Volume 2
Capítulo 41: Dividas
[Segunda-feira, 12 de setembro de 2412, 04:?? da manhã]
Ciro Khan Al-Abadi.
Meu corpo inteiro estava insensível a qualquer tipo de sensação física, minha pele, junto dos receptores de dor, haviam sido devorados por minhas próprias chamas na distração que usei para sair com o Verme. Ao contrário do meu corpo, que estava completamente insensível para qualquer tipo de sensação, meu espírito fervia como uma fornalha, alimentado pelo ódio correndo em mim. Cambaleei sem rumo, seguindo apenas uma imagem mental que eu tinha do lugar onde estava, já que meus olhos explodiram pelo calor.
Desgraçado…
Eu lembro daquele homem, lembro da humilhação que ele me fez passar ao destruir meu corpo original, lembro daquele dia todos os dias e a vontade de matá-lo crescia a cada dia que se passava. Em minha caminhada, minha panturrilha se quebrou ao meio quando coloquei meu peso nela para dar um passo. Minha regeneração lenta consertou 01% da minha sensibilidade corporal, me permitindo sentir o chão frio do lugar onde estava quando caí. Essa maldita impotência faz meu ódio ferver ainda mais, aquele homem roubou minha dignidade, meu poder, minha confiança.
Aqueles malditos olhos verdes!
Meus canais auditivos queimados me impediam de escutar qualquer coisa, mas senti o grito bestial vindo do fundo. Minha sensibilidade voltou o suficiente para que eu pudesse me mover melhor, sentei-me no chão úmido, a dor se manifestando abaixo da crosta queimada que cobria meu corpo, mas essa dor era uma salvação ocupando minha mente. Eu nunca vi uma maldição assim mesmo com mais de 1000 anos de vida e também… nunca vi uma tão poderosa, tão sádica e desgraçada que nem mesmo uma entidade da hierarquia celestial consegue desfazê-la.
O Flagelo.
Desde aquele dia há oito anos, quando meu corpo original foi destruído por aquele feitiço ardiloso, tentei e falhei cinco vezes em construir um novo corpo. O gosto da impotência era algo que me comia por dentro… junto da maldição. Graças a Pólios, esse corpo está estável, mas há uma luta constante para suprimir a decadência dos meus músculos e... se esse corpo for consumido pelo Flagelo, ele logo conseguirá alcançar minha alma para começar a consumir. A tremedeira causada pela maldição que eu tanto tento suprimir estava voltando por causa do meu estado miserável.
Manter minha mente ocupada me permitia tirar a imagem daqueles olhos da minha mente. Eu lembro tão bem daquele dia, queria revivê-lo e desfazer todos os erros que me trouxeram… aqui. Recuperando um dos meus olhos e parcialmente minha visão com dificuldade, eu olhei ao redor no esconderijo, as paredes da sala de ligação para túneis de esgoto estavam cobertas de musgo, o chão de concreto era coberto de poeira com poças de água. As canaletas do esgoto tinham grades que as cobriam, a água suja saía dos tubos das paredes e caía nas canaletas cobertas pelas grades e descia até outro tubo.
Encurralado em um maldito esgoto… o que houve comigo?
Pensei profundamente em meu passado, na antiga Pérsia eu era temido, amado e louvado, o Mago mais poderoso que pisou naqueles desertos, meu nome era tão grande mesmo entre os comuns. Agora eu estou aqui, em um corpo decrépito, amaldiçoado por um moribundo, incapaz de matar três ratos e tendo que ser babá de um morto-vivo estúpido. Eu me perdi em algum momento, o espírito humano que recusou a morte e domou o poder de uma Força Anciã errou em algum momento, reconhecer qual me assombra.
Eu sei qual foi… eu acho.
Escorei minhas costas contra a parede coberta de musgo, olhei diretamente para o único ponto em que a luz entrava na sala de ligação do esgoto, uma tampa de bueiro feita de grades deixava a luz opaca entrar. A crosta queimada que cobria minha carne começou a rachar, enviando ruídos dentro da sala. O som da água caindo e passando pelas canaletas era brevemente superado pelos clacks da crosta rachando. A dor me confortava, meu sangue escorrendo das minhas feridas abertas me entretinha. Se eu tivesse permanecido sozinho, nunca ia ter sido descoberto nas tumbas que construí no Irã.
Quanto mais eu remoia a decisão de me submeter a Pólios, mais a sensação de estar sendo observado crescia como olhos tocando minha nuca. Mesmo que a energia que roubei da Força Anciã Volusia fosse esgotável, poderia ter durado mais tempo. Esse pensamento era como um prego entrando na minha cabeça, a energia que eu roubei ampliava meus poderes e me dava muitas vantagens. Toda vez que eu a usava era como jogar roleta russa com a Força, mas havia cinco balas no tambor e eu tinha que conseguir fazer a agulha cair na câmara vazia. Eu sempre soube que perderia aquele poder uma hora, apenas recinto como eu os perdi.
Estou cansado.
Minha regeneração finalmente estagnou após me curar parcialmente, a minha perna que estava cotoca permaneceu inalterada junto aos meus músculos expostos que permitiam meu sangue sair. Concentrei-me focando em melhorar minha regeneração de alguma forma, isso deveria ser natural, como um espírito, posso gastar energia íntima para curar meu corpo físico, mas todos possuem um limite e usei demais minha energia vital. Desisti de tentar fazer a regeneração voltar por outros meios, o cansaço em meu espírito fazia meu corpo pesar ainda mais.
Esse é o meu limite atual? Que vergonha.
Reconhecer isso me corroía mais do que era possível colocar em palavras, aceitar que um dia eu podia usar feitiços de alta classe durante horas antes que a fadiga me alcançasse era doloroso. A sensação de estar sendo observado se manifestou como a presença do Mestre Pólios, o fato dele estar contendo seu real semblante porque me faria desmaiar era humilhante… A faixa de luz vinda através da tampa de bueiro ondulou antes que energia sem brilho surgisse do completo nada, como uma ondulação translúcida no espaço, a energia começou a ser esculpida.
— Tão amargurado… onde está o prazer de servir seu Mestre? — A profunda voz do Senhor Pólios encheu o cubículo, seu tom calmo e indiferente arranhando as entradas do meu ouvido com sua evidente decepção.
A energia foi moldada para projetar a aparência do Mestre Pólios, seu corpo esguio vestido de forma casual, a projeção era tão perfeita que era fácil me perguntar se ele realmente estava aqui. A parte inferior do corpo era coberta por uma calça social larga, terminando em pés pálidos descalços, sua camisa estilizada cinza era larga e sua barra estava colocada para dentro da calça negra, as mangas da camisa eram estilizadas para comportar seus quatro braços finos que estavam colocados para trás. O cabelo branco do Sr.Pólios caia como uma cascata cinza por seus ombros, indo até perto do quadril.
Mesmo com a aparência incógnita perdida entre um belo homem com traços delicados ou uma mulher com traços afiados, sua postura elegante e calma era de alguma forma dominante. Ele se virou para me ver, seu belo rosto emoldurado pelo cabelo cinza parecia normal, com exceção dos olhos vermelhos reluzentes. Ele abriu seu par extra de olhos que ficavam na diagonal em suas bochechas, os quatro olhos vermelhos, seus longos cílios e lábios finos, ele me analisava em silêncio. Aguardei que ele falasse por vários motivos, um deles é que minha língua estava pela metade.
Lembrei-me da primeira vez que o vi, mesmo sabendo que entidades são desprovidas de sexo, a beleza mista de homem e mulher de seu rosto foi o primeiro detalhe que me fez ouvi-lo. Ver sua projeção esticando lentamente dois pares de braços esquerdos em minha direção roubou minha atenção antes que todo meu corpo ardesse. A dolorosa sensação da minha carne crescendo e se reconectando por causa da minha regeneração era algo com o qual eu pensei ter me acostumado… até agora. Meu corpo inteiro pulsou, fui suspenso no ar, sentindo minha carne, ossos, músculos, órgãos crescerem, reconectar e regenerar, a dor era excruciante.
Após o que pareceu ser uma eternidade de dor, caí em uma poça espirrando água ao meu redor. Era tanta dor que meus sentidos iam e voltavam até eu conseguir sentir que estava molhado. Meu corpo nu estava completamente consertado, mas ainda completamente exausto e dolorido. A energia do Sr.Pólios corria por meu sangue indo em direção à sua marca em meu espírito. Lutei para conseguir sentar no chão, analisei meu corpo exposto, estava desprovido de qualquer cicatriz. Levei meus dedos à minha testa, mas mordi a língua ao sentir a cicatriz redonda em meio à minha cabeça.
— Feridas feitas diretamente no espírito deixam cicatrizes difíceis de serem desfeitas. Quando você perdeu acesso à reserva de energia roubada da Volusia, suas defesas dependentes daquela energia se foram, fazendo com que sua alma ficasse à mostra por alguns minutos e nesses minutos você foi atingido com uma obra poderosa. — O Senhor Pólios disse com os olhos fixos na luz vinda de fora.
Obra? A… é como as pessoas desse continente chamam os feitiços.
Olhei meu próprio reflexo, meus olhos brilhantes e rosto maduro sujo… era patético, meu rosto antigo era envelhecido e com muito mais personalidade, trazia imponência.
— Você perdeu seu maior trunfo, o poder que fez você sobreviver quando lutou contra Odessa Rosária e mais tarde contra Goro Bellagio, pensei que você superaria isso… mas tudo que estou vendo é um acúmulo patético de Éter que pode ser dispensado pela falta de utilidade.
A raiva vinda dessas palavras me deu forças para me colocar em pé, mesmo bambo, encarei os olhos do meu Senhor, sendo incapaz de conter meu ódio. A energia roubada da Força era meu trunfo, eu admito que me tornei preguiçoso tendo um poder vindo da Hierarquia Cósmica, eu… As palavras momentaneamente me fugiram vendo um estranho esclarecimento presente nessa linha de pensamento, eu apenas perdi as reservas de energia porque aquele homem me amaldiçoou, mas como ele me amaldiçoou? Era um pensamento que sempre levava à mesma conclusão de infinitas formas, eu me tornei preguiçoso, abaixei minha guarda.
A força para me manter de pé se dissipou e caí novamente na poça. Ao invés de sentir raiva, tudo que me veio foi a continuidade desse novo esclarecimento. Essa dependência me trouxe até aqui, na sarjeta, o esclarecimento me levou até a imagem daqueles olhos, olhos verdes musgo com raízes douradas que emolduravam suas pupilas e se espalharam pela íris, pulsando em dourado como fios de ouro carregados de energia. Nesse momento, eu estava confuso sobre como me lembrar deles. Graças à maldição, minha dependência se foi ou, graças à maldição, minha ruína chegou… essas duas ideias se encontraram em silêncio.
A porta da minha gaiola foi aberta? Ou minha gaiola foi arremessada no abismo?
— Qual é o nome dele? — Minha voz rouca oscilou pela fraqueza.
Vi, pelo reflexo da poça, a cabeça do Senhor Pólios se virando para mim, o brilho de seus olhos carmesim refletindo na água.
— O homem que te amaldiçoou era Vincent Merial Dias, o irmão mais velho dele, o homem com quem você lutou tão animadamente nessa noite, o nome dele é Marcelo.
A imagem de quando encontrei esse Marcelo naquele prédio me veio à mente, a visão de raízes douradas brilhando em seus olhos azuis se manifestou em minha mente. Eu senti algo que havia esquecido durante muitos anos, algo que foi perdido quando eu ainda era um viajante conquistador daqueles grandes desertos, ideias lutando ao invés de homens. Agora eu posso ver, perdi séculos da minha vida pensando estar mantendo uma pequena gota do poder da Volusia preso, mas a verdade era que eu estava em uma prisão com benefícios. Desses 1000 anos de vida, passei anos em hibernação para manter o controle desse poder...
Eu sempre soube que perderia aquele poder, sempre foram anos perdidos.
Construí minhas catacumbas para serem pontos seguros para meu espírito descansar no plano terreno. A cada 50 anos eu tinha que dormir 100 cem anos, mais de 657 anos perdidos em hibernação. Juntei minhas forças novamente, me colocando de pé com firmeza e me mantendo com estabilidade, a lembrança do rosto desse Marcelo brilhando em meu consciente, ele é minha redenção, quando eu o matar, quando eu roubar a vida dos seus olhos… significa que serei mais forte do que quando estava preso, significa que posso evoluir. A sensação de impotência se transformou em alívio quando uma única lágrima de felicidade percorreu meu rosto.
Eu devo matar Marcelo para me libertar.
Estava olhando o nada à minha frente com meus pensamentos muito longe, mas minha atenção foi completamente sugada quando o Sr.Pólios estalou seus dedos. O som agudo de seu estalo ressoou dentro da sala, percorrendo cada canto e suprimindo cada som que havia por segundos antes do eco se esvair. Os olhos do meu Senhor estavam entretidos me encarando, era impossível dizer o resultado de sua análise pela sua feição carismática fechada. Ele colocou suas quatro mãos para trás, havia uma diferença de postura e poder escancarada entre nós.
— Bartolomeu salvou a semente, mas deve haver uma espera antes de refazer os próximos passos futuros. Os Filhos do Abutre estão muito curiosos, mas por sorte, os agentes norte-americanos servirão como distração… por pouco tempo, talvez dois dias até todos serem mortos.
Ele passou sua fala e fechou os olhos, ele faz isso para se comunicar ou receber comunicações dos outros Seletos.
— Por isso você contatou A Fundação? Estava pensando que tipo de utilidade eles teriam, agora faz sentido.
Ele apenas acenou brevemente com a cabeça, ainda com os olhos fechados, A Fundação é uma organização norte-americana com base principal nos Estados Unidos. Para mim, eles são a definição humana de idiotas arrogantes, estão presentes principalmente na América do Norte, Europa, onde eles foram banidos à força da Rússia e alguns países baixos. Na verdade, eles tentam se intrometer em tudo. Devo admitir que possuem alguns feitos relevantes, mas todos os que matei eram desprovidos de talento significativo. O Sr.Polios deve ter ofertado algo muito bom, já que a Fundação teme o homem intitulado de Abutre.
— A Fundação possui algum mérito, mas a ignorância e arrogância os afundam, os Mensageiros são mais antigos e as origens e objetivos diferentes os tornam inimigos naturais… enfim, em quatro dias, o sacrifício para a Semente estará pronto, se mantenha na cortina de fumaça criada pelos americanos — O Sr.Pólios explicou repentinamente ao reabrir os olhos. — E dessa vez… sua falha será cobrada, Ciro.
Ele apontou uma de suas mãos para uma das paredes cobertas de musgo, o musgo começou a se mover sozinho, junto a pedras e detritos, formando uma passagem em forma de porta para mim. Mestre Pólios voltou sua atenção para mim, ainda podia ver pequenos traços de sua decepção ao me encarar. Eu me juntei a ele para fazer parte de um novo mundo que Etrerus criaria, um mundo melhor em muitos sentidos e que eu ajudaria a formar… mas antes disso, eu preciso recuperar o que perdi. Uma última dúvida brilhou em meus pensamentos, uma curiosidade genuína que me ocorria.
— Por que o garoto? As Forças escolhem muito poucos e seus receptáculos têm acesso aos seus poderes, mas por que se preocupar com um mero garoto se existem mais outros 6 receptáculos das Forças pelo mundo?
Ele voltou a mão que usou para abrir minha passagem para suas costas, sua feição relaxou, fechando seus olhos.
— As Forças são… Corpos Cósmicos de pura energia e poder, todas estão ligadas aos Pilares da Criação, na verdade são como filhas dos Pilares de certa forma, o ponto é que nem mesmo as entidades as conhecem totalmente. Uma coisa que achei engenhosa na parte dos Filhos do Abutre é dividir as entidades em níveis de conhecimento, quanto mais se sabe sobre um grupo de entidades, mais fácil é lidar com elas.
Toda a sala escureceu repentinamente, aos poucos uma projeção como se estivéssemos flutuando dentro do espaço escuro iluminado apenas pela luz de galáxias e estrelas distantes.
— Existem diferentes hierarquias, me nomearam como celestial porque apenas sabem que eu vim de fora da margem e te nomearam como residente porque você é um espírito de origem Terrena, mas a hierarquia cósmica é… inexplicável. O garoto estava sendo observado pela Força Ousia e futuramente ele se tornaria um receptáculo. O que você fez quando o feriu gravemente foi adiantar o que já ia acontecer e…
Ele abriu os olhos e eles se voltaram para mim, meu corpo inteiro gelou junto ao meu espírito, seus olhos pareciam se decidir com um aspecto gélido se me queriam vivo ou morto.
— Você fez com que algo que nunca havia acontecido acontecesse, ninguém, nem mesmo meu Senhor Etrerus, imaginou o que aconteceria se duas Forças Anciãs que são ligadas uma à outra dividissem o mesmo receptáculo, além disso, fossem fundidas diretamente ao espírito do mesmo receptáculo. Sua estupidez criou algo que nunca existiria de forma natural, algo que ninguém imaginou que aconteceria e é por isso que você ainda está vivo, Ciro, você me fascina.
Aceitei calado o que parecia ser um elogio, até mesmo respirei mais devagar para evitar irritar o Mestre Pólios.
— O garoto é fruto do impossível e inimaginável e é por isso que devo entender do que ele é feito, como algo assim pode ter acontecido… isso me intriga mais do que sua pequena mente pode imaginar.
O ar úmido da sala mal iluminada preenchia meus pulmões enquanto absorvia cada informação, houve silêncio entre nós enquanto eu começava a entender a magnitude de tudo isso. A forma como eu capturei uma pequena gota do poder da Volusia é algo que ninguém nunca mais conseguirá replicar, as Forças agora sabem que é possível separar uma pequena gota da energia delas e agora elas obviamente nunca permitirão que aconteça novamente. Meu ritual que criei durante anos em vida era apenas para isso, pegar uma pequena gota desse poder.
Eu pensei que o ritual de Dominação Elantriana cortasse fora uma gota da energia, mas na verdade ele apenas afasta a influência da força sobre aquela pequena parte de sua energia. Meu raciocínio da época em que estava estudando sobre as Forças era que elas são um todo, toda a energia que dela é apenas dela e está conectada a ela, então eu visualizei um pedaço de pano, o pano ainda seria pano, não importa o quanto eu sujasse ou dobrasse, então eu pensei que se eu cortasse esse controle também seria cortado. Eu percebi nesses últimos anos que o pano, mesmo cortado, ainda fazia parte do pano completo.
Apenas dificultei a influência da Força sobre uma ínfima parte de si.
A lembrança de quando eu peguei o moleque pelos braços e os envolvi no fogo carmesim veio à minha mente, eu não apenas queimei o Fedelho, eu abri uma passagem da Gota roubada do poder da Volusia. Pensar nisso fez meu corpo ficar fraco e a tremedeira aumentar, a maldição dentro de mim pulsou tão intensamente as ofensas contra o Garoto que cai de joelhos em uma das poças no chão, o gosto do meu próprio sangue inundou minha boca quando o vomitei na água cristalina. Desgraçado, desgraçado, desgraçado…
Usando a pouca energia que consegui recuperar, empurrei os tentáculos imaginários da maldição de volta para seu selamento, isso custou muita força mental e gemidos de agonia. Eu senti a mesma coisa depois que enfrentei Marcelo naquele prédio. Quando tentei usar o Veu para me mover até Bartolomeu, os tentáculos me drenaram quase completamente, é uma espécie de resposta emocional. Já vi maldições que apenas se ativavam quando um gatilho específico acontecia. O que torna essa maldição ainda mais poderosa são esses múltiplos gatilhos.
— Engraçado como as coisas são tão… justas, você matou aquele homem quando ele estava com a guarda baixa, queimou os braços da criança apenas porque sim e, depois de ser banido para o Véu, tudo está sendo cobrado.
Ele parou momentaneamente e pude ver uma pequena contração no canto de seus lábios.
— O Senhor me disse uma vez que os Eminentes sempre cobravam, é por isso que está sorrindo? Essa é a maldita ironia?
Ele deixou de esconder seu sorriso, seu corpo começou a se transformar em poeira branca e a cair no chão lentamente.
— Os Eminentes são da Hierarquia Cósmica por muitos motivos, pouco se sabe sobre eles, essa maldição é inquebrável, você nunca será forte como antes porque todo seu potencial foi devorado por Volusia e qualquer chance de crescer foi selada com a maldição de um Filho de Gnosis, a Morte Destinada está te alcançando junto às sombras que você enganou no passado.
Meu corpo inteiro começou a pulsar, tentando manter a maldição de seu selamento, os tentáculos metafísicos sacudiam dentro de mim, causando dor onde tocassem e se alimentando das minhas forças. Puxei energia direto do meu espírito, alimentando a maldição a fim de acalmá-la, mas ela me fazia puxar cada vez mais energia íntima até o ponto em que cansaço seria uma palavra muito fraca para o que eu estava sentindo. Quando finalmente consegui reprimir a onda de dor pulsante para o selante, todas as minhas defesas caíram pela exaustão.
— Eu… me recuso — cuspi.
— Recuse o quanto quiser, Ciro, você nunca mais será como antes… ou tente provar que estou errado, esperarei o sinal da Semente nos próximos dias, vá se encontrar com Bartolomeu para se recuperar e Ciro…
Levantei minha cabeça apenas o suficiente para ver sua face gélida se desfazer em areia branca, com seus olhos semi desfeitos brilhando em carmesim.
— Não falhe.
O silêncio se apoderou do lugar, o som da água seguindo seu caminho ecoava pelas paredes e tubos de concreto. Eu me recuso, me recuso, ME RECUSO, PORRA! Minha carne começou a esquentar quanto mais energia vital eu forçava para dentro do corpo através do coração, tentei me levantar, caindo logo em seguida, tentei novamente, tendo o mesmo final como resultado. Eu tenho que me levantar, tenho que provar que isso é apenas uma maldita fase superável da minha miséria. Me forçando a levantar, a recusa de me arrastar no chão imundo de um esgoto junto ao meu alvo era o que me sustentava bambo.
Eu vou te matar… Marcelo! Eu preciso te matar…