Volume 2
Capítulo 38: Rastro II
[Segunda-feira, 12 de setembro de 2412, 01:57 da madrugada]
Contar quantos postes de luz passávamos era muito pouco para me distrair. As ruas quase vazias através do para-brisas e chuva tinham poucas coisas para me entreter nos aproximando do nosso destino. Voltei minha atenção para o rádio novamente, passando pelas estações com uma esperança mórbida de que algo mais estivesse acontecendo, mas a atenção estava no incêndio do posto, a culpa foi colocada em um defeito nas bombas que teve o incêndio como resultado desse “defeito acidental”. Desliguei o rádio, evitando as teorias dos âncoras e comentaristas da rádio.
Apenas um acidente, quem dera fosse tão simples.
Os lados da estrada tinham pastos, suas cercas a alguns metros da rua e, antes delas, árvores plantadas uniformemente como uma moldura para estrada. Assim como a maioria das cidades no continente, o agronegócio é o que sustenta a economia de Cairiti, sendo a segunda maior cidade do estado de Alturas.
O atual governador eleito pela Imperadora está em uma espécie de competição para passar a cidade a sua frente, até aí é algo relativamente saudável, o problema está nos detalhes. Cidades grandes são as favoritas dos Obscuriais, cidade com grandes movimento, problemas e demais contratempos abre brechas na segurança pública.
Diminuí a velocidade, entrando em um acostamento baldio que dava em um portão de madeira fechado, abaixei o vidro para mostrar minha identidade para câmera abaixo do teto do portão. O portão se abriu e fechou após meu carro passar.
Uma estrada de britas cortava um pasto ao meio junto às cercas nas laterais, ela terminava em uma encruzilhada em frente a um terreno com grandes muros bege e um portão de metal, nos muros estava escrito: “centro de reciclagem”. O portão de metal se abriu, entre pilhas de carros velhos e sucata, a estrada de britas continuava.
Movimentei entre as montanhas de carros empilhados. Conseguia ver máquinas e trabalhadores com coletes brilhantes se movimentando em meio ao pátio do ferro velho. A fachada precisa ser convincente, os Pombos são nosso serviço de limpeza, eles estão sempre nos centros nervosos, prontos para fazer cadáveres de criaturas desaparecerem. Além disso, são a melhor rede de contatos do continente, talvez do mundo. No labirinto feito pelas montanhas de sucata, uma casa relativamente normal apareceu em um espaço limpo.
Parei o carro em frente a casa com as montanhas de sucata nos cercando e analisei os dois carros em frente a varanda da casa humilde. Trocando olhares com Armando, deixei a proteção do carro para sair na chuva, sentindo um arrepio na minha espinha.
Os ventos gelados vinham de todas as direções, carregando o cheiro de ferrugem e metal. Podia sentir o presságio suave e bom, algo difícil de discernir. Subimos a escada para ficar sob o teto da varanda e, quando ia levar a mão contra a porta, ela foi aberta para nós.
Um idoso com foi quem abriu, ele nos observava com uma expressão meiga, ele sinalizou para que entrássemos, passamos pelo idoso entrando na sala de estar. Ela era iluminada por velas, os poucos aparelhos eletrônicos eram um rádio, televisão e telefone dispostos em diferentes lugares pela mobília, o chão com piso cor de jaspe, paredes de cor neutra e o forro do teto era madeira com verniz.
Tudo estava normal, com exceção da figura que sentava na poltrona ao lado do sofá.
Dobrei-me levemente, colocando uma mão na frente da barriga e a outra nas costas, senti alívio vendo com o canto do olho Armando me imitando. A figura acenou a mão, deixando que relaxasse, ao menos por agora.
Vi, então, a máscara negra com superfície áspera e que lembrava vagamente um rosto feminino. No lugar dos olhos havia um disco com três lentes saltadas, como câmeras antigas; um terno grafite cobria-a, permitindo que víssemos apenas o cabelo castanho, ondulado e curto.
Você aqui…
Houve um silêncio que se estendeu por segundos antes que a figura falasse.
— Senhorita Bao, fico feliz em vê-la e ao mesmo tempo irritada, você é uma criança teimosa que se recusa a aceitar sua ascensão… mas infelizmente eu posso entendê-la, afinal, uma de nossas crianças perdidas precisa de seu apoio. — A voz madura de uma mulher preenchia a sala num tom calmo e elegante, apesar da máscara.
— Sinto muito pelas repetitivas recusas, mas tenho que fazer o que meus instintos me dizem, Odessa Rosária — respondi respeitosamente deixando de fazer minha reverência.
Houve mais minutos de silêncio do qual usei para pensar mais, um Observador raramente aparece e a presença deles podem ser boas, ou um indicador de que algo grande acontecendo. Os Odes são quem recebem mensagens diretas do “Pai Abutre”, sendo escolhidos a dedo pelo próprio.
Além de serem os únicos fora o Pai que os sem rosto obedecem.
Nunca tem mais do que cinco indivíduos ao mesmo tempo… O último Ode foi ascendido há três anos, em Cedro e, desde então, há apenas quatro Odes vivos atualmente.
Pensei em suas palavras, eu recusei inúmeras ascensões que são promoções na ordem, pensei que isso ia ser ignorado.
— Serei breve, Criança Bao, essa cidade corre risco de ser vítima de um genocídio causado pela abertura de uma fenda no Véu. Por sorte, seu parceiro, a criança que se afastou, Marcelo, chamou a atenção da entidade e seus seguidores que estão tentando criar uma fenda no Véu. Por hora, suas atenções estão divididas e devemos usar isso a nosso favor.
Antes que eu pudesse perguntar, o Senhor que observava tudo falou:
— Senhor Marcelo me deu um celular que conseguiu com Errantes, seguidores de Belial, antes de ir ao posto. Como já se passou uma hora e meia desde nosso encontro e ainda não recebi um telefonema, assim como ele se recusa a atender o telefone, devo perguntar: a senhora por acaso deu sorte em entrar em contato com nosso estimado colega? — perguntou, com um toque de impaciência.
Peguei meu telefone e fiz o que devo ter feito mais de cem vezes enquanto estava vindo para cá, o telefone chamou por minutos antes de cair na caixa postal com a voz eletrônica. O velho homem encarou o chão pensativo e o resto da sala voltou ao silêncio com os ruídos da chuva, Armando tentava ligar para Marcelo de seu celular e eu apenas parei momentaneamente para rever meus pensamentos.
Marcelo se encontrou com Errantes, servos do inferno, antes de ir ao posto. Isso foi o porquê dele precisar usar um de seus kits rápidos. Ainda havia peças faltando, mas o quebra-cabeça em minha mente estava tomando forma.
— Esse celular, o que tinha nele? E os Errantes, havia algo que fosse significativo? — perguntei.
— Um endereço, além de outros assuntos. Aparentemente, estão realizando serviços para uma outra entidade a mando do próprio Diabo Belial, eu já tinha colocado uma de nossas crianças para investigar e as informações se complementaram no final… Belial quer algo que a entidade tem, mas o planos parecem ter sido atrapalhados com a feliz chegada do senhor Merial e, agora, com a sua chegada. — Odessa Rosária respondeu pelo homem.
Cultistas fanáticos e servos do inferno, o que podia faltar?
— O que devemos fazer agora, Senhora? Ir atrás de Marcelo ou verificar o endereço que possivelmente tem mais dos cultistas. — Armando quebrou seu silêncio após guardar o celular.
Odessa Rosária refletiu, o disco onde deveria ser seus olhos giraram colocando outra lente de câmera no topo da pirâmide dos três pequenos visores, estes fixos em mim. Os Odes são nossos superiores, a ordem é dividida em duas “Escolas”, mas todos respondem aos Odes com respeito absoluto.
Era uma via de mão dupla…
Nesse momento ela está julgando minhas emoções por Marcelo, decidindo se vale a pena respeitar meus sentimentos ou me mandar para um lugar que precisa de mim. Uma parte de mim queria caçar Marcelo independente do que está acontecendo, mas meu senso de dever, responsabilidade e honra me deixavam lúcida.
Mesmo que seja amargo admitir isso, se tem alguém que pode lidar com cultistas sozinho, é o Marcelo.
Tirando o fato de que ele é instável quando se trata do irmão e sua vingança, ele facilmente pode ser comparado a Mensageiros de alta classe por habilidade, experiência e capacidade. Mesmo com sua instabilidade, Marcelo é brilhante, sua capacidade de dedução junto ao presságio sempre fez muitas investigações durarem menos que um ou dois dias. Isso, unido com a Graça Áurea que maximiza o intelecto e suas experiências em combates e investigação, o coloca em um patamar alto. Ele pode se cuidar, mas mesmo sendo alguém de alto patamar, ainda é um humano com limitações e é por isso que o medo de recusa a me deixar.
Não posso ser babá e ao mesmo tempo fazer meu trabalho, então o que resta é confiar que ele vai ficar vivo…
— Nós cuidaremos do endereço, segundo o que entendi está tudo conectado de alguma forma, se esse endereço possui cultistas, significa que esses mesmos cultistas podem ir atrás de Marcelo, ou ao menos conseguiremos alguma nova visão da situação geral do que está acontecendo nessa cidade — expliquei.
Madame Rosária ficou em silêncio por mais alguns segundos, duas formas semelhantes a patas de aranha surgiram por detrás de sua poltrona, uma dessas patas a cutucou no ombro chamando sua atenção. Eu podia sentir uma vibração no ar e meus anéis vibraram junto, a criatura atrás da poltrona estava escondida nas sombras da mesma, a silhueta das patas de uma aranha e um corpo do tamanho de um cachorro grande me davam arrepios, a silhueta da criatura aracnídea atrás da poltrona desapareceu repentinamente junto às duas patas antes visíveis. Madame Rosária voltou sua atenção para mim, mas agora havia um frasco em suas mãos.
— Perto de um posto, na beira da rodovia, há poucos quilômetros daqui, há um hotel com Fábio no nome. Nós causaremos uma distração caso o trabalho exija pólvora, acabei de receber informações que confirmam que há movimentação suspeita lá. Passe isso na lâmina da sua espada como da última vez… Se encontrar aqueles dois homens do posto destruído novamente, deixe apenas o mais velho vivo e infectado com meu presente. — Ela estendeu o pequeno frasco entre seus dedos cobertos pela luva negra.
Enquanto me aproximava para pegar o que foi oferecido, Armando falou:
— A Senhora sabe quem são eles? Estavam se passando por detetives imperiais.
Peguei o pequeno frasco, a cor violeta do líquido dentro absorvia a luz das velas que refletia no vidro da ampola tampada com uma rolha que o guardava. Afastei-me novamente, absorvendo o que me foi dito. O líquido dentro da ampola emitia um cheiro adocicado que eu conhecia bem, um veneno raro que tive contato apenas duas vezes na vida, essa sendo a terceira.
É difícil dizer quando nem mesmo eu sei qual é a origem dele, mas minha certeza é que quem é envenenado por ele tem zero chances de sobrevivência. As palavras de Armando também ecoaram em minha cabeça, ela já sabia sobre isso, afinal?
— Para sanar as dúvidas que agora pairam no ar sobre isso, eles são incômodo do qual podemos tirar vantagem, só precisamos do mais velho que aparenta saber mais e ter algum tipo de relevância, porém se ambos demonstrarem um risco aos civis, abatam ambos. Sei que vão se encontrar em algum momento dessa noite ou semana. — A voz da Madame Rosária ficou mais profunda.
Então meu pressentimento de estarmos sendo seguidos desde o posto estava certo… que merda.
— O tempo está passando, adoraria responder mais perguntas, mas estou com uma certa quantidade de pressa, então podemos nos despedir aqui… Boa caçada, minhas crianças. — Odessa Rosária se levantou, o sobretudo grafite-claro caindo sobre seu terno.
Com uma reverência suave em resposta à nossa, ela passou por nós em direção a porta, um dos carros parados à frente da casa ligou e partiu nos próximos minutos. Restando apenas eu e Armando, nossas ansiedades conjuntas e dúvidas podiam ser vistas em nossas expressões.
Esperamos até o Velho Pombo trazer o celular dos Errantes junto a um pedaço de papel branco dobrado, onde estava o endereço do nosso alvo. Com uma saudação curta, me movi em direção a porta com Armando em meu encalço. A voz mansa do homem chegou aos meus ouvidos quando abri a porta, o vento frio e a visão da varanda pouco iluminada complementando as palavras.
— Boa Caçada…
Ignorando a chuva e todo resto apenas para entrar no carro e verificar as rotas em direção ao hotel, Armando entrou com certo atraso com dois grandes estojos consigo onde estavam nossas armas. Dei a partida, seguindo a rota do GPS enquanto Armando verificava as armas. Enquanto estávamos esperando o portão abrir, dei-lhe o frasco com líquido violeta após explicar como passar o veneno na lâmina. Era uma sensação estranha ensinar isso ao garoto, um tipo de orgulho e culpa por ele aprender rápido esse tipo de coisa.
O cheiro doce impregnou o interior do carro quando ele abriu o frasco, parecia que caramelo estava sendo derretido e dava água na boca, ele despejou o líquido violeta dentro da bainha da espada. O cheiro se foi quando abri as janelas, dando-me ar fresco.
Estava com tantas coisas para pensar que parecia mais fácil apenas aceitar tudo para evitar embaralhamento em meus pensamentos. Minha atenção voltou para Armando e pedi que ele puxasse apenas um pouco da lâmina, ele o fez mostrando o metal azulado da espada com uma fina película de líquido violeta.
— Esse veneno tem nome? — perguntou, colocando a espada lacrada no estojo.
Os últimos pastos terminavam em uma encruzilhada que ia para a direita e esquerda em ruas que acompanhavam a rodovia movimentada, iluminada por postes de luz. Segui para direita vendo o pasto de um lado e a rodovia do outro depois de uma divisão de mato.
— Último Caramelo. O nome é autoexplicativo. As duas outras vezes que trabalhei com esse veneno também era a serviço da Madame Rosária e não, ela nunca disse aonde conseguiu isso.
Armando ficou encarando o pouco veneno restante na ampola, seus olhos com um interesse genuíno acompanhando o líquido violeta.
— Leve esse restante para Emma, ela adora venenos… Bem mais do que a Glória.
Ele pareceu surpreso, mas tentou esconder.
— Quem mais sabe? E… eu posso fazer isso? — perguntou depois de algum tempo pensando.
O olhei de canto, o garoto ainda estava na casa dos seus vinte e cinco anos, basicamente o real início da vida de alguém, ter sido aceito pelo Lar, mas desconfiado e ser um prodígio coloca mais peso sobre ele e nas coisas que fará. Meu pai foi criado e educado como um Trono e eu também.
Já minha mãe foi torturada por engravidar de um homem sem renome e morreu quando me teve, culpa das regras conservadoras do extinto Clã Otto. Ter sido criada por um homem temido por dizimar uma família inteira com renome colocava um peso semelhante sobre mim. A próxima entrada da cidade ficou visível a poucos quilômetros, o posto e o hotel também.
A verdade é mais simples. Meu pai me transformou em uma mulher forte, a herança e ensinamentos do Senhor Malaika me permitiu me aperfeiçoar ainda mais, existe uma pressão em minhas escolhas, mas já me acostumei com isso com o devido tempo. Olhando para Armando, vejo uma esperança.
A família Aurora abraça muitas poucas pessoas de fora porque precisa haver uma conexão, os cinco Eminentes nunca estendem as mãos e meu pai me disse que eles gostam que sejam poucos, mas verdadeiros. Permiti-me sorrir quando estava passando a frente do posto e olhei para Armando sem esconder meu orgulho.
— Emma é uma jovem druida sábia e você um jovem áureo pródigo. Estou orgulhosa por você ter sido abraçado… e nunca se esqueça que você mereceu. Quando vocês deixarem de ter vergonha sobre o que sentem, com certeza haverá uma comemoração pela união de vocês e eu e Marcelo vamos estar lá… e sim, pode levar, mas nada de colocar isso na comida das pessoas.
Ele sorriu e um riso escapou dele, seu rosto aliviado e sorridente com as bochechas avermelhadas, vê-lo feliz me deixava feliz como ver um irmãozinho vencendo e sorridente pela vitória.
— Nós vamos achar o Marcelo, desta vez vou garantir que ele não fuja — disse, com uma mistura de seriedade e graça enquanto me via guardando a ampola.
— Obrigada.
Parei o carro em frente a calçada do hotel, o estacionamento privado estava fechado e vendo através do vidro da entrada, parecia que tudo dentro dele estava relativamente normal. Notei uma Van do outro lado da rua no sentido contrário ao nosso, ela tinha a logo do ferro velho do Ale, a rua em que estávamos tinha seu lado direito sendo uma fila misturada de casas e pequenos comércios e do outro lado da rua depois da rua em si tinha a rodovia estadual, pisquei os faróis em um padrão específico para a van e ela piscou os faróis com resposta certa. Liguei o carro para avançar um pouco mais à frente, saindo da frente do hotel e estacionando atrás de uma carreta.
Peguei o estojo com minha espada e coloquei a alça no ombro, deixei o carro junto a Armando, atravessando a rua, passamos por trás da van para encontrar um homem fumando na chuva apoiando suas costas na van cinza. O homem gordinho com short jeans, sandálias de couro, camisa de botões com a parte de cima em seus ombros. A gola era vermelha e abaixo do peito, cinza e preto; óculos escuros fazia parecer que ele acabou de sair de um forró.
O homem sorriu e acenou dando três tapas na lataria na porta traseira da van, todos os carros do lado esquerdo da rua ligaram e começaram a ir em direção ao posto. O homem se aproximou com seu cigarro na boca, o sorriso crescendo e o cheiro de pinga subindo.
— Camaradas! O show dessa noite vai ser de arrepiar, o Mestre das Baladas tá aqui pra deixar geral com o coração na mão e levar todos ao ápice com os melhores lançamentos desse ano, só sucesso meu Nobre e minha Rainha! — A postura descontraída e abraços como comprimento me fazia duvidar se essa seria a melhor das distrações.
Armando estava sorrindo e conversava com o homem gordinho como se estivessem na mesma faixa de pensamento.
— Contamos com você — disse, erguendo o punho como um comprimento. O homem sorriu mais e o cigarro quase caiu quando respondeu ao comprimento de Armando.
— Fiquem atentos, meu Príncipe e Rainha, o Mestre das Baladas trouxe só do bom e do melhor… como é que vocês dizem? Pera aí… tô lembrando… Ah! Boa Caçada, meus cachorros!
O homem gordinho começou uma caminhada rápida em direção ao posto. No mesmo, já era possível ver a confusão se iniciando com muitos carros aglomerados em frente às bombas de combustível. Começamos nossa própria caminha em direção ao hotel, o som de música e som sendo ajustados junto a murmúrios alcançaram meus ouvidos vindos do postos, em frente a entrada do hotel, a música vindo da confusão do posto já estava tocando de forma estável sendo possível escutar perfeitamente mesmo na distância onde estávamos. Meu sorriso se tornou amargo quando o presságio apitou em minha mente.
Comecei nosso caminho em direção a porta. O saguão de entrada era simples: uma escada e, um pouco mais a frente dela, ficavam os elevadores; ambos levavam para andares superiores e, ainda na parte de baixo, ficava o restaurante do hotel.
A única luz acesa era a luz da recepção que ficava ao lado contrário em frente a escadaria e elevadores ficava o balcão da recepção, Armando apertou o sino enquanto eu observava o restaurante vazio, as mesas arrumadas e vazias, nem mesmo havia cheiro de comida sendo feita. Caminhei entre as mesas prestando atenção em meus sentidos, os arrepios constantes ficaram em segundo plano quando captei algo.
Energia? Talvez… mas tem um cheiro mais doce do que um Miasma.
Movi a maçaneta do restaurante, em frente a porta um cheiro doce desconfortável incomodava meu nariz de forma contínua, a porta estava fechada e precisava de uma atenção especial. Olhei desapontada para a fechadura digital, abri o console para desabilitar o alarme antes de tentar uma única vez antes de partir para um arrombamento menos discreto, fechando meus olhos, deixei meus instintos me guiarem movendo meus dedos pelo teclado numérico, senti cada um dos botões, os que tinham mais desgaste, os que estavam frouxos e me deixei guiar pelo presságio. Deduzir coisas assim é difícil… Marcelo é bom nisso, mas analisar situações com base apenas em vestígios era complicado.
O presságio é conectar mais profundamente nossa mente diretamente ao fluxo, vendo através dele, além disso, nos permite sentir as mudanças no Véu porque estamos conectados a ele. A realidade e o Véu são conectados e sobrepostos, então, o que acontece na realidade oscila na primeira camada do Véu. Movendo meus dedos sobre os botões, estou deduzindo em que sequência e local o véu oscilou nesse exato lugar, deixei esse instinto guiar meus dedos, mesmo que minha mente parecesse estar vazia, meus pensamentos, na verdade estavam no fluxo.
Primeiro vem 4, depois o 2, logo o 7 e por fim o 0, abri meus olhos com o bipe e a tranca se abrindo.
Eu mando bem.
Abrindo a porta, o corredor escuro que dava para a cozinha exalava o cheiro insuportável, tentei ligar a luz, mas mesmo com os clicks da tomada a cozinha permanecia escura. É claro que a luz pifou. Usei a lanterna do meu celular, a primeira coisa que apareceu foi um rastro de sangue, sangue espalhado pelas paredes brancas e utensílios de cozinha, um passo após o outro, as panelas em cima do fogão estavam cheias de membros humanos, uma cabeça flutuando em uma panela grande com legumes flutuando ao redor. Meus instintos gritaram antes que um ruído baixo viesse de trás da ilha da cozinha, minha mão livre alcançou a pistola em minha cintura em segundos.
Os ruídos eram incoerentes, gemidos sem sentidos que iam e voltavam, me aproximei devagar com a pistola preparada para ver o dono dos ruídos. Um garoto, cabelo encaracolado e sardas, estava vestido como um garçom com as roupas manchadas por sangue, suas duas pernas eram apenas tocos com a carne e ossos do joelhos ruídos e o resto do corpo tinha diferentes locais de corte, os olhos sem brilho do rapaz vieram em minha direção, sua mandíbula exposta abrindo e fechando soltando mais gemidos incoerentes. Mantive minha respiração, vendo que o garoto mutilado estava resistindo a transformação do Miasma.
— Já acabou… Eu te liberto. — Usei muita força para manter a voz composta, os olhos do garoto voltaram a ter brilho quando minha bala adentrou sua cabeça.
O cheiro da pólvora e a fumaça saindo da boca da arma conseguiam combater o cheiro de sangue no ar, os passos pesados de Armando aparecem antes que ele próprio apareça. Nossos olhos se encontraram, havia uma mensagem clara entre nós, eu poderia ter matado o garoto com uma faca, mas para que expor alguém nesse estado a mais dor quando uma bala pode fazer isso quase que instantaneamente… eu já chorei demais pelas vítimas, tantas vezes que hoje em dia apenas a dor e peso me assolam já que as lágrimas acabaram. Fechei os olhos do rapaz, passando energia em meus anéis e a liberando em seu corpo para lavá-lo do Miasma.
Olum in Odre Drum
Deixando o corpo do rapaz, meus ouvidos captavam a movimentação nos andares superiores. Mesmo com a música e chuva, Armando andava atrás de mim enquanto ia para as escadas. Existem muitas formas de se criar um servo, desde rituais de energia, até combinações alquímicas. No obscuro, isso sempre envolve a morte e conversão dos seres vivos através de dominância forçada sobre o próprio, o garoto teve a sorte e azar de combater essa dominância, talvez se eu tivesse chegado mais cedo… agora isso pouco importa. O saguão do segundo andar estava vazio, um largo corredor começava a partir do saguão para levar aos quartos.
As luzes estavam acesas agora, o cheiro de podridão e enxofre engrossava o ar e fazia parecer que caco de vidro estava sendo esfregado no meu nariz. A grande questão é que o obscuro se trata disso.
Dominância.
Sobre por sua vontade sobre qualquer outra, os Pútridos são mortos que estão presos a um Anfitrião que os controla impedindo que suas almas descansem, existem muitas outras aberrações, mas a que mais me enoja é pensar que os anfitriões se orgulham de ter esses servos. Encarei o corredor, abrindo o estojo e colocando a alça da minha espada nas costas.
As luzes começaram a piscar, algumas portas se abriram revelando quartos escuros, diferentes formas começaram a sair desses quartos quando apenas a luz do saguão onde estávamos restou. Impedi o garoto de ser atormentado mesmo tendo falhado em salvá-lo, isso já me conforta porque os casos normais é quando só chegamos quando tudo está arruinado, eu como muitos nos acostumamos a apenas matar o que as vítimas foram transformadas e pegar o responsável, então de certa forma, hoje foi um dia de sorte. Comecei a tirar a espada da bainha, Armando começou a estalar os dedos como de costume e um gosto agridoce permeava minha boca.
Hora do abate.