Volume 2

Capítulo 44: Velhas Lembranças II

[Sábado, 17 de setembro de 2412, 20:50 da noite]

Ciro Khan Al-Abadi.

 

Gotas contínuas caíam do teto ao chão, o som delas ressoando dentro de mim, preenchendo minha mente vazia. No canto dentro do nosso novo e acabado esconderijo, uma casa abandonada e com fungos até o último átomo… esse era o único esconderijo disponível? Negativo, é apenas uma forma de punição do Sr.Pólios por nosso fracasso e passar os últimos quatro dias aqui e com ele, é uma tortura. Eles estão se movendo, os estrangeiros tentando pegar Marcelo, já eu estou aqui com essa aberração.

 

Servindo de babá. 

 

Passei meus olhos pelo lugar, como fiz muitas vezes, em busca de qualquer coisa para aliviar minha raiva, devo ter decorado cada centímetro dessa casa. O teto cheio de rachaduras deixava plantas crescer entre elas e suas fendas permitiam que a água da chuva entrasse como gotas que se arrastavam pelo teto cheio de bolor antes de cair, o chão tinha seus azulejos quebrados e deixava o mato crescer entre suas rachaduras, a sala só tinha uma bancada improvisada feita por Bartolomeu. Olhei para as costas do sujeito, mexendo em algo em sua bancada como tem feito nos últimos quatro dias.

 

Um lampião de querosene iluminava a bancada e apenas um pouco da luz conseguia me alcançar, desviei minha atenção para a chama dentro do lampião,  sentindo-a intimamente. O fogo nasce de mim sem precisar de explicações ou lógicas programadas em feitiços, sem precisar de rituais e etapas de preparação, o fogo faz parte de mim… mas nenhum corpo é capaz de fazer parte do fogo. Admirei a chama em silêncio, quase podia ouvi-la cantar para mim. As palavras do Mestre Pólios ressoaram em minhas memórias. 

 

“É dito que o caos brilha mais forte dentro dos portadores da sua singularidade, você vai gostar deste novo continente, a densidade do Véu é menor e possui muita diversidade esotérica… talvez você até possa se libertar”.

 

As últimas palavras se repetiram diversas vezes em minha cabeça.

 

— Me libertar… 

 

No passado, antes de Volusia ou Pólios, ter meu dom me deu muitas vantagens e me garantiu seguidores, templos, fortuna e muito mais. Mas sempre tem que haver mudanças e elas chegaram, migrei para um novo lugar, uma nova era para plantar minhas raízes na história dentro de um reinado em ascensão… mas tudo se foi rápido demais, minhas conquistas se esvaindo como areia pelos meus dedos, a Velha nunca entenderia o real poder que tinha, então apenas… o tomei para algo melhor. A memória daquela noite se materializou em meu consciente, mas rapidamente mudei minha atenção.

 

Pensar no inútil me dá menos arrepios.

 

Eu lembro quando Bartolomeu ainda tinha alguma beleza no rosto a oito anos, mas toda a arrogância e prepotência de um belo errante se foi quando seu diabo o trouxe de volta. Seu manto marrom tinha inúmeros remendos, faixas encardidas que impediam a visão além dos rasgos, as calças terminavam dentro do cano longo de suas botas de couro, ele estava resmungando enquanto começava a polir algo, suas palavras enroladas com seu tom que variava de uma criatura infernal a sua voz estridente. O capuz que cobria sua cabeça era a única parte intacta de sua roupa, e isso era muito bom. 

 

Existem alguns tipos de inteligência, mas a maior delas é nunca se envolver profundamente com os poderes vindos de demônios.

 

— Pedaço de lixo! — rugiu, se virando para trás e arremessando algo que estava em suas mãos.

 

Mantive-me parado, acompanhando tudo apenas com alguma surpresa, seus suspiros de raiva, parecendo uma besta, suprimiam os demais sons do ambiente. Ele se virou para a bancada, pegando um martelo e batendo em tudo que estava lá, xingando e gritando maldições para nomes aleatórios. Olhei para a coisa que ele havia arremessado, de longe parecia tijolo branco como alabastro alojado na parede por causa do arremesso, mas percebi que era muito mais importante do que isso. Eu me levantei do canto onde estava, me aproximei do “tijolo branco” o tirando com cuidado da parede. 

 

O útero da semente… que caralhos?! 

 

O “Útero” é o catalisador para criar mais uma passagem de conexão do Sr.Pólios para a realidade material. A aparência de um tijolo de mármore com inúmeras linhas e sigilos conectados formavam padrões maiores e mais complexos, foi feita pelo próprio Pólios. Dentro está uma parte de seu poder que “Nascerá” quando o ritual da semeação, a Semente. Olhei para Bartolomeu, que havia parado com seu chilique e estava virado para mim, podia ver o medo nos olhos vermelhos abaixo do capuz e panos que cobriam seu rosto. Ajeitei minha postura, percebendo o que estava acontecendo nesses malditos últimos dias.

 

Filho de uma jumenta leprosa. 

 

— Eu posso… 

 

— Então, nos últimos dias em que pensei estar te protegendo para realizar a tarefa do Mestre Pólios, você está tentando violar o Útero? — Minha presença o paralisou, cessando seus mínimos movimentos.

 

Todas as malditas marteladas, todas as tarefas que tive que fazer para esse verme, tudo por nada, perdi meu maldito tempo! O ar úmido começou a ficar mais leve entrando em meu nariz, as gotas de água que caiam sobre mim deixaram de me causar frio quando encostavam em minha pele, meu sangue borbulhante enchendo cada vaso e elevando minha temperatura corporal antes que o calor começasse a se manifestar minimamente na atmosfera ao meu redor. Eu estava pronto para transformar Bartolomeu em cinzas, mas a presença de Pólios me segurou.

 

Hilário, simplesmente divertido, veja os olhos desesperançosos dele — Mestre Pólios disse com sua voz um pouco animada. — Minha punição para você terminou, plante a semente e mate Marcelo e seus acompanhantes antes que os Americanos os peguem, depois disso, faça o que quiser com o servo do diabo. 

 

Que?! 

 

Minha feição vacilou, minha visão se desfocou observando os últimos dias em minhas memórias mais recentes. Sr.Pólios sempre foi criativo em suas punições, percebê-la deixou um gosto amargo na boca com as lembranças de ter que cumprir os desejos de Bartolomeu, buscar ferramentas, comida e sacrifícios. Pólios já sabia o que ele estava fazendo e sabia disso?! Uma risada escapou, seguindo meus instintos, me controlei, controlei meu dom, impedindo o superaquecimento. O fogo do lampião ficou mais forte com minha influência, seu brilho oscilando a cada passo que dava em direção a Bartolomeu.

 

— Qual era o acordo? — falei, sobre um assustado Bartolomeu. 

 

Sua cabeça foi em direção à porta atrás de mim, a presença manchada por traços demoníacos entregava que eram mais servos do Diabo Belial. Eram quatro, duas mulheres e dois homens, todos fediam a enxofre e suas presenças maculadas me davam ânsia de vômito. Um dos homens tinha seu rosto coberto por uma máscara de couro com buraco apenas para os olhos e furos à frente do nariz, um tecido preto por debaixo da máscara me impedia de ver seus olhos, os outros três estavam com canalizadores enferrujados. O que Pólios está tramando… está difícil pensar no momento.

 

— Entidade Ciro, viemos pegar a Semente que no momento está na sua mão esquerda, entregue-a e poderemos seguir com nossos caminhos. — A voz abafada do Errante mascarado me trouxe muitas respostas junto à ameaça. 

 

Pólios… seu… 

 

Talvez eu esteja pensando muito longe ou talvez algumas peças estejam se encaixando, acho que estou entendendo algo. Mestre Pólios sempre mostrou repúdio com qualquer coisa ligada aos demônios, então quando ele enviou um servo de Belial para auxiliar no plano de capturar a Família do Bellagio, uma semente de curiosidade foi plantada na minha cabeça: por que essa mudança repentina? Nada é ao acaso com o Pólios, cada palavra e ação tem algo por trás, isso eu aprendi na idade média, basta tentar deduzir que planos ele tem aos servos do inferno. 

 

Talvez isso seja parte da minha punição, talvez ter ficado desinformado para ser pego de surpresa nesse momento seja a forma que ele encontrou para mostrar seu desagrado. Estou refletindo muito nesses últimos dias, os séculos que perdi movido pela soberba de ter um poder “invencível” e me esqueci de quem eu era, me esqueci do que queria fazer no passado, isso é tão verdade que nem mesmo agora eu lembro o que eu queria fazer antes de roubar uma simples gota do poder de Volusia. Estou estagnado, mas preciso provar que isso é temporário, apenas um buraco no caminho.

 

“Uma arma, é isso que eu preciso que você seja, para remodelar esse mundo”.

 

— Que assim seja…

 

Quanto mais calor se acumulava entre meus músculos, mais lembranças voltavam à tona e mais eu vejo coisas que nunca tinha visto nesses últimos dias. Eu e o Sr.Pólios já tivemos inúmeras conversas sobre um de seus assuntos preferidos: “O norte”. Eu sempre odiei olhar para o meu passado pela falta de lembranças antes de Volusia e isso sempre era usado contra mim por Pólios em nossos debates, mas nesses últimos dias eu tenho pensado cada vez mais no passado, tentando lembrar o que perdi de mim mesmo nele. Me preparei como me foi ensinado á séculos, um estilo mais antigo do que o ser que agora está o usando. 

 

Usando o calor do meu corpo apenas para aumentar meu desempenho físico, o primeiro a se mover foi um homem parrudo com um facão enferrujado com runas incrustadas no metal. Me inclinei para que a lâmina passasse à minha frente, o cheiro do enxofre ficou mais forte ao ponto de inutilizar meu nariz, segurei seu braço quando estava na linha da cintura com minha mão direita e segurei firme  o Útero, guardando a semente do Pólios com a esquerda. Com um movimento rápido, eu o enfiei no crânio do homem parrudo, com sangue morno caindo em meu rosto. Joguei o corpo para a presença vindo por trás.

 

Preciso lembrar.

 

Peguei a mulher magrela que vinha atrás do homem pela garganta, meus dedos se alojaram na carne como se fosse barro e a puxei. Uma ponte de sangue se formou entre minha mão e a garganta da magrela, joguei o pedaço da garganta no mascarado, me impulsionando para cima em uma acrobacia; desviei da segunda mulher que tinha cabelo curto, pulando por cima de sua investida. Pousando, avancei contra o mascarado, emitindo energia infernal na atmosfera, interrompendo sua concentração, iniciando uma  troca de golpes com a mulher de cabelo curto, também se intrometendo com uma adaga. 

 

Lembrar de quem eu era.

 

Mesmo com um deles com arma nas mãos, ambos eram insuficientes, os poucos cortes que me causaram eram rasos e a energia era indisciplinada, com minha regeneração a ignorando. Com uma abertura entre meus golpes irregulares, golpeei a garganta da mulher, seus olhos se arregalam e sua mão soltou a adaga. Peguei a adaga antes que caísse no chão, trocando poucos golpes com o homem antes de a mulher abraçar meu torso tentando abrir uma abertura para seu parceiro. Era admirável, mas extremamente irritante. Apunhalei a adaga em sua nuca, espirrando sangue em mim mesmo. 

 

Lembrar do que eu queria ser.

 

Joguei o corpo mole da mulher para o mascarado, dando a abertura de que eu precisava. Um golpe me veio à mente, um mais recente e interessante. Abaixei meu centro de gravidade dobrando os joelhos e me reerguendo rapidamente com um meio giro, fiz minha força subir elevando os joelhos e girando o corpo colocando a força em direção ao punho, porém, diferente de como Marcelo fez comigo em nossa luta, estiquei meus dedos para que fizessem o papel de uma lança atravessando a barriga do mascarado e a parede atrás dele. Parei momentaneamente, puxando ar e me prendendo ao momento. 

 

Preciso lembrar de quem era para poder me moldar hoje, para ser mais forte.

 

Retirei meu braço do estômago do homem, ele caiu cuspindo sangue através dos pequenos buracos da máscara, seus gorgolejos terminaram em silêncio. Admirei a paisagem mórbida, já vi muitas salas cheias das minhas vítimas mortas, mas essas eram diferentes… me trazia memórias de quando eu matava outros magos e seus seguidores, memórias de quando eu dançava sobre brasas incandescentes com meus seguidores. Minha animação se foi com um pulsar da maldição, assumi o controle dos meus pensamentos, esperando que os tentáculos invisíveis voltassem a dormir.

 

Uma lembrança completa… já é uma vitória.

 

Olhei para um assustado Bartolomeu encolhido no canto da sala, a luz oscilante do lampião se estabilizou pela minha vontade. Caminhei até o homem parrudo, arrancando o Útero que alojei em sua testa, limpei o catalisador nas partes sem sangue das minhas vestes antes de guardá-lo em segurança no interior do meu manto. Quando olhei para Bartolomeu novamente, o primeiro desejo que tive foi queimá-lo e usar suas cinzas para pintar as árvores, mas tive que me conter. Caminhei até ficar diante dele, um arrepio em minha nuca elevou minha guarda. 

 

— Tanta violência, eu realmente admiro isso, mas nesse momento eu preferiria uma abordagem mais profissional, Arauto de Pólios. — A voz de Bartolomeu estava cheia de confiança e elegância, tais que nunca vi nele.

 

Mantive-me diante do homem encolhido no canto, percebendo a mudança sutil em sua presença e na atmosfera ao nosso redor.

 

— O próprio Diabo se manifesta, ou quase, pensei que sua imponência fosse maior do que… isso. 

 

As paredes de blocos começaram a esfarelar ao redor de Bartolomeu, os bolores no teto cresceram mais, liberando um cheiro podre no ar. As plantas começaram a morrer e a luz do lampião oscilava mesmo estando sob minha influência. A presença de demônios tem o mesmo efeito que a minha sobre os seres comuns, eles travam, o medo de nossos semblantes ativa esse instinto perante nós, a mesma coisa acontece com entidades, mas o medo em mim era algo que tinha capacidade de controlar. O que faz um príncipe do inferno se manifestar aqui? Curioso. 

 

— Os filhos do Abutre são sensíveis a energias infernais, tenho pouco tempo antes que venham aqui, se já não estiverem vindo… proponho um acordo, Ciro, me dê a Semente e eu te livrarei da maldição. 

 

Estreitei meus olhos, tentando ler sua postura, mas a visão de um homem encolhido com a cabeça entre as pernas me dizia muito pouco.

 

— Por quê? Por que a Semente? E por que deve acreditar que você pode remover a maldição que nem mesmo Pólios conseguiu?

 

Os dedos de Bartolomeu começaram a se apertar, mostrando impaciência. 

 

— Os Aurora, a velha Morte, têm meios incríveis de punição, algo que seus filhos ensinaram aos seus seguidores. Pólios já teve contato com os poderes vindos dos Eminentes, mas eu estudo o Fio da Vida e o Obscuro há milênios, antes mesmo de o seu mestre adentrar esse universo pela Margem. Como acha que coloquei a alma deste imprestável de volta no corpo morto? Eu sou sua cura, ou o mais próximo que você terá de uma cura, Ciro.

 

Hm…

 

Coloquei minha mão entre meus mantos, puxando o Útero que guardava a Semente, olhei para o retângulo de mármore trabalhado, sentido a presença do mestre Pólios dentro. Estar livre da maldição me ajudaria a reconstruir minhas forças, me ajudaria a ser mais forte que antes, mas e depois disso? Ser servo de um Diabo? Isso está abaixo do meu nível, abaixo de quem eu sou… ou era. Com Mestre Pólios, eu me libertei de Volusia, me libertei do meu comodismo. Eu posso ser mais com Pólios e essa maldição do que sendo um cachorro do inferno.

 

Notei a mão estendida de Bartolomeu, tremendo de ansiedade, sua pele com inúmeras ulcerações e furúnculos me dava nojo. Guardei novamente a semente em meus mantos. Bartolomeu fechou a mão com seus dedos estalando enquanto a levava de volta ao corpo, dei as costas para ele, começando a me conectar a uma fenda na primeira camada do Véu, me preparando para finalmente entrar em ação e provar minha força. Matar Marcelo, a morte que irá me trazer minha redenção.

 

Estabilizei a fenda, sendo quase imperceptível na realidade, apenas aparecendo como uma distorção translúcida pouco brilhosa em forma de porta na atmosfera. A energia começou a sair da fenda, enchendo o ar e trazendo consigo uma brisa cheia de sussurros. Olhei para Bartolomeu, que havia se levantado e estava olhando para mim através do capuz e trapos que cobriam seu rosto. A presença mudada mostrava que o Diabo Belial ainda era quem estava no controle do corpo. Os olhos inteiramente vermelhos refletiam a luz do lampião em uma pequena fenda dos trapos em seu rosto.

 

— Veremos o quão longe vai sua força, Ciro.

 

Veremos.

 

A presença mudada se foi, restando apenas o pequeno Bartolomeu. Ele ergueu as mãos quando o agarrei pelo colarinho. A criatura que se mantém viva com um ritual do inferno era fraca, seu corpo podre era um ninho de vermes e podridão, sua aparência desfigurada refletia o estado podre da alma moribunda presa dentro de um saco de carne morta. Eu realmente nunca quero acabar assim, minha morte será gloriosa e eu serei meu próprio dono quando ela chegar. Entrei na fenda, puxando o errante comigo, os sussurros se intensificaram antes de uma leveza sobrenatural me elevar.

 

Hora da caça. 



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