Volume 2

Capítulo 40: Aprendendo a navegar

[Segunda-feira, 12 de setembro de 2412, 04:55 da manhã]

Marcelo Dias.

 

Recostando no banco, a chuva tinha se transformado em uma garoa constante. Vigiei o rio depois do parapeito, a metros na minha frente. O céu antes escuro estava ficando alaranjado quanto mais próximo o sol estava de nascer, a luz alaranjada desse nascimento refletia na água escura do rio que ia em direção ao horizonte cercado por mata, observei barcos começando a sair dos pequenos portos e navegando pelo rio negro. Meus pensamentos pareciam um zumbido constante, tudo que eu conseguia fazer era observar. 

 

O banco público onde eu estava sentado era confortável, mesmo sendo feito de concreto. Atrás do banco ficava uma calçada de ladrilhos e depois dela uma rua charmosa de paralelepípedos. Olhei de canto o bar um pouco mais acima, mesmo no final da madrugada, ainda tinha um movimento considerável de fregueses saindo e entrando, a música clássica tocando era um alívio para meu cérebro, junto à visão do nascer do sol, isso é uma das poucas coisas boas no momento. Movi meus olhos novamente para o horizonte, vendo os primeiros raios de sol nascerem.

 

É lindo.

 

O sol se tornou algo muito mais especial, o mundo inteiro está esfriando com as nuvens cinzentas cobrindo os céus, restaram poucos lugares do mundo onde é possível ver o sol nascendo, como no Brasil. Nuvens cinzentas… curioso, antes eu sentia isso em meus pensamentos, constantemente assombrado por uma nuvem de raiva e fúria, uma nuvem que me fazia tomar decisões antes de pensar nelas, essa mesma nuvem que me trouxe até essa cidade, agora havia desaparecido. Toda a raiva que eu cultivei para me dar forças na hora do vamos ver, se foi no teto daquele carro.

 

E só sobrou eu.

 

Isso devia de alguma forma me deixar em paz ou feliz, mas agora tudo que eu sinto é um vazio que me suga para dentro de outro vazio onde só posso flutuar sem rumo. Eu pensei que quando lutasse contra esse ele teria paz, algum tipo de paz, qualquer tipo, mas olhando agora… eu não sei mais porque fiz tudo que fiz por essa coisa, deixei uma ordem pela qual eu amava lutar, deixei pessoas que amo na mão, deixei Samuel no aniversário dele… por quê? Esse “porque” era a única coisa que me fazia sentir algo, uma decepção que me fazia querer me enfiar em algum buraco e ficar lá. 

 

Como eu parei aqui? 

 

— Você acha que quando morremos, uma parte de nós fica com quem amamos? — Eithor perguntou ao meu lado.

 

Olhei de canto para o homem, sua pele estava pálida e sua feição transitava entre ruim e péssimo, ele estava segurando algo em suas mãos, mexendo nesse algo constantemente. O envenenamento parecia lutar contra ele, aos poucos essa resistência devido à maturidade esotérica do seu corpo iria ceder e o Miasma o mataria, até lá apenas alguém com um grande nível de experiência nas artes de cura poderia tentar salvá-lo. Pensei nas palavras do sujeito, voltando minha atenção ao horizonte novamente, admito que era uma boa pergunta.

 

— Sim, os laços que unem as pessoas são algo que a Mãe Morte permite que permaneça, exceto se forem falsos ou líquidos. Os laços fortes entre pais e filhos, melhores amigos, casamento, irmãos… estamos ligados àqueles que realmente amamos e que nos amam de volta, pelos vínculos, essa conexão transcende a morte.

 

Os dedos remexendo em algo em suas mãos pararam momentaneamente.

 

— Mãe… Morte?

 

Suspirei, lembrando-me do que me foi ensinado por Goro.

 

— O que leva às almas após o evento que matou seu corpo material? O que leva elas em segurança para o desconhecido que chamamos de sono eterno… a Morte… ela é… intrínseca.

 

Eithor ficou em silêncio após minha breve explicação, pensei em minhas próprias palavras com atenção, isso aliviava a sensação de estar perdido no vazio. Tudo que conhecemos tem uma sombra que às vezes é maior do que sua própria origem, aceitamos isso continuamente em nossos dias, a dúvida se somos únicos ou uma sombra de algo, pensar assim fazia algo dentro de mim doer, mas essa era a verdade, somos pequenos, por esse motivo os seres do outro lado nos chamam de Efêmeros. A sombra de Vincent era maior do que ele ou se comparava a ele?

 

Um gênio, prodígio que criou uma sua própria obra inata, se tornou Arcanista por pouco tempo e foi o suficiente para ele alcançar um dos maiores feitos da vocação. A obra que Vincent criou desceu para Samuel e descerá consecutivamente em quem tiver nosso sangue, sua genialidade irá prevalecer em nossa família, seu sacrifício… odeio pensar sobre isso por muitos motivos, mas Vincent era bom no domínio de maldições, afinal, sua obra é sobre isso. Quando fiquei frente a frente com Ciro, eu senti algo vinculado a ele, algo com o toque de Vincent.

 

Mesmo oito anos depois, ele ainda conseguiu debilitar a entidade.

 

Olhei para minhas duas mãos, minhas palmas com diferentes tipos de machucados tremiam levemente quanto mais a saudade crescia. Ele era genial, desde pequeno. Glória e ele eram o que faltavam um no outro e se completavam da mesma forma que eles me completavam. Eu deveria ter sido o guardião deles, do Sammy, proteger os três porque é isso que eu sou bom em fazer: bater, apanhar, cair e levantar, eu sempre fiz isso… mas ao contrário dele, eu me perdi, mas quando? Fechei meus olhos, concentrando energia no vazio da minha mente, um objetivo claro enquanto eu unia ambas.

 

Eu preciso…

 

Energia escura se formou em resposta à união de Sine e Fie, diferente do Foco que vem de um processo diferente. Eu finalmente entendi um pouco como agradar Veritas. A energia escura ia durar pouco pela minha incapacidade de compreendê-la totalmente, então deixei que ela agisse sozinha, se espalhando pelas raízes do meu corpo. Ela ia diretamente para os meus ferimentos, grudar neles, um frio gélido surgia nos locais doloridos que fazia minha carne arder antes de restar apenas o frio. Abri meus olhos novamente, os machucados em minhas mãos eram cicatrizes que ardiam pelo frio. 

 

Despertar.

 

Veritas é uma das poucas coisas que possui capacidade curativa inata, transformando sangue em carne ou até mesmo se transformando em sangue e fibras para o corpo. O problema era que usar Veritas exigia saber como controlá-la, isso quase a faz ser considerada uma Força Anciã devido à necessidade de ser aceito por ela ou agradá-la para ser capaz de utilizá-la de forma consciente. A energia escura já estava me deixando, minha concentração sendo levada enquanto olhava as novas cicatrizes em minhas mãos. Eu bati, apanhei, caí… agora eu tenho que levantar. 

 

É mais fácil falar do que fazer.

 

Ainda havia pontos doloridos que o pouco de Veritas apenas deu uma aliviada, tinha algumas costelas que estavam quebradas e queimaduras ainda abertas pelo meu tronco. Um frio assombrou minha barriga imaginando o momento de encontrar Hana. Eu sei que vou apanhar, apanhar muito, mas, ao mesmo tempo, estou ansioso por esse momento, para sentir o cheiro dela, ver seus lindos olhos enfurecidos comigo quando for me estapear. Essa mistura de medo e saudade vinha com a decepção de minhas ações. Nesse momento, quase lúcido, eu vejo uma prioridade.

 

— Você estava certo — Eithor disse, interrompendo meus pensamentos. 

 

O choque dessas palavras saindo da boca dele fez a minha mente parar momentaneamente e se desconcentrar do que estava pensando.

 

— Eu realmente nunca me importei com os “danos colaterais”, estou cansado de arranjar desculpas para todas as merdas que eu fiz... eu realmente fui culpado de muitas coisas, mas nesse momento — ele soltou uma risada amarga antes de continuar com um fraco sorriso — neste momento, eu entendo a outra perspectiva bem, muito bem… 

 

Seus olhos cansados se voltaram para mim, o brilho castanho realçado pelos poucos raios de sol que nos alcançavam. 

 

— Eu sinto muito, pelo seu irmão… realmente sinto por toda merda que aconteceu. Se for para morrer no inferno que eu mesmo criei, eu quero dar orgulho para Thereza e Lenora, uma última vez… essa é minha mensagem para você, Mensageiro. 

 

Fiquei paralisado, assisti ele se recostando, sua respiração oscilante ao mesmo tempo que calma, ele encarava o sol com dor e algum tipo de aceitação. Observei em silêncio, talvez o choque ou surpresa me impediam de apenas aceitar suas palavras e seguir meus dias. A morte é uma benção mal compreendida, deixá-lo morrer e permitir que vá para o inferno e isso é muito pouco para mim. Ao mesmo tempo, algo dentro de mim teve paz com suas palavras. Uma parte do meu ser parecia ter ficado mais leve com as palavras do moribundo, quase como se eu estivesse sendo liberto. 

 

Meu peito ficou mais leve, meus pensamentos mais fluidos, uma corrente que me prendia ao fundo da minha consciência havia sido retirada, coloquei meus cotovelos sobre os joelhos, encarando o reflexo do sol na água negra do rio. Bater, apanhar, cair e levantar, o que estava me prendendo se foi, ao menos uma parte se foi, o peso do porquê, do como me foi respondido, mesmo que a resposta tenha sido amarga, o que me resta é achar uma forma de navegar agora que as correntes que me prendiam ao fundo se foram. Meu norte? Meu dever? O que me resta agora é… navegar?

 

No reflexo da água, mesmo que por um momento, vi a imagem de Vincent sorrindo para mim antes de desaparecer em um piscar de olhos, me levantei do banco indo até o parapeito. Encarei a água escura vendo meu próprio reflexo, desejando que a sensação de estar na presença de Vincent retornasse, mesmo que apenas por segundos novamente, mas no final apenas encarei a água escura, me deixando hipnotizar vendo suas ondulações na superfície, o rio nunca para. Pensei momentaneamente na mensagem de Samuel na herança, mas algo chamou minha atenção.

 

O som agudo de pneus freando me deu a vontade de olhar para trás, mas a presença de Hana e Armando já me dizia quem eram. Comecei a me virar após alguns minutos já ouvindo os passos de Hana. Tudo que tive foi um vislumbre do seu rosto lindo e furioso antes que sua mão atingisse na lateral da cabeça, o som da voz de Armando e todo resto se foi junto às minhas forças para ficar em pé, seu tapa me “desligou” tão facilmente quanto ligar e desligar uma lâmpada. As últimas coisas que senti foram meu corpo caindo contra o chão e Hana desferindo mais golpes em mim. 

 

A escuridão tomou minha visão, meu consciente navegando pela minha mente inconsciente e adentrando o fluxo. Minha preocupação de Hana me jogar no rio estava moderada, já que Armando pularia para me pegar. Meus pensamentos iam de bolar formas para acalmá-la até formas para explicar o que estava acontecendo. A verdade é que agora a situação nessa cidade é de alto risco, os Errantes estão a trabalho dos fanáticos da eternidade e isso complica as coisas. Uma âncora precisa de uma parte da entidade para ser feita, se tudo der certo, poderemos feri-lo.

 

Se tudo der certo, mas como as coisas estão? Seu corpo inconsciente está sendo jogado no porta-malas de um veículo moderno. A Trono fez questão de fazer isso com pouca gentileza… devo admitir que assistir isso me diverte. 

 

Abrindo os olhos do meu consciente, eu estava em cima de uma pedra que repartia a água que descia de uma cachoeira. A água escura estava represada por essa mesma pedra que dividia a passagem em dois caminhos. A margem era composta por árvores envoltas na atmosfera escura, apenas iluminada pela flácida luz pálida de um luar distante. Flocos de energia escura navegavam pela atmosfera, se acumulando ao redor da mulher à minha frente. Os olhos escuros de Meyrine se fixaram em mim, ela colocou uma mecha do longo cabelo preto que emoldurava seu rosto atrás da orelha. 

 

Seu vestido branco cobria seu corpo por inteiro, em seus braços o vestido tinha inúmeros padrões feitos de renda, de todo seu corpo, apenas as mãos e cabeça eram visíveis, sua pele branca. Naturalmente inexpressiva, era estranho ver o pequeno sorriso em seus lábios rosados. Ela moveu suas mãos e a atmosfera escura e cheia de flocos de energia como a penumbra ficou límpida. Ela uniu suas mãos e um brilho do que parecia ser um líquido preto com veios dourados formava uma esfera flutuante em sua palma. Os sussurros que ocupavam meus ouvidos mudaram, a voz de Sammy e sua presença sendo emitida pela esfera.

 

Eu me pergunto como uma criança tão doce tem ligação com você, sabia que ele está aprendendo a formar o Foco? Apenas um comentário, já que você saiu antes de ver isso. — As farpas em suas palavras eram bem colocadas. 

 

Doeu.

 

— Eu sei que eu fiz cagada, tá? O que… o que tem na mensagem? 

 

Seus olhos se afiaram, a esfera de preto e dourado amorfo cintilou em suas mãos. 

 

Ouça ela, já demorou demais, né? 

 

Me aproximei, sua mão estendida contendo a esfera que levitava em sua palma veio em minha direção. Quanto mais próximo, mais a imagem do Samuel se montou em minha cabeça. Ao invés de ver a esfera à minha frente, Sammy estava vestido com seu suéter marinho, um cachecol vermelho com padrões geométricos, encarei seu rosto, os cílios longos e lábios finos, o olho direito sempre fechado com uma cicatriz ao redor e descendo um pouco para a bochecha, o olho direito verde musgo como os de Vincent, com o anelete áureo crescendo como raízes ao redor da pupila. Olhar o cabelo vermelho bagunçado e o rosto meigo me dava paz.

 

Quando a projeção de Samuel abriu a boca, nada saiu além de sussurros. Assisti confuso ele terminar com um sorriso meigo e, quando tentei encostar nele, seu corpo se desfez em partículas, restando apenas a esfera amorfa. Tentei novamente acessar o conteúdo dentro da esfera, mas quando a voz de Samuel deveria aparecer, ela sumia e apenas restavam sussurros incoerentes. Tentei mais algumas vezes antes de perceber o maldito truque, olhei para Meyrine, sua feição satisfeita com um sorriso. Meu rosto azedou, está certo que eu fiz merda, mas isso é passar dos limites. 

 

Passar dos limites como… sair do aniversário do seu sobrinho para ir atrás de uma entidade, deixar de conhecer a nova amiguinha do Sammy, deixar de vê-lo conhecendo seu filhote, deixá-lo sozinho em seu ritual de cerimônia, deixá-lo sozinho quando começou a fazer seus anéis da Ordália… devo continuar?

 

Minha feição azeda se misturou com culpa, raiva, mágoa e muito mais, engoli tudo isso calado, sabendo que, amargamente, ela tinha razão.

 

— O que eu preciso fazer?

 

A esfera levitou lentamente, retornando até ela, orbitando ao redor de seu corpo como uma lua junto às partículas.

 

Despertar, alcançar Veritas, quando seu coração tiver uma direção certa e nenhuma dúvida em sua mente sobre seu propósito, você poderá escutar a voz de Samuel novamente.

 

Minha mandíbula afrouxou, apesar da aparência doce, Meyrine sempre foi cruel e criativa em suas punições, desde tirar minha capacidade de controlar minha bexiga, até fazer água ter gosto de urina… mas isso foi um pouco além. Me sentei na pedra, o Despertar pode dizer muitas coisas, mas para um membro da Aurora significa que sua conexão com a Graça é a elevação, uma transcendência espiritual que nos torna mais do que apenas humanos, eu posso ver o porquê disso. Glória alcançou isso no meio desses oito anos, ela disse que é como “abrir os olhos”, é quase irônico por um lado. 

 

O Despertar da Aurora nos deixa cegos. Glória e Goro dizem que conseguem ver, através do presságio e energia, as cores e o mundo de forma mais vibrante. Alcançar esse estado de iluminação através do Caelum, o verdadeiro nome da “Radiância”, a energia parecida com um líquido cor preto com veios e flocos parecidos com purpurina dourada, ganhou esse nome pelo brilho radiante da parte dourada, mas seu verdadeiro nome é Caelum, Sangue de Gnosis, ou Graça, para ficar mais bonito. Meus pensamentos, ideias, inspirações, tudo é ampliado pelo Caelum em meu espírito.

 

Não é impossível, na verdade, é algo comum para os nascidos da Aurora como Samuel alcançarem o despertar no meio de seu crescimento; mas para mim, será um pouco difícil. Soltei um suspiro que estava guardado bem no fundo, observei a água que descia por entre as pedras do meu centro espiritual, distante eu podia ver os totens onde os conhecimentos das obras estavam guardados, o vazio dentro de mim me permitia sentir minhas emoções por inteiro e isso me corroía. A culpa parecia como a água ao meu redor, se movendo constante entre cada pequeno pensamento. 

 

Essa viagem, antes, era uma busca por vingança de um homem perdido, agora é uma busca por iluminação de um homem perdido… você está progredindo, lentamente, mas está progredindo… Receio que deva continuar seus pensamentos na companhia da sua amada e do jovem recém-abraçado. Boa caçada, Marcelo. 

 

Levantei minha mão, um pedido para uma dúvida que voltou à minha cabeça.

 

— Gnosis falou através de mim, marcou Eithor com runas e desfez a conexão dele com o Celeste, eu lembro como eles falaram um com o outro, o que está havendo, Meyrine? — perguntei, me levantando.

 

O pequeno sorriso de Meyrine se desfez, sua expressão se transformando em uma máscara pensativa que se instalava em seu rosto enquanto seus olhos iam para o céu estrelado do meu centro espiritual. 

 

As peças estão se movendo, mais rápido do que pensei, e fico em dúvida se isso é bom ou ruim. A mensagem gravada no braço de Eithor Guile Jerônimo nunca foi para ele ou você… — Seus olhos se voltaram para mim. — Nós não sabemos o que acontecerá, Marcelo, ninguém sabe e quem diz saber o dia de amanhã está mentindo, esteja preparado para tudo… de qualquer forma, eu estarei aqui para te orientar.

 

A sinceridade de suas palavras trazia à tona o instinto de medo, a insegurança vindo até mesmo de uma entidade me assusta mais do que qualquer aberração do obscuro, mas no final, o que me resta é levantar e estar pronto. O cenário à minha frente se desmanchou, minha consciência fez seu caminho pelo fluxo até retornar ao meu corpo, as sensações chegaram até mim, as dores estavam menores e minhas feridas tinham uma sensação confortável de refrescância. A lateral da minha cabeça, onde Hana me acertou, estava doendo, pulsando dolorosamente com constância.

 

Meu nariz foi invadido pelo cheiro de ervas e podia sentir dedos se movendo sobre a queimadura em minha garganta, abrindo meus olhos. Minha visão se ajustou para que eu pudesse ver Hana. Olhei ao redor um quarto com decoração simples, as paredes com flores desenhadas e diversos padrões, a fraca luz cinzenta entrava pelas cortinas fechadas atrás de Hana, que estava sentada na beira da cama ao meu lado, suas mãos passando gel de ervas em mim e seu rosto sendo uma máscara de concentração. Ela percebeu meus olhos abertos após alguns minutos, seu rosto azedou levemente antes de voltar sua atenção para meus machucados. 

 

Mantive-me imóvel, observando a bela mulher à minha frente, sua máscara de concentração rachou para mostrar um pouco de sua raiva, mas continuou me tratando. Hana terminou sua atadura e se levantou para pegar algo no armário no canto do quarto. Usei minhas forças para me sentar à beira da cama e me olhar no espelho ajustável no canto do lado da cama. As ataduras estavam enroladas em meu abdômen, pescoço e ombro, também tinha ataduras em alguns locais em minhas pernas. 

 

Hana voltou trazendo um copo cheio de ervas mergulhadas na água, sussurrando um encantamento enquanto andava, logo se sentou ao meu lado na cama. Ela me ofereceu o copo ao terminar o encantamento, já havia me acostumado com o  cheiro anestésico da poção de tanto usá-la. Bebendo a água, o líquido refrescante relaxou minha garganta e tudo restou até se acomodar em minha barriga. A sensação de alívio se espalhou a partir da barriga e suspirei quando o efeito relaxante chegou à minha cabeça. Meu cérebro cansado e estressado relaxou com o efeito da poção gota orvalho. A poção serve principalmente para estimular a produção de sangue e melhora a recuperação física com um processo lento. Segurei o copo entre minhas mãos. Hana estava quieta e isso me preocupava. 

 

— Eu…

 

— Cala boca. — Ela me interrompeu. 

 

Hana pegou o copo das minhas mãos e o levou até o armário. Ela começou a remexer nos potes de ervas até o ponto em que bateu as duas mãos no balcão do armário. O som alto percorreu o quarto fechado, ela soltou um suspiro afiado e tudo que consegui fazer foi assistir em silêncio. Minhas palavras seriam inúteis e não haveria nada para explicar, eu errei e terei que pagar por isso, tudo que posso fazer é esperar que ela me deixe expressar isso e me perdoar. Ela se escorou no armário, sua cabeça estava baixa, as palavras queriam sair, mas ficaram presas em minha garganta.

 

— Você sabe o que eu pensei de você no nosso primeiro encontro? 

 

Apenas fiquei em silêncio.

 

— “Um restaurante simples, roupas simples e um jeito descontraído, acho que ele vai me surpreender ainda”, eu pensei, no final eu acertei… eu vi logo no início que você odiava falar de si mesmo, mas quando falava do Samuel, Glória, Vincent, a sua carranca que você chama de rosto rachava e eu via um homem que faria de tudo por quem ama… menos demonstrar que os ama. 

 

Ela se virou, seus olhos marejados, se recostando no balcão do armário. 

 

— Eu aceitei sua raiva, seus defeitos, seus erros porque sei que você me ama e eu… eu te amo, seu desgraçado, mas eu estou cansada de ver você fazendo isso, de achar que correr como um doente atrás de um espírito é o jeito certo de demonstrar amor pelo seu irmão, pela Glória… pelo Samuel… porra, você saiu no dia do aniversário dele e nem mesmo se deu ao trabalho de dar um beijo de despedida nele.

 

Meus olhos começaram a pesar, meus lábios tremiam quanto mais perto ela chegava de mim enquanto falava.

 

— Eu odeio essa entidade pelo que ela fez a você, ao Samuel, à Glória, a todos nós porque vocês são mais do que nascidos da Aurora, porque eu te amo e amo aquele garotinho meigo, a Glória preguiçosa, o Goro com piadas velhas, amo você e quero ser parte de você… — Ela se sentou ao meu lado, suas mãos quentes em meu rosto, minhas lágrimas caíram olhando as lágrimas de seus olhos caírem. — Eu te amo, nós te amamos, então pare de nos obrigar a ter o pesadelo de enterrar seu corpo antes da hora, eu não ligo se você tem vergonha de falar seus sentimentos porque eu sei o que você sente… apenas quero que você melhore.

 

Desci meus joelhos ao chão e me agarrei em Hana, mergulhando minha cabeça em sua barriga. Toda a compostura de um homem adulto se foi quando os soluços começaram. Meu corpo perdeu as forças chorando no colo de Hana, os soluços intermináveis com meus pedidos de desculpas ficando embaçados pelo choro. Hana passava suas mãos em minhas costas, suas lágrimas caíram sobre mim enquanto ela me acariciava. O peso do meu coração era diferente, a culpa agora me assombrava de uma forma diferente, eu me sentia… seguro. 

 

— Me desculpa… me desculpa… desculpa…

 

Talvez horas tenham se passado comigo chorando em seu colo, todo o peso que restava me deixou restando apenas o vazio e a culpa, o mar onde agora eu navegava estava calmo comigo olhando o horizonte. Hana fazia carinho em minhas costas, passando as mãos pelo meu cabelo e traçando linhas em minha pele com seus dedos. Minha mente perdida percebeu que havia um horizonte a seguir, uma estrela brilhando intensamente para mim contra um céu escuro banhado com estrelas e constelações. Ergui minha cabeça para ver os olhos de Hana, o castanho com âmbar refletindo a luz dos meus olhos.

 

— Eu… te amo.

 

Sua feição se iluminou, a pele alguns tons bronzeada impecável com linhas semelhantes a rachaduras ou ondulações na casaca de uma árvore, isso misturado à sua própria beleza a deixava mais linda. O cabelo na linha dos ombros, com fios ondulados e cor castanho escuro quase preto, é a união perfeita de dois traços diferentes. A beleza de seu rosto apenas perde para o brilho gentil de seu fluxo. Eu me perguntei internamente muitas vezes durante muito tempo como consegui tê-la ao meu lado, mas nesse momento eu apenas posso agradecer por isso. Agradecer é muito pouco, eu preciso melhorar, ser melhor. 

 

— Eu também te amo… agora, vamos fazer isso da forma certa. 

 

Eu serei melhor.



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