Volume 2

Capítulo 43: Passo a Passo

[Sábado, 17 de setembro de 2412, 18:08 da tarde]

 

As lâmpadas dos postes de luz já estavam acesas, com a paisagem acomodando o início da noite. A rua na encosta do rio da cidade era linda de se ver com essas luzes acesas. A calçada feita de tijolos tinha árvores com grandes folhagens, bancos a cada vinte metros virados para o parapeito que dava visão para o rio negro. Do lado contrário ao rio, tinha casas entre comércios pequenos e vielas ricamente decoradas com flores e grades de jardins que também davam acesso a outras casas. Em uma dessas vielas, Belinda estava estacionada em um canto, iluminada por um poste. 

 

— Eu posso ir com você, Armando consegue montar as armadilhas e rituais, mesmo que só um deles esteja lá, ainda é perigoso… — Hana disse sem ocultar a preocupação em sua voz.

 

Eu me virei para ela, seus olhos castanhos misturados com âmbar, os sulcos em sua pele se conectavam sem formar padrões e com grandes espaços entre si. Eram como rachaduras em sua pele bronzeada, o cabelo cortado na altura dos ombros sem penteado, rosto maduro e olhos gentis. Talvez eu fosse muito cego antes ou minha memória seja uma merda, mas eu nunca reparei que ela era tão linda assim. Sua presença me dava segurança, força e… me deixava feliz. Coloquei minhas mãos em suas bochechas, trazendo-a perto para beijar sua testa. Vê-la assim me dói, mas tem coisas que terei de fazer sozinho.

 

Que quero fazer sozinho.

 

— Eu vou ficar bem, serei apenas um chamariz, mas nós vamos pôr um fim nisso juntos… eu prometo — falei, olhando seus olhos. 

 

Ela sorriu, essa pequena e simples ação a fez ficar ainda mais linda. 

 

— Finalmente, estou vendo o homem que eu amo sair da concha. 

 

Sorri, dando mais um beijo em sua testa, nos afastamos com meu coração palpitando de uma forma que me fazia tremer. Repassei as próximas partes do plano, seguindo a linha original, já que até agora tudo saiu como queríamos. Nos despedimos com ela entrando no carro e vi o acenar de mão do Armando no banco do passageiro quando ela abaixou o vidro para me passar a pasta que Valdemir havia nos dado mais cedo, Armando deixou de se concentrar no que estava fazendo para se despedir. Olhar ambos da forma que estavam… felizes mesmo apesar de tudo…

 

Era uma sensação sem igual.

 

— Boa caçada — dissemos em uníssono antes que eles subissem estrada acima. 

 

Observei o carro sumir da minha visão, seguindo a rua acima levemente inclinada, o maior som era o que vinha do rio, a água se movimentando ocupou meus pensamentos. Olhei o arquivo em minhas mãos, eu já tinha o visto, mas queria dar uma última conferida antes de descartá-lo. Isso é pouco natural já que toda informação que temos fica guardada, até mesmo quando são feitas cópias como essas em minhas mãos, mas algo em mim queria muito fazer isso. Eu abri o arquivo, lendo os textos em chinês e absorvendo as informações de artes e textos que já tinha visto.

 

— Nascido em algum ano entre 200 a 300 na era denominada de “Antes de Cristo”, Ciro Khan Al–Abadi nasceu em algum reino antigo no oriente médio, mas por algum motivo desconhecido foi para a Pérsia em seu início e se tornou influente, fundando uma religião em seu próprio nome. Seus seguidores eram poucos, mas fanáticos e graças a isso alguns registros puderam ser feitos — sussurrei para mim mesmo.

 

Me senti desapegado lendo cada pequena letra e vendo as ilustrações feitas, era uma sensação de… decepção. De todos os poucos dados concretos e realistas desse artigo, seu maior trunfo é o dom raro da Pirocinese, isso é algo que supostamente foi confirmado pelo estudo desses dados, a capacidade de produzir e controlar fogo sem precisar de feitiços ou rituais, assim como Samuel, Glória e Vincent podem ouvir os pensamentos de outras pessoas e Vincent podia controlar o próprio sangue, tudo isso sem obras. Dons, essas capacidades únicas costumam ser genéticas. 

 

Interessante.

 

Voltei minha atenção para as últimas páginas do arquivo, onde o “Mago das Areias Esquecidas” desapareceu junto aos seus seguidores após assassinar um monge que era um dos antigos receptáculos da força Volusia. Fechando o arquivo, ler tudo isso apenas me provou que, assim como hoje em dia, no passado os anômalos podiam ser vistos de duas maneiras: superiores ou aberrações. Hoje em dia, pende mais para a segunda opção com o avanço da ciência e isso é muito bom porque evita coisas assim. Me aproximei do parapeito, vendo a pouca luz dos postes refletindo na água escura. 

 

Mago das Areias Esquecidas… você é só um bastardo que se recusa a morrer.

 

Tirei meu isqueiro do bolso, erguendo a tampa e riscando a pederneira, aproximei a chama da pasta e deixei-o engolir o arquivo. Era libertador queimar todos esses papéis com dados sobre ele, deixar as cinzas caírem na água e quando já havia queimado quase tudo, liberei meu aperto, deixando que os centímetros intactos afundassem na água do rio, coloquei minhas mãos no bolso com zíper, tirando a última recordação desse encosto, desdobrei o papel que peguei com Leonardo para ver o desenho de Ciro. Quando vi sua figura sendo engolida pelo fogo do isqueiro, me senti mais leve. 

 

— Vamos resolver isso hoje… Ciro. 

 

Guardei o isqueiro colocando minhas mãos no bolso, o sentimento de decepção ainda permeava minha mente, era difícil conter isso. Indo em direção ao outro lado da rua, comecei a passar pelos comércios abertos e casas enquanto subia a estrada acima divagando. Tentei me recusar a pensar o porquê estava tão decepcionado ao ler aquela pasta, mas a verdade estava óbvia: eu perdi muito, muito mais do que Vincent, amigos e dignidade para encontrar alguém tão… desprezível. Machuquei meus amados com minha obsessão, tudo foi por essa coisa e, no final, ele é… apenas isso. 

 

Olhei de canto em uma das lojas abertas e meu corpo parou pela curiosidade, dei alguns passos para trás para olhar o vitro da loja e ver o que queria. Eu sinceramente, além da vingança, eu acreditava que se matasse essa coisa estaria salvando milhares de vidas. Em partes: sim, estarei salvando muitas vidas, mas olhando de forma fria e racional, as vidas que eu impeço que ele tire, outra criatura ou entidade vai tirar, eu superestimei ele e negligenciei meu dever como mensageiro, amigo, namorado… tio. Minha negligência e raiva devem ter causado mais dor do que gosto de pensar.

 

O passado nos define, o hoje nos molda e o amanhã nos testa. 

 

Passei meus dedos pela vitrine, dobrando meus joelhos sobre os tornozelos, me abaixando para ver melhor os filhotes de cachorros em um cercadinho dentro da loja. Eram dez filhotes com no mínimo uns dois meses de idade pelo tamanho que tinham, diferentes raças brincando entre si e ignorando minha presença, mas havia um que estava deslocado e se moveu até a vitrine, a pelagem preta com uma mancha marrom no peito. Pelos traços, eu podia dizer que era um mestiço entre pastor alemão e um cane corso. Ele me encarou por um tempo antes de colocar a patinha no mesmo lugar onde minha mão estava.

 

Eu adoro cachorros.

 

Cachorros são como pessoas, dá para ver diferentes representações de personalidades humanas em cachorros, desde os altruístas e gentis, até os desprezíveis e nojentos. Eu nunca tive tempo para ter um e evitei justamente por isso, eu quero um animal para me conectar e formar um laço de companheirismo. Talvez no final disso tudo… eu possa te levar para passear no bosque ou te apresentar ao Sammy, mais cachorrinhos vieram em direção à vitrine, fazendo o mestiço se afastar, mas ele ainda me olhava do canto onde estava. Notei que estava sorrindo quando me levantei e marquei o nome do pet shop na memória. 

 

Eu vou voltar, amiguinho.

 

Continuei meu caminho até avistar a placa do bar alguns metros à frente, entrei em uma das vielas vazias antes do bar. Passei meus olhos pelas janelas e portas, o caminho até o bar tinha câmeras, mas andei pelos pontos cegos para caso eles tenham conseguido o acesso dessas câmeras, puxei meu revólver do coldre, a arma de metal escuro tinha algumas estrias com o cabo de madeira clara tendo padrões, abri a arma fazendo pressão no cano para que o tambor subisse. Substitui as balas perfurantes por uma munição especial que preparei.

 

Fechando o revólver, chequei o cão e rodei o tambor antes de colocá-lo de volta no coldre na lateral do meu peito. Puxei o ar frio e úmido da noite, a garoa havia começado a cair, enchendo a paisagem de chapiscos. Olhando para o céu nublado e escuro, poucas fendas entre as nuvens me permitiam ver o céu além delas, estrelas vibrantes brilhando além do cobertor de nuvens escuras. A anestesia que me preparava para a ação veio junto quando comecei a ampliar o aspecto do Esmero. Minha preparação parecia deixar o tempo mais lento, isso me confortava.

 

Sai da proteção da viela caminhando em direção ao bar, a falta de música e movimento em um sábado é estranho para esse tipo de estabelecimento. Um rodapé marrom com “Requintado” escrito com tinta amarela na parte de cima parecia ter sido feito às pressas, os vidros estavam cobertos por persianas meio abertas e permitiam ver alguém lá dentro, mesmo que houvesse uma porta com vidraça e uma placa que dizia “fechado”. Coloquei minha mão na maçaneta, sentindo o arrepio de alerta do presságio quando abri a porta. 

 

As luzes amarelas enchiam o interior do par com um ar clássico, mesas e cadeiras de madeira clara enchiam o salão em formato de L que ficava de frente ao balcão de mesmo formato. O cheiro de cigarros e desinfectante encheu meu nariz junto a outros aromas atípicos, as janelas que davam visão para a rua estavam mal fechadas pelas persianas de frente das estantes de bebidas, atrás do balcão estava o mesmo rapaz “caridoso” que me abordou quando desmaiei na rua, careca, alto, vestido uma camisa simples e sem nada que o fizesse parecer diferente. Me aproximei do balcão onde ele estava, um sorriso se armou em seu rosto.

 

— Estamos... é você… poxa, eu estava preocupado de que tivesse perdido o cartão ou o nome, estamos fechados no momento, mas…

 

Me sentei em um dos bancos do balcão enquanto ele falava, notei quatro celulares na pia à sua frente, ele rapidamente os pegou e levou para uma gaveta distante. Pensei um pouco no que queria fazer e como fazer, olhei ao redor e busquei qualquer outra presença de pessoas, armas enfeitiçadas ou rituais, mas ele era a única presença dentro do bar. Me veio à mente a mulher que estava com ele, a suposta grávida que foi a uma delegacia procurar por mim e não voltou para casa há três dias. A atuação foi boa, usar um enchimento na barriga foi criativo, mas pecou nos detalhes. 

 

— Aqui está: sua chave e um copo de whisky de 10 anos, por conta da casa! — Seu jeito sorridente e despreocupado era quase contagiante.

 

— Onde está sua esposa? — Mexi no copo da bebida com gelo e o aproximei do nariz para sentir seu cheiro. 

 

Sua feição sorridente vacilou por milissegundos antes que uma máscara constrangida se armasse em seu rosto.

 

— Nós… tivemos uma briga, sabe como é? Mulheres grávidas se irritam fácil e eu estou com um problema com roncos.

 

Sorri com os detalhes da história, ele começou a olhar nervosamente para o copo em minha mão, seus olhos indo do copo para mim. Aproximei novamente o copo da boca, mais perto e isso fez um fraco traço de alívio nascer em suas sobrancelhas. Encostei o copo nos lábios, mantendo o líquido longe. O cheiro amadeirado e com textura indicava a qualidade do whisky, mas meu olfato conseguiu sentir muito mais que isso, o cheiro de uma erva sonífera bem conhecida estava misturado ao cheiro rico. Erva de Dolios, a pessoa dorme em poucos minutos, muito versátil. 

 

— Qual seu nome, garoto? — perguntei, afastando o copo dos lábios. 

 

O descontentamento quebrou o alívio e se disfarçou em sua feição.

 

— Alex, Alex Silveira, você…

 

— Não, garoto, seu verdadeiro nome, o nome com o qual você provavelmente foi batizado em alguma igreja do Novo Estados Unidos.

 

Ele olhou para mim como um cervo olha os faróis de um carro prestes a atropelá-lo.

 

— Eu não sei do…

 

— É claro que você sabe, erva de Dolios no whisky, me encontrar na rua em um momento tão específico, eu estava pensando porque vocês demoraram para agir, mas notei algo… vocês queriam, mas algo ruim ia acontecer se tentasse algo naquela rua, você sentiu, né? Uma presença fria se aproximou do meu corpo inconsciente, tem algo dentro de mim que nunca dorme — falei,olhando o whisky batizado no copo.

 

Ele deu alguns passos para trás.

 

— Sabe, aqui usamos outra erva sonífera, mas meu estudo sobre a Fundação mostrou que a Dolios é a que vocês mais usam pela facilidade de cultivar em solos com pouca vida… beba e me diga se tem um gosto bom. — Arrastei o copo até a beirada do balcão em direção a ele. — Vou perguntar apenas mais uma vez com civilidade, qual é o seu nome, garoto? A sua “esposa” falou algumas coisas após um pouco de persuasão.

 

Seus olhos estavam desconexos, desespero era pouco para descrever. 

 

— O que você fez com a Ana?

 

Meu gesto de pegar o celular no bolso o fez dar mais passos para trás até encostar na estante de bebidas. A foto que eu queria já estava aberta com antecedência. A mulher foi uma das capturadas nesses quatro dias. Mulheres grávidas com mais de um mês possuem duas presenças: a própria e a da criança se desenvolvendo no útero. É como uma ondulação na presença delas que mostra um pouco da presença da criança em desenvolvimento. A falta disso apenas confirmou que era um enchimento de algodão. Mostrei a foto da “Ana” presa em uma cadeira. 

 

— Sabe, existem pessoas boas, mas ver bondade sempre faz uma parte do meu cérebro coçar e então surge a pergunta: por que eles foram bons comigo? Uma pergunta leva a outra até que alguns detalhes e coincidências se destacam e a verdade se revela… a casa caiu, garoto. 

 

Seus olhos se afiaram e ele avançou contra mim, jogando uma das garrafas atrás de si. Me inclinei para a garrafa passar com o garoto vindo logo atrás. Vi sua mão vindo até mim em uma tentativa de me agarrar, segurei seu antebraço antes que me agarrasse e o puxei em direção ao meu cotovelo. A pancada fez sua cabeça ir para trás e o puxei novamente, quebrando o copo de whisky batizado em sua cabeça. Soltei  seu braço e ele bambeou para trás com um último soco em sua garganta. O rapaz grunhiu tentando alcançar algo debaixo do balcão, mas meu saque foi muito mais rápido. 

 

Ele parou de se mover ouvindo o engatilhar do revólver, seus olhos me observando aflitos, os cacos de vidro do copo alojados em sua carne e fazendo com que seu sangue escorresse pela lateral de sua cabeça. Esse curto momento antes do disparo costuma ser o lugar onde eu vejo o cerne dos meus alvos, alguns se desesperam, outros tentam parecer frios e distantes, mas existem pessoas que simplesmente aceitam e os mais raros parecem… aliviados, como se o ato de eu puxar o gatilho fosse bom para eles. Após segundos, foi o olhar de alívio que apareceu em seu rosto, ele parecia ansioso por isso. 

 

Infelizmente, preciso de informações.

 

Vulfuw!

 

O som estranho do disparo encheu o bar, fumaça branca saía constantemente do cano, sangue jorrou nas garrafas e algumas se quebraram atrás do rapaz e o próprio foi empurrado pela força do projétil. Um tipo diferente de pólvora cria um som mais “discreto”, as pessoas leigas vão ter dificuldades em saber que é o som de um tiro, o único problema é que a pólvora de quartzo é potente demais para projéteis de material comum, exigindo uma liga metálica especial que suporta a explosão. Assisti à estante de bebidas desmoronar e uma a uma as garrafas caírem. Dei a volta para encontrar o sujeito agonizando atrás do balcão, me recostei, observando as últimas garrafas caírem no chão.

 

— Sabe, eu realmente nunca me senti bem causando dor a outro ser vivo, principalmente animais, mas eu aprendi a ver que algumas pessoas merecem sentir dor e, com isso, eu tive que aprender a como saber quem merece ou não sentir dor... Qual é o seu nome, garoto?

 

Eu o acertei alguns centímetros abaixo da clavícula direita, perto o suficiente do pulmão apenas para causar a quantidade necessária de dor e desespero sem o deixar incapaz. O chão coberto por bebida e vidro quebrado fez um cheiro forte de álcool subir, cada pequeno movimento com os pés fazia os cacos de vidros quebrarem e seu som enchia o lugar. Havia muitos cortes no seu corpo causados pela queda das garrafas, o sangue manchando sua roupa e se misturando com o álcool, sua mão trêmula sobre a ferida do disparo. Ele olhou para mim com ressentimento, uma raiva silenciosa.

 

— Jimmy… Jimmy Brooks… o que você quer comigo? 

 

Eu me agachei sobre os tornozelos, nivelando nosso olhar, abri o revólver para tirar a cápsula vazia e o fechei novamente.

 

— Bom, Jimmy Brooks, eu poderia te perguntar a mesma coisa, mas eu já sei a resposta, então vou te perguntar algo mais profundo. — Aproximei a cápsula do nariz para sentir o cheiro da fumaça branca da pólvora quartzo. — Você acha que eu sou mal, Jimmy Brooks?

 

— Que tipo de pergunta é essa? 

 

— Bom, Jimmy Brooks, eu já matei muitas pessoas, mas na minha concepção, elas mereciam morrer… assassinos, lunáticos, anfitriões, criminosos, eu já matei muito mais humanos do que criaturas vindas do obscuro, a dúvida que vem me à cabeça é: eu sou ruim por isso? 

 

Ele ficou em silêncio, seu olhar dolorido banhado em curiosidade.

 

— Eu sou um caçador, um mensageiro, eu mato monstros… não importa que forma eles tenham. — Dei-lhe um olhar que o fez engolir em seco antes de continuar. — Eu não sou mal, Jimmy Brooks, mas eu sou cruel quando preciso ser, a pergunta é: o quão cruel precisarei ser com você?

 

Deixei o silêncio penetrar minhas palavras enquanto pensava nelas, muitas coisas ficaram mais claras para mim nesses últimos dias. Desde a minha trajetória até o que eu faço, as pessoas que matei eram apenas monstros em formato humano. Na verdade, as pessoas são as piores bestas que já matei e que já cometeram as maiores atrocidades que já vi em nome de alguma entidade ou apenas porque queriam, então o que me faz diferente deles? Agora eu vejo a resposta, apenas preciso entendê-la um pouco melhor. 

 

— Eu farei perguntas de sim e não, se mentir eu vou saber, se ficar em silêncio eu vou te fazer falar, com isso claro. — Coloquei a cápsula vazia no bolso, dirigindo minha atenção a Jimmy. — São apenas oito, agora seis, localizados nessa cidade que estão no continente?

 

Ele evitou meus olhos, parecia estar medindo o que seria pior, notei uma movimentação nos dedos de sua mão direita. Os dois agentes estrangeiros que capturamos tinham um amuleto alojado no cérebro que os impedia de falar certas coisas, isso mostra que são de patente inferior e meio que confirma que têm pouca informação. A demora de uma resposta visível me fez prestar atenção nos detalhes, com o dedo indicador, Jimmy desenhou um N repetidas vezes no chão, o desenho se destacando pela bebida tingida com seu sangue. Mais ratos no país, isso pode ser um problema. 

 

— Estão aqui por uma criança? 

 

Os olhos de Jimmy começaram a se mover de forma irracional pela órbita, notei seu dedo tremendo e a tremedeira se espalhando por seu corpo. Perguntas simples, perguntas avançadas e perguntas-chave, foi isso o que transcrevemos do amuleto no cérebro de um dos agentes. O amuleto trabalhava em sincronia com o córtex cerebral, isso impedia que eles repassassem as informações classificadas nesses três níveis, é um feitiço de alto nível e autônomo que só precisa ser abastecido com pouca energia para funcionar. As informações sobre Samuel parecem ser da classe chave, os outros dois tiveram a mesma reação.

 

A tremedeira de Jimmy parou após alguns minutos e ele parecia pronto para morrer. Comecei a calcular minhas próximas perguntas, mas todas as informações que eu queria tinham uma classe alta. Nesse momento, eu queria muito ter o dom da telepatia da Glória, pessoas com singularidades inatas têm vantagens inimagináveis em muitos quesitos. Estou sem tempo para abrir a cabeça dele e sem os equipamentos necessários para abrir a cabeça dele e deixá-lo vivo para minhas perguntas. Esses malditos amuletos foram uma jogada inteligente. Qualquer um que pesquise um pouco sobre a Fundação entende uma simples diferença…

 

A ordem é brutal, a fundação não tem escrúpulos de qualquer tipo. 

 

Agentes com amuletos que derretem seus cérebros, runas que os forçam a obedecer quem tem as runas de controle, experimentos com civis. O fato de serem velhos e “cuidarem” de países diferentes da ordem evita confrontos, mas já ocorreu uma vez no passado quando queriam nossa submissão ao sistema. Eles, eles nos consideram inimigos e nós só queremos eles longe dos locais que ajudamos e protegemos, me certo de que tentar tirar qualquer informação a mais séria é inútil e… desnecessário. Ele levantou a cabeça cansado, com dificuldade de manter os olhos abertos. 

 

— Eu… gostei de ver o nascer do sol aqui… acho que eu mereço morrer em paz… — ele disse com o que parecia ser um sorriso.

 

Puxei o cão do revólver, colocando a próxima bala na agulha. 

 

— Eu acho que sim. 

 

— Obrig…

 

Vulfuw.

 

Sangue e miolos espirram da lateral de sua cabeça para a parede e chão atrás dele, a fumaça branca saiu da ponteira do cano e o cheiro da pólvora subjugou momentaneamente o cheiro do álcool. Deixei seu corpo cair e me movi até a gaveta onde ele havia colocado os quatro celulares. Muitas coisas passaram pela minha cabeça enquanto eu pegava os quatro celulares da gaveta, os coloquei lado a lado ao lado de uma das pias, liguei uma das torneiras para lavar meu rosto, sentindo a água fria me despertar. Peões, matar eles sempre deixa um gosto amargo na boca. 

 

Por que entrou no meu caminho, Jimmy? 

 

Eu já passei da fase de me culpar pelas escolhas dos outros, mas sempre sobra essa maldita coceira de que poderia ser diferente, poderia ter sido melhor para ambos os lados. O obscuro é o inimigo, as entidades, demônios, qualquer ser que seja a fonte de um mal é o inimigo. Poderia ser simples enfrentá-los se não existissem seres que compactuam ou gostam de servir esses males, mas sempre vão existir peões para serem mortos, sempre vai existir alguém perdido que se agarra a qualquer migalha de aceitação. Olhei para mim mesmo no reflexo da pia, eu estava perdido, tenho o direito de julgar essas pessoas?

 

Uma vibração percorreu a pia, um dos celulares estava tocando e vibrando com apenas duas letras aparecendo no identificador de chamadas. Peguei o celular preto tocando e cliquei no botão para atender, colocando-o próximo do ouvido. Eu podia escutar o chiado do vento irregular do outro lado da linha antes que o chiado sumisse e tudo ficasse em um breve silêncio. Esperei, respirando devagar e passando um pano para enxugar meu rosto. Houve o som de algum umidificando os lábios antes que uma voz aparecesse.

 

— Brooks? — disse uma voz rouca.

 

Pensei momentaneamente, antes de ser tomado por um instinto profundo, a linha ficou muda enquanto percebia algo.

 

— Brooks, any sign of the target?

 

— Brooks está morto — falei, assimilando tudo. 

 

Houve silêncio na linha novamente, pensei que iriam desligar, mas apenas estavam mudos.

 

— Eu tenho uma coisa importante para informar ao seu líder, chefe, macho alfa… sei lá como vocês se referem uns aos outros. 

 

O som de alguém umidificando os lábios soou novamente. 

 

— O que seria, Sr. Marcelo? — A voz rouca tinha um sotaque estranho, claramente estrangeiro. 

 

— Eu vaguei muito nesses últimos tempos, vaguei mais que o necessário e agora que eu estou vendo muito mais que antes, há uma única questão entre mim e meu despertar. — Parei momentaneamente, puxando as palavras que queriam sair. — Eu vou matar todos vocês, cada um que tentar colocar as mãos no meu sobrinho, eu vou trucidar vocês e no final dessa noite, vai ter a porra de um projétil de um calibre 38 na porra das suas cabeças, muito boa noite, filhos da puta.

 

Segurei o celular com as duas mãos e precisei de muito pouco para quebrá-lo ao meio. Tinha muitas coisas passando pelo meu corpo além da raiva, mas algo estava claro. Eu sei o que tenho que fazer, Samuel, Glória, Hana e todos os que amo, eles são minha missão, o único motivo de eu ter valor nesse mundo e o que faz os dias valerem a pena, o que faz minha existência ter algum sentido além de um homem bom em muitas coisas, minha casa, minha família, porra! Eles querem tirar Samuel de mim, querem me roubar mais alguém da minha vida! 

 

Nem fudendo! De novo não! 

 

Meu corpo estava mais leve, qualquer cansaço desaparecendo com o frenesi borbulhante em que minha energia se encontrava, as luzes do bar pararam de piscar quando me controlei. Meus olhos aquecidos brilhando no reflexo da vidraça da porta, saíram do sentido da garoa e ventos frios, admirei momentaneamente a vista e peguei a chave da Belinda. Os pombos que estavam esperando iriam aparecer quando eu me for, agora basta esperar que todo o resto aconteça. Comecei a caminhada até Belinda, rua abaixo, o espírito do meu familiar ficando mais evidente a cada passo. 

 

Vamos pôr um fim nessa merda. 



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