Volume 2

Capítulo 42: Velhas Lembranças

[Sábado, 17 de setembro de 2412, 16:10 da tarde] 

Marcelo Merial Dias Aurora Áureo.

 

Tijolos cinzas, vermelhos e pretos eram o que cobria o chão da praça da cidade. Havia muitos pontos da praça com árvores gigantescas que formavam uma cobertura natural com suas folhas. Segui a linha do tronco de uma árvore, seus galhos grossos cobertos de musgo e trepadeiras se uniam com os ganhos das outras árvores ao redor. Abaixo dessa cobertura verde de galhos estava a loja de cafés onde estávamos, o ar úmido carregando diversos aromas instigadores. A loja era um retângulo feito de tijolos amarelos, dava para ver as máquinas de café e os dois funcionários. 

 

Mesmo essa praça sendo tão linda, é pouco movimentada, deixei de seguir os caminhos traçados pelos tijolos em meio a esse bosque de grandes árvores. Havia quatro outras mesas à frente da pequena loja, todas vazias com exceção da nossa. Inclinei a cabeça para o lado vendo Armando entretido com um frasco contendo um líquido violeta, um veneno tão raro será um presente para sua amada e isso me fazia sorrir. O som de vozes veio da caixa da loja, Hana pegou os três copos e estava trazendo para nós. 

 

A pele um pouco bronzeada ficava mais linda na sombra, as “rachaduras” bronze em sua pele estavam escondidas, mas eu podia imaginar a beleza total dela. Seu terno cinza grafite absorvia qualquer mínima luz que a alcançasse, o terno tinha seus seis botões fechados e abaixo dele ficava sua camisa social preta com uma gravata marinha presa à camisa por um prendedor prata. Se prestar atenção nos botões do terno, dará para ver o símbolo dos mensageiros incrustado em prata no botão negro. Ela se sentou na cadeira à minha direita, distribuindo os copos de café antes de pegar o seu e me encarar. 

 

— E então? Uma entidade da hierarquia terrena, um residente espírito de um humano antigo chamado “Ciro”, pelo que os Arcanistas disseram, teve um antigo mago do oriente médio que se mudou para persa com esse nome. Pouca coisa foi confirmada além de que ele era temido e amado antes de desaparecer. Ele é um dos nossos problemas e talvez um dos principais, agora sobre os outros. — Sua voz entrava como seda por meus ouvidos.

 

Ela deu um gole em seu café, me dando a abertura.

 

— Esses homens que vocês encontraram no posto de gasolina, a falta de presença e o sotaque que o Armando comentou só poderiam ser de um grupo de pessoas, talvez o único com coragem de tentar se passar como Sentinelas Imperiais e nos ameaçar diretamente… apenas estou tentando entender o porquê desse pensamento fazer tanto sentido. 

 

Nos últimos cinco dias, eu, Hana e Armando trocamos as informações que tínhamos e fizemos investigações com o auxílio de outros três mensageiros do Ninho onde eu estava me recuperando. Aparentemente, minha chegada surpresa adiantou uma investigação que estava ocorrendo na cidade e dois grupos da seita de Belial foram mortos, contando com os quatro que eu matei, foram três grupos. Seitas são o menor dos problemas no Brasil, existem poucos e menos ainda que representam alguma ameaça.

 

Mas todas estão no radar.

 

A seita de Belial faz parte dos Quatro Males, são como baratas, sempre quando achamos que matamos todos, eles reaparecem por trás de algum sequestro ou homicídio. Os agentes na cidade estavam investigando uma sequência de sequestro que também aconteceu em outros lugares. Com a informação que consegui do Eithor, conseguimos ligar que esses sequestros foram para plantar a “Semente” da entidade ao plano terreno. Agora que sabemos disso, também sabemos o que fazer, achar e destruir as Sementes e depois, ou no meio disso, lidar com os estrangeiros.

 

Planejar sempre parece mais fácil.

 

Armando guardou o frasco no bolso da jaqueta. Ele estava olhando para o café, mas pude ver que seus pensamentos estavam muito distantes. Pouca coisa aconteceu nesses cinco dias e isso é preocupante. A única movimentação que captamos foi dos agentes estrangeiros indo de delegacia em delegacia buscando por um homem com minhas descrições, basicamente estão buscando por mim. Minha maior preocupação é o culto, já devem saber que Eithor falou tudo o que precisávamos, ele perdeu o valor de isca, agora temos que descobrir se eles irão continuar ou se retirar com seus planos. 

 

— Se essas pessoas procurando pelo Marcelo forem mesmo da Fundação, o que eles querem? Por que estariam procurando você? — Armando perguntou, se virando para mim. 

 

Eu troquei olhares com Hana, nossas preocupações estavam se provando ser racionais quanto mais o tempo passava.

 

— Provavelmente, eles não estão procurando por mim, mas por algo que apenas eu posso dar acesso a eles.

 

Os olhos de Armando se arregalaram percebendo esse detalhe, detalhe que vem me incomodando há muito tempo e sempre torci para que meus instintos estivessem errados. Samuel é uma literal anomalia, algo que ninguém nunca pensou ou cogitou que aconteceria. O próprio Abutre jurou que manteria a existência dele em segredo, a barreira da Dama Lunaria mantém a presença espiritual do Samuel ocultada, além de que são poucos que sabem da real condição dele. O problema é que sempre teve uma coceirinha irritante na minha cabeça… e se esse Pólios souber? 

 

E a confirmação acabou chegando… que porra do caralho.

 

“Buscar Samuel”, eu, Glória e Goro já matamos muitos executores que falaram isso após alguma “persuasão”, que queriam sequestrar Sammy, mas a confirmação veio do próprio Eithor. Essa entidade quer Sammy, vivo, pensar nisso me gela o estômago e pensar para quem ou o que esse Pólios possa ter contado ou instigado a pegar Samuel torna o frio tão intenso que me paralisa. Coloquei meus cotovelos sobre a mesa, pensando profundamente em cada ação e ideia. Um passo de cada vez, a barreira pode se manter e isso já é um bom passo.

 

Já o próximo seria…

 

Uma coisa que fiz muito nesses últimos anos foi matar executores das poucas famílias de anfitriões sob a fachada nobre que restaram da caçada feita pela ordem. Minha cabeça divaga sobre o que  a entidade iria fazer com Samuel ou qual o motivo além das forças que podem existir, seria estudá-lo? Se alimentar da poderosa energia dos corpos cósmicos dos quais o Samuel faz parte? Todo e qualquer pensamento sobre isso me gera um arrepio. Matar os serviçais, destruir a semente e matar os estrangeiros será mais fácil começar pelo elo mais fraco. 

 

E já tenho uma isca perfeita em mente.

 

Vamos nos banhar no sangue dessas baratas perseguidoras. — Uma presença sombria dentro de mim se remexeu, meu familiar tem interagido comigo de forma muito mais frequente nesses últimos cinco dias do que nos últimos oito anos.

 

— Eu tenho um plano, mas vamos resolver essa questão do Eithor primeiro… falta muito? — falei, me inclinando para Hana. 

 

Ela permaneceu em silêncio tomando seu café, mas Armando estava pronto para falar. 

 

— Qual plano? E…

 

— Matar todos eles, é assim que Marcelo faz com quem mexe com seus protegidos, um deslocado socialmente, mas uma ótima companhia… às vezes, enfim, como você está, velho amigo? — A voz veio de trás de mim, calma e com decoro. Armando pareceu surpreso momentaneamente e Hana continha um pequeno sorriso.

 

É claro que eles enviaram você… desgraça. 

 

Duas mãos apertavam suavemente meus ombros e a presença familiar de um velho amigo parou de se ocultar. Espiei a feição de Hana, vendo a diversão contida nela. As mãos deixaram meus ombros e a pessoa se dirigiu para Hana com um comprimento afetuoso antes de se dirigir para a cadeira livre que ficava de frente para mim. O terno cinza grafite era idêntico ao de Hana, sendo maior e estilizado para caber em um homem. Ele colocou o estojo que carregava no chão ao lado da cadeira antes de juntar as mãos à frente do corpo e se recostar na cadeira com as pernas cruzadas.

 

— Quanto tempo… Valdemir. 

 

O homem de pele escura sorriu, seu rosto tinha um aspecto carismático e uma beleza jovial, a cicatriz em sua sobrancelha direita completava seu visual. Os olhos castanhos quase negros ficavam atrás das lentes redondas do seu óculos de armação negra, contive meu olhar de saudade a apenas ssorri, sem saber como reagir ao sorriso dele, desci meus olhos para ver os anéis da Ordália em todos os dedos da sua mão direita, mesmo sem ser da Aurora, ele conhece os anéis… isso é incomum. Faz mais de sete anos desde a última vez que o vi e pouca coisa parece ter mudado.

 

Isso talvez seja bom.

 

— Você parece… um pouco melhor, a última vez que te vi, você parecia pronto para cair morto do lado de fora de um bar qualquer, a cada dia uma nova evolução… como tem passado, Marcelo? — Valdemir disse com sua voz carregada por um barítono.

 

— Bem… bem melhor, e você? — Por que eu estou conversando?

 

— No sul as coisas ainda estão complicadas e no norte os cruciros da Grande Tribo estão ficando agitados e causando problemas, morte atrás de morte, depois do que houve há oito anos, o Abutre ordenou uma limpeza nos “Nobres”, os anfitriões disfarçados são uma raça em extinção e curiosamente… quanto mais anfitriões disfarçados de nobres morrem, mais filhotes talentosos estão surgindo — ele pausou para olhar para Armando antes de continuar — como esse aqui, eu te falei, só precisava de algumas correções.

 

Armando olhou sem jeito para Hana e depois para mim, contive meu apreço, mas um pouco vazou para meus olhos enquanto ele me encarava. Acolher um “filhote” é um processo levado a sério na ordem, eles levam tudo em consideração e só fazem os jogos de “caça fantasmas” com possíveis pretendentes. Foi assim comigo, Vincent e Glória, mas para Armando foi diferente, já que sua mãe era uma mensageira e morreu por isso, isso faz dele um “Filhote com Pedigree”, alguém que já sabia de algumas coisas. Voltei minha atenção para Valdemir, deixando as memórias no passado.

 

— Se continuar elogiando ele assim, vai acabar grudando em você também. Vamos ao que importa, Eithor, está vivo… ou quase, a entidade envenenou ele quando o laço entre os dois foi desfeito, ele disse tudo que precisávamos sobre o culto, mas o interessante é que mesmo assim vocês pediram para tê-lo… por quê? O que está acontecendo?

 

— Desfeito por quem? Sua carta foi muito vaga sobre esse detalhe. — Seu jeito astuto se manifestou na feição.

 

Mordi o interior do lábio, está longe de ser falta de confiança na ordem, é que uma manifestação como a que aconteceu comigo só ocorre com adeptos experientes e esse fato me deixa… com vergonha.

 

— Fui eu, mas foca no que importa. 

 

Valdemir olhou para cima por alguns segundos, seus olhos se movendo acompanhando os galhos das árvores que formavam a cobertura natural de folhas verdes.

 

— O fato de terem encontrado nossos visitantes indesejados pode ter levantado algumas dúvidas sobre quem são e por que estão aqui, são agentes da Fundação e o próprio Abutre me pediu para dizer que…

 

— Eu sei que não foi ele, foi essa entidade. Agora me diga, Val… o que está acontecendo? 

 

Valdemir ajeitou seu óculos, o sorriso desapareceu de seu rosto, tomado por uma máscara fria enquanto se ajeitava na cadeira. Ser a Mão de um Ode é ter sido escolhido entre os muitos candidatos talentosos da ordem, Valdemir sempre foi capaz de fazer os outros se sentirem bem com sua atitude gentil que cria a máscara de um homem carismático inofensivo, uma presença aconchegante, mas poucos viram a natureza escondida além dessa máscara, sendo que a maioria deles está morta. A única e maior diferença entre nós é que ele usa essa máscara para esconder sua face de caçador. 

 

— A coisa está feia aqui, né? — Hana se ajeitou na cadeira, inexpressiva.

 

Um sorriso predatório nasceu e morreu no rosto de Valdemir.

 

— Os estrangeiros querem seu sobrinho, assim como os Marvolos e mais uma família de anfitriões, todos os outros que souberam através da entidade estão mortos, eu garanti isso. — Ele me olhou profundamente, o apreço escondido abaixo da frieza de sua máscara. — Essas famílias de anfitriões disfarçados de nobres estão me cansando… enfim, a Fundação enviou oito agentes e nós pegamos dois deles. Esse Pólios prometeu que, se pegassem a criança para ele, ele dividiria o resultado de suas descobertas. 

 

Ele umedificou os lábios antes de continuar.

 

— Quanto ao pequeno Eithor, bom, só posso dizer que ainda há planos para ele e que a morte seria bom demais para alguém com uma dívida tão alta, 1677 mortos naquele incêndio, o filho mais velho vale menos que o pai, mas a caçula possui um espírito que apenas precisa ser bem orientado e é o que tentaremos fazer… Os seguidores de Belial fizeram um acordo que desconhecemos as condições com esses Pólios, mas eles se assustaram com a presença do “Cão Presas de Prego”, vulgo; você. — Um sorriso genuíno surgiu enquanto apontava para mim.

 

Mantive-me em silêncio, esperando que ele continuasse.

 

— O tabuleiro está limpo, Marcelo, nessa cidade nós iremos dar o primeiro xeque mate nesse Pólios e mostrar a mensagem do Abutre, que no nosso berço e em outros lugares que chamamos de casa, existe um limite a ser respeitado, então eu peço por mim, seu amigo, e como um mensageiro carregando a mensagem que o Abutre tinha para você…

 

Ele se dobrou para mexer em seu estojo, podia sentir a pressão aumentando quanto mais eu percebia o que estava acontecendo. A oito anos, eu pedi para a própria Odessa Rosária por um tempo longe, esse afastamento não retira as habilidades especiais que ganhei ao tomar o Sangue do Abutre, existe uma ligação entre a Aurora e o próprio Abutre que reforçou ainda mais essas habilidades quando me tornei um Áureo, mas eu ainda estou afastado já que não carrego minha mensagem. Valdemir se ajeitou com um embrulho de pano negro nas mãos, tinha muitas emoções surgindo, tantas que me confundiam.

 

— A ordem precisa de você, sua habilidade, capacidade, precisa de uma engrenagem que nem você, para matar e morrer, para ver e ouvir, para defender e guiar… venha passear no inferno terreno e proteger aqueles que nos merecem… venha caçar sob as asas do Abutre novamente, Marcelo. 

 

Do embrulho de pano, ele tirou uma kukri, sua lâmina curvada de metal dourado opaco tinha entalhes negros que a tornavam única junto ao seu cabo de madeira escura com fios de aço prateado. Ele estendeu o cabo da kukri para mim, pensei profundamente nos últimos dias e em como eu passei por eles. Ser um Áureo significa que eu tenho uma casa para voltar, eu sei que o que eu faço de melhor nesse mundo é caçar e posso ver essa verdade com o Caelum dentro do meu espírito animado por mim… Eu me afastei por me sentir perdido, mas agora, nesse exato momento, eu sinto que estou perto do que eu quero ser.

 

Seja o que for.

 

Esticando minha mão, alcancei o cabo da kukri, a forma do cabo e o jeito como ele parecia perfeito nas minhas mãos me traziam muitas lembranças… Vincent em meio a elas. Mesmo ainda sem direção sob as ondas de um mar impetuoso, passar meus dedos sobre os entalhes da minha lâmina me lembrava de coisas que eu sabia fazer, coisas que eu sei que posso fazer melhor. Duas lágrimas caíram sobre o metal e desceram por dentre os entalhes em direção a ponta, me ajeitei na cadeira ainda olhando a kukri. Eu tinha me esquecido da sensação de ser uma mensagem, ser maior do que esse corpo feito de carne. 

 

— Omor, Adrur am Sacra — sussurrei para mim mesmo e outros três repetiram.

 

Observar, defender e sacrificar.

 

Todos os mensageiros encontram o Pai Abutre logo no início. Sem esse encontro para beber o Sangue do Abutre e receber nossas relíquias, seríamos apenas caçadores. As relíquias, um presente do Abutre para nós, a “mensagem” na forma dos mais diversos objetos e ferramentas,  ampliam nossas capacidades apenas por estarmos perto delas. Ninguém sabe como elas são feitas, mas cada mensageiro tem a sua própria e todas possuem uma ligação estranha e íntima com seus portadores. Peguei a bainha da mesma madeira escura do cabo e a guardei nela.

 

— Você mencionou um plano, que tipo de plano está passando em sua mente? — A máscara carismática voltou ao rosto de Valdemir, mas estava com um sorriso genuíno.

 

Coloquei minha relíquia no bolso interno do sobretudo, notei Hana com os olhos marejados tentando conter seu sorriso e Armando com uma expressão de admiração no rosto. 

 

— Preciso de uma distração, que uma fofoca caia nos ouvidos certos e seja disseminada para os ouvidos certos e também… — Pensei momentaneamente no desenrolar da ideia. — Vamos precisar de um local vazio com pontos estratégicos, precisa ter três características principais…

 

Repassei meus planos, listando o que tinha de informação e as possíveis contradições que poderiam ocorrer. Graças à Hana, muitas inconsistências foram sanadas, mas havia lacunas mal preenchidas. O planejamento é a principal arma que temos, mesmo que seja possível matar alguns tipos de entidade ou ao menos neutralizá-las temporariamente, existem as óbvias desvantagens. Quando lutei contra Ciro no prédio educacional, eu escolhi o combate corpo a corpo porque é a forma mais efetiva de usar obras. Cada golpe que eu dava era carregado pela micro explosão de energia. 

 

Ferramentas como armas são a melhor forma de manifestar o poder da obra sem um território estendido.

 

Quando uma obra sai do corpo, a aura de energia carregando o conhecimento se desgasta lentamente na atmosfera, isso reduz sua potência com porcentagem variando pela situação e controle. Com o contato físico ou forma de canalização pelas ferramentas: armas, projéteis ou apenas os punhos nus, cria-se uma ponte direta entre a fonte da obra e seu alvo, limitando a exposição na atmosfera e aumentando a potência das obras. O que fiz foi nivelar o jogo, usando energia para atingir o espírito ao invés do corpo. Se eu conseguisse prendê-lo no corpo físico, poderia matá-lo… 

 

Por hora, isso espera.

 

Minutos se passaram comigo explicando meu plano, Valdemir fazia perguntas sobre os detalhes e Hana corrigia minhas falhas com as opiniões criativas de Armando em meio a tudo. Meu plano poderia resolver ao menos os principais problemas, sendo o com maior representação de risco, a Semente e os serviçais que a guardam. Uma coisa que aprendi cedo e Glória me ajudou a me aperfeiçoar é nunca contar com nenhuma ajuda improvável ou sorte, apenas eu e meus recursos para lidar com a situação. Nunca vai ganhar um prêmio de melhor plano, mas é um bom plano.

 

Todos nós levantamos, Armando foi à frente seguindo o caminho de tijolos do parque, jogando os três copos de café no lixo, eu e Hana andamos lado a lado enquanto Valdemir vinha logo atrás. Reparei, dando olhares discretos para trás, na feição pensativa de Valdemir, parecendo estar extremamente distante de onde realmente estava. Seus olhos iam de um lado para outro como se organizassem seus pensamentos enquanto nos seguia para fora do parque. Seu semblante calmo me lembrava Vincent, acho que faz sentido já que ambos eram amigos próximos. 

 

E o padrinho do Samuel.

 

O caminho de tijolos se abriu para construir a calçada ao redor do estacionamento quase vazio, a cobertura das árvores falhava, dando para ver melhor o céu cinza da tarde. Pela calçada dava para ver os bancos de metal ornamentados ao lado de luminárias igualmente ornamentadas, a grande calçada era cercada pelo bosque de árvores gigantes e a calçada de tijolos vermelhos cercava o estacionamento quase coberto pelas árvores. Passei brevemente os olhos antes de achar o carro de Hana com uma SUV estacionada ao lado. Nos aproximando dos carros, notei um detalhe interessante. 

 

Armando colocou a mão na cintura, Hana colocou a mão dentro do paletó, ambos prontos para sacarem as armas para Eithor, que estava no banco de metal escuro à frente do carro. Valdemir apenas assistiu com interesse enquanto eu sinalizava para eles se acalmarem, cercado pelas árvores e vegetação rasteira, a calçada tinha poucos pontos de fuga e a falta de vegetação alta dificulta achar bons esconderijos no bosque, além de que; dentro da SUV com certeza há outros mensageiros. Enquanto Hana ia para o carro com Armando, me sentei ao lado do Eithor no banco. 

 

É uma boa visão… 

 

O ponto onde o banco estava dava uma linha de visão perfeita, as centenas de árvores criavam uma espécie de moldura, se olhasse bem, dava para ver a lagoa cristalina distante bosque adentro. Deixei de admirar a vista para analisar Eithor, as runas que marcavam seu braço esquerdo estavam cobertas pelas ataduras que Hana fez, as veias vermelhas como pequenos vermes sob sua pele subiram até seu pescoço e engrossaram no caminho, seu outro braço tinha uma grande cicatriz, sua aparência está miserável. É estranho, houve um tempo em que eu queria muito te matar, mas agora… não sinto nada.

 

— Apreciando a vista? A lagoa, ao me ver assim, deve ser inebriante — sua fala oscilava entre o ruim e o péssimo.

 

— A lagoa é uma bela vista, mas você é apenas… decepcionante. Onde foi que você errou para acabar nesse ponto? — Fui incapaz de remover a curiosidade da minha voz.

 

Ele se moveu levemente, gemendo de dor no processo. A cada segundo que eu ouvia sua respiração arrastada, eu tinha mais certeza de que nunca queria acabar assim. 

 

— Você… me perguntou quem eu perdi? Eu… acho que foi você, minha cabeça está muito bagunçada ultimamente — ele puxou ar antes de continuar — eu me perdi quando perdi ela, crescer com um pai fudido te torna um fudido, a menos que você seja melhor e… eu não era. Ela viu o que nem eu sabia que existia dentro de mim, me ajudou a ser melhor do jeito que eu nunca conseguiria sozinho, mas minha família, meus pais, mesmo mortos, conseguiram fuder tudo… eu fudi tudo. 

 

Ele se virou para mim, o branco dos olhos com centenas de pequenas veias vermelhas umidificados pelas lágrimas que começaram a descer por seu rosto.

 

— Meu filho leu os Lamentos de Bordô, o preço do que ele conseguiu foi a saúde da mãe dele, eu queria salvá-la, eu tentei… mas no final eu perdi ela da mesma forma. — Ele lambeu os lábios rachados, com suas lágrimas se tornando constantes. —  Eu tentei perdoar Alefe, mas só conseguia ver Lenora vomitando sangue pela idiotice que ele fez e Thereza… eu nunca vou merecer uma filha tão bela e corajosa, tão forte… 

 

Ele parou com seus lábios tremendo, podia ver suas tentativas de engolir o choro falharem cada vez mais e cada vez mais as peças se encaixavam.

 

— Quando eu fiz um acordo com Vanilo, ele me disse que, no novo mundo que Pólios iria fazer, eu poderia passar a eternidade ao lado das minhas Rainhas, que meu talento para o mal teria uma justificativa que Lenora aprovaria… eu fui tão estúpido, como eu me vendi, como eu arruinei a memória dela… DESGRAÇA…

 

Seu grito veio junto à tosse e a respiração ficou ainda mais pesada. A indignação de sua feição foi limpa e retornou ao estado de melancolia após alguns minutos do agoniante dele, sugando o ar até estabilizar.

 

— Eu fui fraco, Marcelo, fraco de mente, espírito e dignidade, não consegui proteger ninguém que eu amava, porra, essa é minha última e desesperada jogada para garantir ao menos um acerto no final dessa merda… — Ele se virou para mim novamente, mas havia um brilho de esperança em seus olhos. — Diga a ela a verdade, diga a ela que eu fui fraco e diga a ela… que nenhuma das ações que levaram a desgraça foi por ela, eu não quero mais a condenar pelos meus erros… cuida dela… eu sei o que eu fiz, mas… por favor.

 

Ele pegou meu pulso direito com a mão esquerda e colocou algo em minha com a mão direita. Sua ação o levou a cair sobre meu peito enquanto repetia pedidos de desculpas. Muitas palavras se alojaram em minha garganta, dúvidas, ofensas e confortos. Eu sabia que a parte fria queria apenas o ignorar por um milésimo do prazer que vem da vingança, mas isso era muito pequeno agora, muito pequeno diante de quem quer ouvir a voz do sobrinho novamente, quem quer protegê-lo… proteger todos que habitam meu coração. Olhei para Hana, que assistia tudo com uma expressão intrínseca, e eu sabia o que precisava fazer.

 

— Eu… eu vou entregar sua mensagem.

 

Minha mão esquerda tremeu ao tocar seu ombro de forma suave,  afastando-o para ver que seu aspecto acabado desapareceu quando olhou para mim com alívio. Eu o ajudei a se levantar, me sentindo estranhamente confortável, como se estivesse fazendo algo que já fiz, isso me confundia e fazia minha mente dar voltas no que achei que era o que eu pensava sobre quem eu sou. O guiei até a frente do SUV onde Valdemir estava observando tudo com curiosidade. Valdemir me encarou por um momento, uma mistura de respeito e curiosidade passou por sua feição.

 

— Eithor Jerônimo Guile, você é culpado pelo envolvimento nas 1677 mortes causadas pelo incêndio iniciado pela Entidade Residente, Ciro Khan Al–Abadi, você irá pagar da forma que decidimos, pois sua liberdade foi anulada a partir do momento que você ajudou a tirar a liberdade e vida de 1677 pessoas comuns… você tem algo a dizer? — Valdemir disse friamente com certo decoro. 

 

Eithor encarou o nada por um momento antes de falar.

 

— Nada… apenas arrependimentos de um moribundo.

 

Valdemir pegou seu braço para sustentá-lo em pé e o arrastou até a porta traseira da SUV, ela foi aberta por dentro e Eithor foi colocado para dentro, com a porta fechando em seguida. Val retornou lentamente com uma pasta de arquivos na mão que ele pegou em algum momento do embarque de Eithor. Ele se ajeitou à minha frente antes de estender a pasta de arquivos para mim com um sorriso. Senti um pressentimento estranho quando peguei a pasta e ele se concretizou quando Valdemir enfiou a mão no bolso. Ele tirou uma caixinha de madeira escura semelhante à caixa de um anel, com uma trava e ornamentos dourados.

 

— Eu não consegui ser padrinho do Guri, ao menos da forma que eu queria, eu fiz esse presente baseado na singularidade especial dele… queria poder mostrar isso para Vince. — Ele colocou as mãos no bolso, com sua cabeça abaixando em desânimo. — Se cuide, Marcelo, tenha uma boa caçada hoje. 

 

Ele se virou sem dizer mais nada, me deixando com os papéis e o seu presente acima da pasta em minhas mãos. Demorei algum tempo para assimilar tudo que aconteceu. Enquanto a SUV saía do estacionamento, Hana chegou ao meu lado, sua mão tocando meu ombro me trouxe para a realidade, os muitos pensamentos que se trombavam em minha mente se acalmaram o suficiente para que eu pudesse escutar minha própria voz. Peguei a pequena caixa, entregando a pasta com escrita Han chinesa. Meu coração bateu mais rápido ao abrir a pequena caixa.

 

Muitas memórias me vieram, dentro do interior aveludado da caixa, duas esferas indignos menores que uma bola de gude estavam conectadas a uma minúscula corrente e mosquete. Brincos? Eu ri, me senti mais leve vendo os brincos estilizados feitos por Valdemir, observei Hana olhar impressionada para o par de brincos e Armando se juntou, chegando mais perto para ver e soltou um assobio de admiração. Mesmo sendo simples, o dourado opaco da corrente e mosquete casavam perfeitamente com o azul índigo das pequenas esferas, era um artesanato de primeira.

 

— Espero que ele goste. 

 

A leveza se esvaziou quando fechei a caixa, olhando com atenção o que estava segurando em minha mão direita. Ver o que Eithor havia me deixado me deixou com ainda mais dúvidas. Um par de alianças de ouro conectadas, uma era menor para o dedo de uma mulher e a outra era a que ele usava no seu dedo anelar esquerdo, ambas possuíam diamantes, mas a da mulher era alguns milímetros maior que o diamante de Eithor. No interior da aliança havia algo curioso, na da mulher estava escrito: Eithor, Thereza e Alefe, mas na de Eithor, estava apenas: Lenora, Thereza e onde estava escrito o terceiro foi riscado.

 

Os Lamentos de Bordô…

 

Guardei as alianças no bolso, entrando no carro de Hana, guardei a caixa do presente cuidadosamente no porta-luvas, pensando nas palavras de Eithor. O livro de um demonologista que se tornou um servo do inferno estava em posse dos Guile há muito tempo, antes mesmo de chamarem o Brasil de lar, um canal direto entre um dos príncipes do inferno e a realidade. Poder vindo do inferno sempre cobra um preço que causa mais dor ao negociante e também… costuma destruir tudo que entra em contato. Os Guiles sempre tentaram vender a ideia de que eram imunes ao malefício do livro e oficialmente agora, eles são uma família extinta. 

 

O tempo sempre desfaz afirmações sem base.

 

Respirei fundo, me concentrando para os próximos passos que terei que dar hoje, moldando meu plano e me preparando para tudo que fosse possível. Se tudo der certo, talvez eu consiga voltar para casa inteiro para ser devidamente punido pela Glória, Goro e Sammy. Se concentre, não sou mais um caçador perdido e nem mais apenas um homem... Coloquei minha mão no cabo da faca dentro do meu sobretudo, sentindo uma confiança que havia esquecido. Sou uma mensagem, uma ideia, a cada dia uma nova mensagem e todas precisam de um final.

 

E eu as levarei ao final.

 

— Para lá? — Hana perguntou, ligando o carro.

 

Abri meus olhos, certo dos próximos passos que terei de dar. 

 

— É… vamos visitar esse “barista” gentil e requintado.

 

E pegar as chaves da minha Belinda.



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