas com a cortina da Dama isso pouco afeta o rito… uma pequena preocupação está quando sairmos da proteção da cortina, as pessoas comuns podem acabar muito mal se Samuel se irritar em um lugar movimentado, ou até mesmo só ficar perto dele, mas até lá, ele já vai saber o que fazer.

 

— Ser um numen e com a singularidade da telepatia junto com a energia de dois deuses exteriores e um filho da morte correndo por ele tornará o autocontrole uma necessidade, por isso ele precisa aprender a controlar suas emoções… mesmo que eu odeio a forma de aprendizagem disponível e queira apenas lhe dar um selo para isso. — Senti Volusia se remexendo dentro de mim, seus pensamentos se traduzindo em minha em minha mente enquanto me confortava mas na arvore. — Marcelo despertara, só quero deixar claro que minha certeza vem do fato de que ele precisa despertar, a presença de uma alma recém evoluída para sua verdadeira forma fará o espírito de Sammy também crescer.

 

Meu pai riu, seu sorriso tão sereno que seu rosto parecia completamente diferente. 

 

— Vincent tinha um talento incomparável, mesmo sua família sendo do círculo baixo da Aurora, ele tinha dons fortes mesmo antes de eu levá-lo a uma audiência com a Filha do Paraíso. Marcelo se tornou um cético quando jovem, isso infelizmente o atrasou quando suas buscas por conhecimento o levaram para poderes de fora ao invés de buscar dentro de si, mas com o tempo ele abriu os olhos, ele será forte, seus despertar fará com que algo grandioso ocorra, gostaria de estar lá para ver… mas ver Sammy e a pequena Maya brincando acalma minha alma de uma forma que apenas o seu sorriso e o da sua mãe faz.

 

Ouvir isso fez com que o sorriso em meus lábios se tornasse mais nítido, é óbvio que ele tinha isso em mente, queria criar seu “paraíso” me fazendo sorrir enquanto assisti Sammy e Maya. Queria julgá-lo pela manipulação, mas o sorriso e a visão distante me deixava de muito bom humor para fazer isso, a satisfação me deu o incentivo necessário para começar minha ação, me concentrei deixando o foco, a energia purificada dentro de minhas reservas, correr pelo meu corpo enquanto mudava minha forma com a dádiva única de Caelum. Meu corpo começou a encolher e minhas roupas se transfiguravam para se tornar parte da nova forma que estava assumindo.

 

Toquei o chão com quatro patas, meu corpo coberto por pelos vermelhos com exceção das minhas patas e cauda eram cobertos por pelo negro e a parte inferior do meu corpo era coberta por pelos brancos. A forma de uma raposa vermelha passava despercebida pelos olhos comuns, meu tamanho reduzido era apenas um mero inconveniente, me espreguicei com um bocejo confortável me preparando para minha viagem. Meu pai soltou uma breve risada enquanto passava por ele para contornar a colina. 

 

— Sininho… 

 

Parei minha caminhada ouvindo sua voz me chamar.

 

— Sei que tem tantos motivos quanto eu para matar o Leproso, mas quero estar lá com você, quero estar lá para cuidar de você e te ajudar com seu objetivo, então… quando for para aquela casa amaldiçoada, chame por mim, Filha. — Sua voz profunda tinha um toque de emoção raro, uma fragilidade que poucas pessoas já viram.

 

Eu sei pai, eu… agradeço.     

 

Parti sem esperar uma resposta mental a minha, me movendo com fluidez pelo chão da floresta, os pensamentos se tornavam mais assertivos enquanto me direcionava a uma fenda do umbral. Chegando nas pedras da cachoeira próximo de casa, me sentei sobre as patas traseiras para ver Sammy e Maya, conversando e sorrindo com Samuel tendo um livro em suas mãos, ve-los felizes fazia uma sensação quente preencher meu corpo em forma de raposa. Prometo voltar a tempo para fazer seu chocolate quente para você e sua amiguinha, meu bebe. 

 

Suprimi a vontade de ir até eles para me virar em direção a cachoeira de queda vertical, a água descia pelas muitas pedras e o musgo crescia em algumas. Pelo canto, uma caminho estreito dava acesso para uma caverna atrás de uma parte côncava da cachoeira, meu tamanho e agilidade me permitiram alcançar sem muitas dificuldades, me sacudir para tirar o excesso de água dos meus pelos e segui para dentro da caverna. Quando a luz e o som da água estavam ficando fracos, uma nova luz começava aparecer saindo das paredes da caverna.

 

Musgo fluorescente brilhava em azul emitindo sua luz ao redor, o brilho era ligeiramente discreto, porém a quantidade de musgo azul nas paredes e demais plantas fluorescentes iluminavam bem a caverna com sua luz azulada. O caminho se abriu um pouco para abrigar um local côncavo na caverna, o caminho seguia pela a direita levando para as profundezas, mas já havia chegado aonde queria. Dando minha atenção ao local côncavo, no fundo da cavidade na caverna, havia um altar um pouco maior que uma estante.

 

O altar era uma mesa de pedra escura com uma construção que lembrava a miniatura de um templo com as portas abertas e com uma pequena árvore saindo pelo teto da miniatura. A cor do pequeno templo era preto e dourado com algumas outras cores o enfeitando, os galhos da árvore que saia pelo seu teto eram azuis e pulsava levemente enviando partículas que preenchiam a cavidade da caverna. Me aproximei do altar sentido a fenda que deixava a energia da penumbra fluir para realidade e ao mesmo tempo, havia um sentimento de atração quando parei em frente ao altar. 

 

 

Comecei a crescer novamente, partículas douradas e escuras saindo de mim enquanto voltava à minha forma humana. Com duas pernas novamente e polegares opositores, afanei meu casaco para tirar algumas folhas presas, dei minha atenção ao altar que seria minha passagem para onde quero ir, os anéis em meus dedos vibraram quando comecei a abrir a porta para a energia na atmosfera. Os altares de Sussurros são intermediários entre a realidade e a penumbra, permitindo uma passagem segura em ambos os lados.

 

Abra.

 

Os galhos brilharam um pouco mais forte, atrás do altar, a parede de pedra começou a ficar límpida como um espelho e refletia o que estava a sua frente. Me deixei ser puxada para a passagem, uma breve distorção na atmosfera seguido por um piscar de olhos, a caverna parecia a mesma com exceção de pequenas coisas, as partículas flutuantes agora se transformam em borboletas com suas asas feitas de luz opaca que se moviam como fios de seda em suas costas. As borboletas me evitavam, se afastando enquanto caminhava para a passagem por onde entrei na cachoeira. 

 

Nossa verdadeira casa… quero que Sammy veja esse lugar.

 

Tinha menos água fluindo pela cachoeira, a tonalidade era mais cristalina e algumas pedras brilhavam de dentro para fora abaixo da água. A atmosfera escura da penumbra era combatida pelas inúmeras borboletas voando por toda a parte, “postes” antigos emitindo luz amarelada rodeavam o lago que agora tinha sua água sendo um reflexo perfeito do céu noturno, olhei ao redor sentido o ar carregando de energia e me preparando para sair do meu local seguro. Comecei minha caminhada entre as pedras, saltando até chegar na margem coberta por folhas do bosque escuro. 

 

Antes de virar as costas para o lago, olhei para a réplica do pier, vendo um acúmulo de partículas amareladas e pratas onde Samuel e Maya estavam na realidade. Havia duas pequenas criaturas orbitando as partículas vestigiais, Sammy e Maya são seres muito mais espirituais do que humanos comuns, assim como eu e meu pai, nossa raça… queria tanto saber dessas coisas mais cedo, teria sido tudo diferente para nós, mordi meu lábio engolindo a amargura. Coloquei minhas mãos no bolso, pensando nas lembranças com Samuel e Vincent enquanto começava minha caminhada e cantarolava baixo.

 

Você não vai passar por isso, eu prometo. 

 

Cada vez mais fundo no bosque, o tempo era irregular e quase imperceptível na penumbra, lembrar dos momentos bons do passado transformou a caminha em algo relaxante. Cercada pela completa escuridão que turvava tudo como uma neblina, apenas o céu tinha brilho significativo com suas inúmeras galáxias e constelações, uma aura de luz pálida me rodeava pela herança, isso trazia conforto ao meu espírito. Olhei à minha frente, luz pálida cor de prata formando uma parede que se curvava em direção ao céu em direção a minha casa, o limite da barreira. 

 

Caminhei até está a poucos centímetros da cortina de Lunaria, os sussurros gentis e luz prata esbranquiçada se movendo como névoa e vindo em minha direção. Era como ser abraçada, um abraço de despedida que no fundo queria me fazer ficar, isso me lembrou algo de muito tempo atrás, os abraços de Vincent eram exatamente assim quando eu saía para trabalhar toda manhã e senti isso na energia que acolhia meu corpo. Meu coração bateu mais forte, cultivei a emoção me movendo para fora da barreira, brindando meu corpo com sombras para proteger a luz em meu peito.

 

O ofício sempre será desagravel, mas o movimento deve ser mantido ou nada se produz, engraçado como isso são parecidos com uma maldição. Senti a presença de Vicente no colar acima do meu peito, sua aliança se aquecendo levemente antes que eu abrisse os olhos para a paisagem umbral, uma mata de árvores retorcidas e de madeira cinzenta estava logo atrás de um muro feito de pedras metros a frente da barreira. No muro se abria uma passagem com um arco de pedra, sinos de vento presos ao arco e emitindo seu som.

 

 

Continuei meu caminho entre a barreira e o muro indo em direção a passagem com o arco de pedra, cada passo em direção ao muro fazia o som dos sinos ficarem mais nítidos. A penumbra é bela, uma terra virgem que poucos pisaram e menos ainda conseguiram criar algo e mantê-lo, o motivo estava logo atrás do muro e som dos sinos… grunhidos e sons vinham de além do muro, o estalo de criaturas andando dentro da floresta. Isso deixou de me abalar a muito tempo, mas o frio na barriga e o medo ainda existiam.

 

O que sempre acalmava meu coração era saber que eu tinha um lugar para voltar, alguém para voltar e de certa forma, eu nunca estou sozinha mesmo longe deles. Parei abaixo do arco de pedra, o vento gélido se acalmou também acalmando os sinos, os sons macabros ainda vinham da floresta umbral, é por sempre ter eles comigo que eu sou uma ótima caçadora. Um pequeno sorriso se formou quando o calor saindo da aliança se estabilizou em meu peito, minha casa, meus meninos, minha vida, posso me afastar com apenas uma certeza: são parte de mim e…

 

Eu sempre vou voltar para vocês.



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