Volume 2

Capítulo 39: Rastro III

[Segunda-feira, 12 de setembro de 2412, 02:37 da madrugada]

 

O saguão do segundo andar tinha grandes janelas com as cortinas fechadas, algumas mesas e uma máquina de vendas disposta no local. As silhuetas do corredor apagado começaram a se aproximar com cautela, ajustei minha posição segurando a espada a frente do corpo, admirei a lâmina de metal azulado com uma fina película de líquido roxo que absorvia a luz das lâmpadas, a guarda de bronze com símbolos dourados e empunhadura escura com uma corda presa ao final da empunhadura e com uma moeda presa ao final da corda. Suspirei, abrasando meu Foco por todo o corpo.

 

Escala de Malha Fluída: Extensão. 

 

O esmero se espalhou pelas raízes em todo o meu corpo, maximizando meus músculos e ossos, afiando meus pensamentos, a distorção temporal da minha percepção ficando mais lenta e afiada. A Escala de Malha Fluida e o aspecto do Esmero maximizam os músculos alimentados com suas “calorias”. Existem muitas variações do Combate de Contato Esotérico, mas a Extensão é algo que poucos sabem fazer direito. A energia que amplia o ataque em uma micro explosão concentrada se alonga para ter o mesmo efeito com as armas. 

 

A energia correu pelos anéis em minha mão direita e mergulhou dentro da empunhadura da espada, penetrando o aço através das runas gravadas em toda a lâmina e empunhadura. Diferente do corpo de seres vivos, as armas precisam ter as “raízes” construídas manualmente através de runas, sigilos e afins, mas assim como nossos corpos, a energia dentro do metal precisa ser manipulada com cuidado para ter algum efeito real de melhora no desempenho da arma. O aspecto do Esmero dentro da lâmina deixava o aço mais duro e resistente, apenas isso já me dava vantagens absurdas. 

 

Agora, vamos lá.

 

A presença que as criaturas emitiam era banhada no Miasma, mas era uma frequência diferente do que havia nos escombros do posto, havia um toque infernal na frequência emitida. Estendi energia invisível aos olhos, tão bem destilada e diluída que poucos conseguiriam senti-la, uma cúpula invisível de cinco metros para cada direção se formou ao meu redor, meus sentidos se retraíram apenas para focar completamente na área do meu Território, tudo que entrava nessa área era instantaneamente percebido por mim. Sem brechas, sem surpresas, a área de abate está feita.

 

A primeira criatura saiu das sombras, seguida por todas as outras. Entre os quatro humanos transformados em Pútridos, havia três bestas distintas. A forma de cães com longos membros e uma membrana semelhante a asas nos dois membros da frente já me gerava repúdio, havia espaços onde a pele com pelo desgrenhado de seus corpos era inexistente, como furos em uma roupa que permitia ver sangue escorrendo dos seus músculos para o pelo castanho desgrenhado. Suas cabeças eram grandes, onde ficavam os olhos pretos, mas possuíam um fino bico com milhares de dentes retorcidos.

 

Gavials

 

Os dois primeiros a entrarem no meu território foram pútridos em uma corrida cambaleante. Com um movimento, pulei girando meu corpo, acertando a cabeça de um dos Pútridos em duas partes. No final do giro, ergui um dos meus pés, acertando o segundo pútrido na barriga o jogando contra o que estava atrás dele. Mantive-me alerta nas posições dos três Gaviais, mas dois deles estavam mais interessados em Armando, restando apenas um que me rodeava enquanto lutava contra outro pútrido. Uma velha com a aparência mutilada tinha alguma noção, atacando e recuando, dando tempo para os dois pútridos que se trombaram se levantarem.

 

Irritante.

 

Avançando com uma joelhada na Velha, desconectei ambas as mãos que tentaram me agarrar em um corte na linha do antebraço, chutando o joelho da velha, o osso saiu do outro lado e ela foi para o chão. Sentindo os dois outros Pútridos que se aproximavam por trás, me virei, desviando da emboscada de ambos, dobrando meus joelhos e me curvando, tracei a lâmina pela perna de um homem que estava vestido apenas com uma cueca, desconectei sua perna do resto do corpo, aproveitando o movimento para contra atacar uma mulher com um vestido simples que tentou me morder. Segurei seu braço, colocando a lâmina entre nós e a puxei, empalando sua cabeça debaixo para cima. 

 

Os olhos da mulher perderam o brilho opaco, se tornando apenas olhos de um defunto. A empurrei, deixando o corpo cair e a removendo da lâmina. O cheiro no ar dava uma sensação semelhante a estar dentro de uma fossa de esgoto, o sangue que deixava os inúmeros cortes e as demais feridas expostas dos Pútridos banhavam o chão bege amarelado em vermelho. A Velha Pútrida aos meus pés, sem mãos ou capacidade de ficar de pé, tentou desesperadamente me morder. Coloquei meu pé sobre sua face, descarreguei o peso do meu corpo sobre sua cabeça até ouvir o estalo úmido. 

 

Eu…

 

O homem de cueca rastejava freneticamente em minha direção, me movi para trás, usando o sangue no chão para deslizar rapidamente e me esquivar de seus ataques. Chutando o corpo do Pútrido com a cabeça partida em direção ao homem de cueca, o corpo caiu sobre o Pútrido frenético, corri usando uma cadeira para pular, alinhando a lâmina em meio ao salto, empalei a cabeça do homem de cueca através do corpo do outro pútrido, seus movimentos pararam com seu cérebro perfurado. Retornei a minha atenção para o Gavial que me rodeava, sem tempo para admirar o cenário mórbido à minha volta.

 

Te dou paz. 

 

Os olhos negros do Gavial me observavam, podia ouvir sons de muitas coisas se quebrando vindo do corredor onde Armando estava com os outros dois Gaviais. Mesmo que os Obscuriais sejam o equivalente a animais do obscuro, eles ainda assim são inteligentes até certo nível. Já enfrentei alguns durante minha vida e devo reconhecer que essa espécie tem uma inteligência notável. Como caçam em bandos, os outros dois e esse certamente formam uma matilha. Balancei a espada com força para tirar o sangue maculado da lâmina. Eu e a criatura nos encaramos com seu rosnado formado por estalos, ficando cada vez mais alto.

 

Com minha percepção lenta e afiada, a criatura avançou contra mim, seus dedos que terminavam em longas garras raspavam no chão ensanguentado por onde pisava. Quando ele entrou na área de cinco metros do meu Território, senti cada pequena parte dele com atenção, sua forma e principais armas em seu corpo, os músculos e como eles estavam se movendo, prevendo seus ataques com um processamento constante das informações que eram percebidas pelo meu consciente e inconsciente. Usando o sangue no chão, me agachei, deslizando e passando por debaixo de seu bote. 

 

Olhando mais claramente a criatura no lugar iluminado, sua coluna vertebral era exposta, deixando à mostra os ossos, a carne e músculos na corcunda em suas costas. Sua coluna se estendia até uma cauda de músculos e ossos expostos, a ponta de sua cauda era um osso escurecido como suas garras, que também tinham uma ponta bifurcada desgrenhada. A criatura avançou novamente, suas garras batiam contra minha lâmina em minhas esquivas, enviando sons agudos no ar. Ele girou, lançando a ponta bifurcada contra mim, me dobrando de costas sobre uma cadeira do salão. O ataque estocou onde eu estava há segundos. 

 

Com um tranco de todo meu corpo, me ergui novamente, agarrando a cadeira que usei para sustentar meu corpo e a lançando sobre ele. Antes mesmo da cadeira chegar nele, avancei atrás da minha distração, colando a espada ao lado do corpo e abrasando ainda mais meu Foco junto ao Esmero que corria por todos os músculos. O som do móvel sendo destruído se perdeu quando a energia correndo por meu corpo atingiu seu ápice, os movimentos da criatura ficaram ainda mais lentos com inúmeras aberturas se abrindo. Nunca vou me cansar dessa sensação de anestesia.

 

Lampejo.

 

A distorção temporal da minha percepção ficou mais lenta quando a energia dentro de mim vibrou em um pulso único, meu corpo perdeu o peso e o pouco cansaço desapareceu momentaneamente. Nesse momento, onde parecia que o tempo se movia mais devagar ainda, as aberturas na postura do gavial eram tão claras quanto a luz do dia. Lutar contra qualquer criatura é sobre se esquivar constantemente e aguardar uma abertura para decidir a batalha em um golpe. O fluxo e meu corpo alinhados, minha energia aumentando junto à força do meu presságio e percepção.

 

Minha katana passou pela face retorcida da criatura, cortando sua mandíbula em forma de bico e o fio traçando a carne de seu rosto. Seu olho se desfez em sangue. Pelo meu corpo, o foco estava em seu ápice, minha emissão de energia melhorou por abrir mais a saída quando liberei a micro explosão de foco que resultou no Lampejo, minha emissão melhorou, minha percepção ficou mais afiada e durante 3 segundos eu podia usar o potencial máximo do meu corpo e mente. Sem desperdiçar os 2 segundos restantes, girei meu corpo cortando a pata direita do gavial e o chutei contra a máquina de vendas.

 

A percepção continuava melhor junto a minha emissão de energia mesmo após o efeito de anestesia passar no último segundo, minha conexão com o fluxo era um pouco maior agora. O Lampejo é uma técnica complexa que apenas anômalos podem usar, mas poucos conseguem ou devem, precisa de um corpo forte e requer uma saída constante e controle preciso de energia para realizar uma explosão dentro e fora do fluxo, fazer a energia dentro do meu corpo se excitar ao mesmo tempo que a energia dentro do meu espírito. Alinhar corpo e espírito e forçar a conexão a se expandir para aumentar momentaneamente o limite. 

 

Após o Lampejo, a minha percepção do tempo ficou um pouco mais lenta do que antes, mesmo que muito pouco. Cada Lampejo melhora a conexão com o fluxo por forçar a passagem. O problema é que realizar um Lampejo é forçar de forma bruta a conexão se abrir, essa explosão de energia por todo meu corpo e espírito é algo que deve ser feita apenas uma ou duas vezes no dia, mesmo um corpo em seu auge como o meu teria meus músculos rasgados, ossos quebrados, um AVC ou uma parada cardíaca se eu tentar forçar muitos lampejos consecutivos. O gavial soltou um rugido choroso, saindo das ferragens da máquina de vendas.

 

Estalos de garras batendo no chão vieram do corredor, seguidos por batidas pesadas e choros semelhantes aos de cachorros. Os grunhidos começavam a me preocupar. O gavial sem uma pata e mandíbula cortada tentou se aproveitar da minha distração, se lançando contra mim em um bote. Seu corpo passou ao meu lado enquanto alinhava minha lâmina abaixo dele e colocava toda minha força em um golpe em sua barriga, girando meu corpo com meu peso sobre a espada, a lâmina passou pelo meio do gavial. O corpo da criatura amoleceu no ar, seu peito aberto até o estômago permitiu que seus órgãos e sangue saíssem após cair no chão.

 

Soltei o ar em meus pulmões sem tempo para olhar em volta, fixando meus olhos no corredor escuro onde três silhuetas se digladiavam e algumas faíscas iluminavam a cena. Mesmo temendo por Armando, entrar no meio do conflito de qualquer forma vai ajudar menos do que apenas assistir. Observei as silhuetas, a escuridão sendo menor que o normal por uma das graças que a herança me concede. Quando a silhueta de Armando estava livre, eu avancei em direção pelo corredor, mirando em uma silhueta das criaturas à sua frente. Meus olhos rapidamente se adaptaram à escuridão que nos cercava quando empurrei um dos Gaviais com um chute.

 

A janela no final do corredor permitia a entrada da escassa luz que vinha dos postes de fora. O som da chuva junto ao som do show que acontecia ao lado do prédio ficaram mais claros. Observei como as criaturas meio cobertas pela escuridão estavam ao lado de um corredor de maneira protetora, a porta do apartamento do lado onde eu e Armando estávamos estava destruída, a moldura ao redor da porta e as paredes com marcas de garras e sangue, enquanto o outro lado estava em melhores condições. Estão protegendo o outro lado. 

 

Armando estava sujo, mas ileso, com seu machado nas mãos, sua postura era baixa como um felino se preparando para o ataque. Encarei a porta a alguns metros de mim, a silhueta do gavial à minha frente rosnava mais alto quando eu olhava essa porta atrás dele, as duas criaturas se ajustavam soltando seus rosnados, os olhos pretos refletindo a pouca luz que entrava pela janela no final do corredor, olhei de canto atrás de mim a porta destruída bolando um plano. Os Gaviais estão protegendo mais um lado e é óbvio que estão ganhando tempo.

 

O mestre deles ainda está aqui. 

 

Sem perder mais tempo, saltei para trás, trazendo o gavial que me seguia com os dentes retorcidos à mostra, inclinei para o lado e desci o fio da espada em sua barriga. Suas garras tentaram me alcançar antes de girar, tentando me apunhalar com a ponta em sua cauda. O golpe passou perto, mas apenas abriu abertura para chutar a lateral de seu corpo contra os móveis. Canalizei meu foco para um dos adornos em meu corpo, o símbolo e conhecimento apareceram em minha mente com obra ativa. A energia carregando o feitiço se estendeu como finos fios por meu corpo. 

 

Deixei reparar o lugar onde estava, a porta com batente destruído dava em um dos apartamentos do hotel totalmente bagunçado. Havia corpos de pessoas no chão, detalhados com marcas de garras e mordidas. Mesmo concentrando-me na obra em minha mente, um sentimento sombrio de raiva e impotência correu por mim. Realmente chegamos muito tarde, o que resta agora é enviar essa mensagem… gravá-la na carne dos servos do obscuro. O foco carregava o feitiço que se espalhava pelas finas linhas dentro do meu corpo, penetrando as runas do metal da lâmina. 

 

Eco.

 

Limpei minha mente, me esquivando dos ataques do gavial, movendo meus pés com tanta precisão e agilidade que, se alguém estivesse assistindo, pensaria que eu estava dançando com o monstro. Cada esquiva bem sucedida, cada pequeno contra-ataque que eu realizava entre seus golpes, mais e mais feridas se acumularam no corpo da criatura até seu pelo estar banhado em sangue. Nós dois paramos nossa dança, o som da batalha de Armando ecoava atrás de mim enquanto encarava a criatura acabada a minha frente. O gavial avançou para mim, a poucos metros, sua pata erguida para me atacar se implodiu em pedaços de carne e sangue. 

 

Desabrochar. 

 

Avancei em meio à sua dor, cortando a outra pata, seus gritos perfurando meus ouvidos, com ele se debatendo e agonizando no chão. Mais sangue deixou suas feridas e elas aumentavam com o som de sua carne sendo rasgada como tecido. Em cada pequeno contra ataque e até mesmo apenas o ritmo de nossa luta, cada resquício da obra que coloquei em seus ferimentos tinha o suficiente para desabrochar. A corrente que me conectava ao feitiço precisava de pouca da minha atenção, a criatura já estava morta, praticamente.

 

Erguendo a espada sobre o gavial banhado no próprio sangue, desci a lâmina em sua cabeça, encarando seus olhos sem brilho, a respiração irregular e grunhidos chorosos pararam nos próximos segundos. Voltei minha atenção para Armando, mesmo a lâmina cinzenta de seu machado sendo maior que uma cabeça, ele o manejava com agilidade com o cabo de madeira ricamente decorado. A criatura estava encurralada quando um golpe dividiu seu ombro do resto do corpo. Armando chutou novamente o gavial contra a parede, erguendo seu machado, ele o desceu na corcunda da criatura. 

 

O grito desesperado do último gavial cortou o ar e a atmosfera ficou mais pesada antes do machado de Armando descer sobre sua cabeça, o crânio destruído junto ao cérebro. Ele se virou, seu cansaço e expressão sombrios se encontraram com o meu olhar. Olhei ao redor, sangue nas paredes, teto, chão e janelas, marcas de garras por todo o chão e algumas nas paredes, os móveis destruídos com os corpos retalhados dos civis e as duas criaturas, junto ao cheiro ferroso do sangue, a podridão ainda estava no ar. Olhei através do buraco que antes era a porta do quarto, podia sentir as presenças através da porta que as criaturas estavam protegendo.

 

— São anfitriões, errantes ou fanáticos? — Armando perguntou próximo a mim, cansado e com a voz pesada.

 

— Vamos descobrir. 

 

Caminhei em direção à porta, canalizando mais foco em minha obra. O Eco, assim como a maioria dos feitiços, possuía suas variantes. Os feitiços ou obras, são como uma receita para a energia conseguir se manifestar da forma muito mais refinada, fazem isso de forma “automática”, o conhecimento dentro de uma obra “ensina” a energia o que fazer e ela sai pronta para realizar aquilo que foi ensinada, isso prende a energia enfeitiçada, mas manipular o feitiço permite “extender” a ideia, nunca fugindo do conhecimento original. Manipular energia seria fazer uma manifestação “manual”. 

 

Manipulando a obra, o conhecimento contido ensina a energia a imitar minhas ações ou as ações das coisas que eu uso. Os vestígios da energia enfeitiçada no corpo do gavial imitaram o corte da lâmina, resultando em “cortes fantasmas”. Há uma outra forma de usar esse Eco das minhas ações, manipulando o feitiço dentro do metal da espada. As runas ampliaram o poder, encostei a ponta da lâmina na porta, liberando uma pequena porcentagem da energia acumulada sobre a madeira suja de sangue. Marcas de cortes surgiram junto ao som da madeira quebrando antes de a porta se desfazer em partes irregulares. 

 

Máxima: Eco.

 

Três presenças ficaram claras comigo avançando para dentro do quarto, o ar fedia a Miasma e as três figuras encapuzadas com mantos roxos escurecidos saltaram para trás em surpresa. No chão, havia linhas de ritual com runas e sigilos que reconheci como parecidos com os dos amuletos dos cultistas no pátio de caminhões, tigelas de oferendas cheias de carne junto a uma estátua de um ser magro com a cabeça tendo uma forma losangular e quatro braços, estava no meio do ritual. Duas das três figuras tiraram facas recurvas dos mantos escuros e a terceira apenas se aproximou da estátua.

 

— Você de novo, moleque desgraçado! — reclamou a figura que avançou para a estátua.

 

Prendi a atenção das duas figuras armadas, com Armando avançando contra a figura, mexendo na estátua. Um dos dois atacantes que era mais baixo avançou para iniciar uma breve troca de golpes antes do segundo tentar me emboscar, chutando o pé do mais baixo. Passei a espada pela face encapuzada, afundei a ponta da lâmina em seu crânio, contraindo o osso com facilidade. Seu corpo ficou mole enquanto se virava para bloquear o ataque do segundo cultista. Refleti o golpe da adaga para cima, reajustando a espada, cortei o pulso do cultista e agarrei sua túnica, enfiando a lâmina em sua garganta.

 

Houve apenas um gorgolejo seguido por um suspiro quando rasguei a lateral do pescoço do segundo cultista. Olhando ao redor, minha visão travou no último cultista. Seu rosto, completamente coberto por bandagens negras, tinha apenas dois buracos para seus olhos, eles tinham um brilho vermelho carregado de medo quando encontrou ou meus, ele balançava sua adaga com rapidez para Armando. O garoto apenas não o matou porque precisamos de informações e só ele sobrou. Havia algo mais no olhar do último cultista encarando Armando, raiva, uma raiva pessoal. 

 

— Se afasta, pirralho loiro… vocês dois estão mortos! Ela já está chegando aqui e vocês vão pagar por essa interrupção! — os gritos desesperados do último cultista sobrando eram banhados nesse mesmo medo e raiva de seus olhos.

 

— Então será mais fácil para nós te matarmos e esperarmos por esse que está chegando para obter informações… né? — Avancei cortando contra a figura encurralada na parede. 

 

O quê?!

 

O ar de repente ficou extremamente fino, tão leve que parecia que eu estava me afogando no vazio toda vez que tentava respirar, guardei o ar que havia em meus pulmões antes de me jogar contra Armando, tirando-o da frente da figura. O presságio fazia meu corpo inteiro se arrepiar, os calafrios constantes agora eram um frio paralisante em cada parte de minha barriga, um clarão surgiu onde eu antes estava seguido de gritos desesperados, os mantos queimados do cultista mostravam seu rosto. Entre as muitas feridas abertas na cabeça do cultista, sangue vermelho caramelo saía de pequenos buracos junto a vermes pretos em meio ao pouco cabelo.

 

Que tipo de merda é você?

 

Olhei a porta, deixando a abominação de lado para ver a criatura com a presença agoniante. O homem de pele branca enrugada e cabelo curto cinzento estava na porta com fumaça saindo das mãos. Os mantos brancos ensopados tinham inúmeros rasgos manchados de sangue vermelho caramelo, o maior estava em seu ombro direito, a ferida sangrenta tinha uma crosta queimada igual aos seus punhos, seu rosto tinha inúmeros hematomas e cortes, mas ao redor dos olhos laranja flamejantes havia rachaduras negras. Meu corpo gelou ainda mais ao ligar a aparência do homem com as histórias de Marcelo. 

 

É você? A entidade!

 

Armando me trouxe a realidade com a mão no meu ombro. No canto da pequena sala do apartamento, dava visão para a entidade e o cultista que estava tentando apagar o fogo de suas roupas e esconder a cabeça novamente. Os olhos desdenhosos da entidade pálida se voltaram para nós, mais especificamente para Armando. Havia um reconhecimento sutil nos olhos brilhantes, um sorriso se formou mostrando um sorriso com muitos dentes faltando e os que havia eram pretos como carvão. Armando soltou um chiado agudo, seu aperto em meu ombro ficou mais forte e, olhando de canto, havia raiva nos olhos dele.

 

— Eu já encontrei o seu amigo barbudo, infelizmente nosso duelo foi interrompido porque ratos de esgoto são incapazes de fazer qualquer coisa sem ajuda… eu queria tanto ter me banhado no sangue dele e no de vocês, mas infelizmente, temos coisas importantes para resolver… pegue a semente e venha, Bartolomeu. — A voz áspera era profunda ao mesmo tempo que jovial. 

 

Meus olhos foram para o cultista, o rosto deformado com um grande buraco sangrento na testa tinha uma mistura de raiva e medo, ainda tentava esconder sua face. Os vermes em sua cabeça se moviam de forma agitada e desci mais meus olhos. Ele tinha algo em sua mão que antes eu julgava livre, ele segurava essa coisa tentando escondê-la atrás da coxa entre o manto. Nenhum de nós quatro nos movemos, havia uma tensão palpável no ar, provavelmente a entidade pálida percebeu que eu percebi essa tal “Semente” que o cultista estava tentando esconder. A entidade dá curtos passos, seguindo a linha do ritual e observando a estátua.

 

— Eu lembro de você, garoto loiro, você estava presente naquela casa onde fui banido para o outro lado pelo outro homem, lembro do medo nos seus olhos, o cheiro da sua fraqueza, o outro humano apenas deu sorte que eu estava brincando… senão, eu teria terminado de matar toda aquela família de vermes, o pai, a mãe, o titio, o vovô… e o merdinha. 

 

As luzes, mesmo quebradas, os aparelhos e as velas acesas, começaram a oscilar, minha raiva e a de Armando penetraram o ar quando nossos semblantes se libertaram.

 

— Quer saber o que o pai do garoto disse quando eu enfiei minha mão na barriga dele? “Sammy…”, aí… aquela voz… banhada em medo e dor… foi tão satisfatório… delicioso! Muito melhor que sexo, drogas, bebidas ou poder, melhor que tudo nesse mundo… só perde para quando eu queimei as mãos do pirralho. 

 

Filho da puta!

 

Meu corpo agiu sozinho, cada músculo se movendo em direção à entidade, o medo desaparecendo como uma breve coceira quando, com poucos passos, eu alcancei o Desgraçado. Movi a espada com tanta velocidade que a lâmina se tornou um vulto azulado, o homem pálido se esquivava, mas cada corte era seguido por cortes fantasmas na lâmina como se fossem espadas paralelas à minha, seu punho, coberto por uma crosta de carne queimada, tentou segurar a lâmina, sendo cortado pela mesma seguida por cortes fantasmas que detalharam sua mão. Meus instintos gritaram quando seu outro punho veio em minha direção e troquei o bloqueio por uma esquiva.

 

Uma labareda de fogo rosado escurecido marcou o teto onde queimou, o machado de Armando voou para o ombro com a ferida sangrenta da entidade, o jogando contra a parede. Parei Armando, que estava correndo em direção ao homem pálido, suas risadas sádicas preenchendo o espaço destruído do lugar e meus instintos, presságio e herança gritando para que eu me afastasse. Ouvi meus instintos puxando Armando comigo quando o ar começou a vibrar e as risadas da criatura ficavam mais altas e medonhas. Puxei Armando para a mesma escadaria que usamos para subir, descendo cada degrau com ansiedade.

 

Quando estávamos passando pelo saguão de entrada, uma explosão quase me fez tropeçar em minha corrida para o estacionamento da frente. O calor varreu o ar frio da madrugada. O segundo e primeiro andar estavam em chamas, as janelas se tornaram buracos e o concreto sedia, o letreiro de neon caiu trazendo consigo mais fogo rosado banhado em laranja obscurecido para o primeiro andar, esse fogo se movia como uma aberração sem forma, começando a engolir todo o prédio. Algo saiu do meio do fogo no segundo andar, eu e Armando nos afastamos quando seu machado passou entre nós. 

 

A arma estava fumegando, sua lâmina incandescente pelo calor, a marca de uma mão queimada na madeira do cabo. Encarei o segundo andar para ver uma silhueta escura humanoide se destacando contra o fogo brilhante que devorava o prédio. Talvez fosse apenas uma ilusão do som monstruoso do fogo, mas meus ouvidos foram capazes de ouvir uma última risada sádica antes do fogo brilhar mais intensamente e a silhueta desaparecer. Nunca é uma luta justa, nunca vai ser… que merda, a impotência preenchia meu corpo enquanto o aspecto do Esmero me deixava, o cansaço sendo menor pela graça da herança.

 

No meio da rua, as pessoas que antes estavam no show de distração começaram a se aproximar enquanto o fogo rugia para a chuva. Armando pegou o machado fincado no asfalto, andamos até atrás da vão onde outra pessoa assistia tudo com uma feição analítica, me recostei contra a van, a realidade caindo sobre mim junto às palavras da criatura, ele mencionou um “amigo barbudo”, os cortes em seu corpo e hematomas tinham vestígios da energia do Marcelo. Meu coração gelou tanto que doía quando peguei o celular, ignorando as vozes da multidão que se formava em frente ao prédio.

 

Um peso de toneladas deixou meu peito quando a ligação foi atendida.

 

— Marcelo? 

 

Apenas o ruído de chuva caindo em metal vinha do outro lado?

 

— Responda?!

 

Um outro ruído começou, como trancos  na respiração.

 

— Seu canalha, paspalho, idiota, estúpido, imbecil, pedaço de merda, barba de bode, fedorento, idiota, idiota… IDIOTA RESPONDE!

 

O ruído ficou mais claro, o som do seu choro contido saía da linha.

 

— Por favor… Marcelo? Você está bem? Responda, merda!

 

Houve uma pausa em seu choro, o som de sua respiração ficou nítido antes de sumir novamente e apenas o ruído da chuva restava.

 

— Bar do Requintado, eu… te vejo lá — falou com sua voz chorosa antes de desligar.

 

Desgraçado!

 

Armando, que estava ao meu lado, se afastou. Tive que usar cada grama de autocontrole para não esmigalhar o celular em minha mão, para conter o grito de raiva que queria sair. Muitas emoções se manifestaram: raiva, mágoa, culpa, alívio, felicidade e todas queriam aparecer de uma vez só, mas contive isso colocando minhas mãos sobre a van e respirando fundo. Segundos ou minutos se passaram comigo respirando fundo, a mão de Armando acariciava minhas costas enquanto minha mente em branco voltava a funcionar. O som das sirenes de bombeiros e policiais foi o que me trouxe dos meus pensamentos.

 

Guardei a espada na bainha e depois a coloquei no estojo, coloquei a alça do estojo no ombro ainda organizando meus pensamentos. Tentar procurar um rastro com uma entidade envolvida é perda de tempo, eles podem se mover pelo Véu ou até mesmo se teletransportar usando o véu, então ia ser uma busca inútil olhar ao redor do prédio esperando encontrar uma pista de onde possam ter ido ou onde estão, tudo virou cinzas, o que me resta é encontrar Marcelo, nossas mentes trabalhando juntas será melhor. O pensamento vinha com culpa e raiva, afinal, Marcelo persegue essa entidade á oito anos…

 

— Avise a Odessa que as coisas deram errado da pior forma, mas temos novas informações para reportar a ela… — falei para o homem de costas para nós que observava a multidão.

 

— Boa caçada — disse o homem, ainda encarando o prédio em chamas.

 

Atravessando a rua para chegar ao meu carro, vi que o fogo perdeu a coloração rosada e se tornou labaredas laranjas comuns. Me culpei ainda entrando no carro. Se eu tivesse feito um ritual ao invés de ceder às provocações, talvez eu conseguisse pegar aquela tal “semente” ou ao menos capturado o cultista. Nessa altura, nem mesmo sei se o cultista está vivo. Pela forma que a entidade o tratou, ele parecia ser alguém dispensável, então provavelmente ele virou carvão. Suspirei após dar partida no carro, tantos cenários e apenas dois são bons. 

 

Tentar criar um território para nos defender teria sido inútil, a fumaça, calor, falta de oxigênio e a própria entidade passariam por isso, nós dois termos saído vivos é um dos dois bons finais. E segundo que talvez desse certo era realizar um ritual rápido para enfraquecer a entidade, isso se nesse cenário hipotético eu conseguisse realizar o ritual. Essa foi a melhor saída possível dessa situação. Sabemos dessa tal “semente”, dois cultistas e três Gaviais estão mortos e estamos vivos. Comecei a me preparar mentalmente para encontrar Marcelo, destilando a raiva e a culpa. 

 

— Onde ele está? Ela está… bem? — Armando perguntou quando o carro começou a andar.

 

— É uma boa pergunta, vamos ter que achar um tal Bar do Requintado… quanto à segunda pergunta, acho que depois que eu encontrar ele, “bem” vai ser uma palavra muito distante do estado em que vou deixá-lo. 

 

Ouvi Armando engolindo em seco quando comecei a mexer no GPS, meus pensamentos começando a formar muitas teorias e conexões. Devo ser sincera que parte da raiva dentro de mim veio das palavras da criatura. Marcelo apenas é quem vai receber essa raiva, a forma desdenhosa com que ele falou do Sammy junto ao que ele fez para Sammy e Vincent, eu odeio admitir, mas agora eu posso entender mais o que Marcelo sente, mas isso está longe de livrar ele de suas idiotices. Essa entidade vai pagar, pagar por ter destruído a vida de um garoto doce, mas antes disso eu preciso achar Marcelo.

 

Eu vou te pegar.

 





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