Volume 2
Capítulo 36: Despreparo III
[Segunda-feira, 12 de Setembro de 2412, 02:54 da madrugada]
Quatro corpos estavam um sobre o outro em uma sala apertada onde havia duas prateleiras com caixas nos cantos e uma no final da salinha. Passei fita na boca dos homens e mulheres nocauteados, coloquei seus rádios e cassetetes acima das prateleiras e os amarrei bem, essas quatro pessoas seriam um atraso para os planos, mas, ainda assim, tenho que zelar pela segurança deles. Fechei a porta da pequena sala e a tranquei, passando a chave por debaixo da porta, olhei ao redor da instituição de ensino.
Os seguranças estão presos e nocauteados, o prédio está vazio e sem energia, a sala tá trancada e coloquei uma runa na porta, ta tudo certo.
O corredor onde eu estava era no terceiro andar do prédio de ensino, andando pelas bordas com vista das grandes janelas, dava pra ver as luzes da parte movimentada da cidade. Fiz meu caminho até uma das muitas salas de cursos, as cadeiras enfileiradas, paredes brancas e esqueletos de prática junto cheiro de álcool deixava o clima semelhante a um hospital, observei Eithor, que estava em uma área livre desenhando um ritual no chão usando seu sangue como tinta. Eu devia matar ele, eu já consegui o que eu queria… por que eu tô exitando?
Antes de vir para o centro realizar o plano que planejei durante sua explicação, no fundo eu vi que tudo que ele estava me dizendo era verdade, mas também senti algo de estranho… um sentimento sem forma. O grande plano de oito anos atrás era colocar Goro sob uma barganha usando a família, nunca foi sobre Glória, Vincent, Samuel ou Eu, eles queriam colocar uma coleira no Goro e com isso uma coleira em todos os lares da família Aurora, meu sangue esquenta apenas de pensar nisso e lembrar de sua explicação. Eithor se afastou do ritual que criou com uma feição satisfeita, ele amarrou uma faixa no corte da sua mão.
Mas tudo saiu do controle.
Eu matei quem devia capturar Glória e me matar junto a Armando, o Residente que foi para casa de Glória acabou preso numa barreira de Vincent e… matando ele, junto a mais de mil pessoas naquele incêndio que segundo Eithor, nunca fez parte dos planos dele. Nunca foi sobre nós ou interesse por nós, queriam impedir que a Aurora interferissem nos planos deles, mas agora eles querem Samuel e essa parte eu ainda estou tentando entender o porquê, simplesmente é algo que parece apenas uma espécie de capricho doente ou mudança. Aproximei-me de Eithor, puxando seu braço esquerdo e desfazendo a bandagem que ele fez para cobrir as runas em sua carne.
“Sangue por sangue, uma dívida a ser paga”.
As quatro runas da Aurora gravadas em sua carne sobre a marca da estrela de sete pontos desfizeram a conexão direta que Eithor tinha com a entidade Pólios, servindo de âncora para a desconexão, mas as poucas raízes já estavam plantadas. A marca da estrela de sete pontas perdeu a cor intensa, se tornado veias vermelhas que estavam se espalhando por seu braço, a tremedeira, suor e vômitos que Eithor começou a ter dentro do carro era um sinal que a entidade havia o envenenado com os resíduos da conexão desfeita. Se ele tivesse resistido ao poder oferecido desde o início, o corte da conexão impediria totalmente Pólios de atormentá-lo porque esses resíduos seriam menores.
Por que o Samuel?
— Me explique de novo a parte sobre Samuel — falei, observando as minúsculas veias vermelhas que estavam se espalhando por seu antebraço.
Ele tossiu, uma tosse seca e áspera que o fez se dobrar e vomitar em seguida.
— Pegar o garoto, entregar para Pólios, o garoto tem algo de diferente, algo que foi plantando nele naquele dia a oito anos atrás… ele nunca disse o que era, mas é algo que ele passou a querer quando o garoto… o garoto… merd… — Sua explicação foi interrompida por outra sequência de vômitos.
Algo que foi plantado nele?
A primeira coisa que me vem à mente são as Forças Anciãs, poderes antigos e sencientes que dá pra contar nos dedos quantas pessoas existem hoje em dia que tem uma conexão com qualquer uma delas. A algo mais, um detalhe único que Samuel tem, em todo o estudo sobre as forças que ajudei Glória a fazer, nenhum receptáculo teve sua alma fundida com a força se tornando um só, mas se fosse apenas isso, Pólios também quereria a Glória… o que me vem à mente é que ela daria mais trabalho para ele e seu pessoal. Outro detalhe relevante, é que nunca houve alguém que tivesse conexão com duas forças ao mesmo tempo.
Isso também sendo que ele faz parte de duas forças ao mesmo tempo.
Nada mais me vinha à mente além disso, Samuel tem antepassados Numens e Mediuns em ambos os lados da família, mas o único detalhe que faria uma entidade se interessar por ele sem ser as forças é o fato dele ser um descendente “puro” da Aurora. Eithor se levantou após quase vomitar as tripas, ele fez uma feição estranhamente tranquila antes de começar a me encarar, dúvida surgiu em seus olhos enquanto me encarava, parecia estar me avaliando e isso começou a me incomodar. Desviei minha atenção pro ritual, as runas eram diferentes e demais símbolos também, mas eu já os vi sendo usados por cultistas que enfrentei no passado.
O grande plano.
Eithor está sendo caçado pelo que sabe, aquela mulher era alguém de uma escala inferior, mas com as informações que recebi, ela seria apenas uma bucha para deixar os inimigos cansados. Quando o ritual for ativado pela energia do Eithor, será como um ponto de luz nascendo em um céu escuro, mais cultistas vão ser enviados dessa vez com o propósito de nos cansar ainda mais até que um dos “escolhidos” seja enviado quando julgarem estarmos cansados ou derrotados, neste caso a dois nesta cidade para comandar a operação deles. Um bastardo que usa os mortos e… o Residente, ansiedade corria por mim revisando cada detalhe do plano.
Durante horas me preparei e montei armadilhas pelo prédio, acumulei energia e deixei que o estresse por usar uma técnica incompleta se dissipasse. A preparação e a chave e por hora, nós estamos com a pequena vantagem proporcionada pelo ambiente, eles teriam que invadir e passar por minhas armadilhas para chegar até aqui e quando isso acontecer, com certeza estarão feridos e terei que usar esforços mínimos para lidar com os cultistas. Mesmo que minha mente estivesse processando muitas informações, a principal era o anseio pelo encontro, no fundo torcendo para que o Residente viesse para cá.
Ciro, esse é seu nome.
— A operação deles é o alvo principal, lembre-se disso, Marcelo — Meyrine me relembrou com um tom firme na voz.
Eu sei… eu sei.
— Aonde mais tem as âncoras? — perguntei a Eithor.
Ele limpou a garganta de forma exagerada antes de responder.
— Cedro, outra no nordeste da Bahia, uma em algum lugar da África e a última está em algum lugar do pacífico, tudo que consegui foi a região, mas ele as escondeu em algum lugar... Ele escolheu essa região e cidade por ser próxima da barreira, mas essa parte você já deve saber.
É claro que sim.
Essas “Âncoras” são os pontos de conexão da entidade Pólios com a realidade, se uma entidade tentar atravessar o Véu a força, isso pode destruir o Véu e a entidade e muitas pessoas vão morrer por isso. O Véu é uma construção natural para dividir o real do umbral, os pontos onde o Véu é mais fino permite a transição dessas duas realidades, teoricamente falando. Quando uma entidade pequena como um Residente passa, o Véu nem mesmo sente isso como se fosse apenas um vazamento, mas algo grande como um Celeste passar de uma vez, causaria rasgos ao Véu e ele se mataria no processo.
Algumas pessoas comuns conseguem se adaptar à energia, mas esses são poucos indivíduos, como se uma represa estourasse, milhares de pessoas morreriam “afogadas” pelas energias do outro lado se o Véu rompesse em alguma região. Um dos nossos objetivos é impedir que o Véu seja atacado, durante a história muitas criaturas tentaram e falharam abrir "Portões" nessa construção natural, o Véu é absoluto, mas ainda assim, confiar apenas na força dessa muralha de energia natural e uma ideia que com certeza me dá calafrios. Se o Véu for rompido, mesmo que em uma cidade pequena, muito humanos e muitos outros seres vivos comuns sem adaptação morreriam afogadas.
Isso sem contar pelas criaturas que lá vivem, fariam uma chacina na realidade.
As âncoras servem para que as entidades entrem devagar na nossa realidade, um pouco de cada vez até que estejam completamente do nosso lado. São quatro âncoras até agora, se ele criar uma quinta perto da barreira da Dama Lunaria, os ataques ficaram mais fortes e mais pessoas podem se machucar por estar entre uma entidade e o que ela quer, preciso impedir que essa quinta âncora seja feita e sei o que devo procurar, destruir as âncoras deve fazer com que o poder dessa entidade na realidade diminua. Limpei minha mente dos pensamentos distantes, me preparando para a carnificina que aconteceria nas próximas horas ou minutos, mas Eithor me encarando me irritava mais do que dá pra descrever.
— O que você quer? Por que tá me olhando assim?
Suas sobrancelhas se estreitaram.
— Por que você nocauteou e escondeu os seguranças? Sabe o que a maioria das pessoas normais pensam sobre nós? Por que se dar ao trabalho de prezar pelo bem deles se a maioria te vê como uma aberração?
Fui incapaz de conter meu escárnio.
— Ah sim, o pobre Eithor é um homem injustiçado pela sociedade e por isso se rebelou contra tudo e todos, seguiu uma entidade obscura e agora que tudo deu errado veio buscar ajuda de um tolo que luta pela mesma sociedade que o excluiu… você é patético.
Seu nariz se enrugou em desgosto.
— Sabe o que eu já passei? Tem ideia do que eu já…
Soquei Eithor no peito, ele se contorceu perdendo o ar antes que eu o segurasse impedindo que ele se curvasse pela dor.
— Vocês, magistrados e a maioria das famílias nobres valem menos que o chão onde pisam, são incapazes de assumir a culpa pelas próprias escolhas, pelos próprios erros. Se uma vida for destruída pelas suas ações, o que você faz? Absolutamente nada, inventa uma desculpa pra tentar manter a falsa razão, usam a velha carta de que a maioria das pessoas comuns nos odeiam ou nos temem… você nunca vai ser uma vítima da sociedade e se algum dia foi, deixou de ser para virar apenas mais um pedaço de lixo.
O soltei e ele se agarrou em uma das mesas.
— Sabe o que aconteceu quando você deu aquela pasta para o Leonardo? Você selou o destino de mais de mil pessoas, colocou um fim na vida dessas mil pessoas apenas para cair nas graças de uma entidade que você era esperto o suficiente para perceber que ele tinham intenções ruins, mas tudo bem, certo? Você estava por cima, você estava ganhando, quem você amava estava seguro, mas agora que tudo se desmanchou, acha que pode viver sem pagar por tudo que fez, vestir o manto da vítima? Você me enoja.
Ele estava escorado em uma das mesas, seu corpo com uma tremedeira perceptível e sem um único ruído ou tosse, ele apenas encarava um quadro de alunos no final da sala que provavelmente estudam ou estudavam aqui. Dei a volta no ritual desenhado no chão para ficar mais próximo da saída da sala, chamei a atenção de Eithor estalando meus dedos, seus olhos se mantiveram longe dos meus, mas ainda entendeu quando eu apontei para o ritual. Puxei a adaga das costas, fiz a radiância correr pelas runas na lâmina, Eithor começou a murmurar um cântico e com isso o ar começou a ficar grudento.
Odeio essa sensação
As luzes, mesmo que eu tivesse desligado o disjuntor de força, começaram a piscar pela sala e em todo prédio, quanto mais Eithor pronunciava os cânticos, no clímax ele parou de falar formando um encanto de mãos. Seguindo meu instinto, avancei com a adaga em mãos e apunhalei o centro do ritual, fiz com que a radiância corresse da lâmina para o chão e fizesse com que a passagem que se abriu com o ritual se fechasse, impedido a entrada do Misma da entidade através dos círculos e sigilos. As lâmpadas estouraram e algumas poucas faíscas caíram antes que tudo voltasse a ser escuro e silencioso, apenas com o ruído da chuva vindo de fora.
Me levantei guardando novamente a adaga na bainha entre o sobretudo e suéter, o Miasma no ar me fazia querer vomitar, mas afastei essas sensações o máximo que pude. O presságio começou a apitar em minha mente como uma luz vermelha, o pressentimento ruim de algo se aproximando se manifestou como gelo em minha barriga, olhei para Eithor que estava se escorando em uma mesa para se manter de pé, o desejo de pôr um fim nisso entrava em conflito com o sentimento sem forma dentro de mim. Apontei para os armários da sala, ele olhou antes de sair cambaleando, mas parou momentaneamente no caminho.
— Eu… entendi, entendi que a culpa é minha de tudo isso acontecer comigo… eu sei disso desde o início, mas minha filha é inocente. — Sua fala arrastada foi a mais genuína que ouvi em toda noite.
Essas sensações crescia dentro de mim enquanto ele entrava no armário e fechava a porta, saí da sala, fechando a porta e caminhando em direção ao claro som da chuva que vinha de uma varanda. Mesas dispostas pela varanda do terceiro andar junto a um muro com plantas o enfeitando me era agradável, me aproximei do muro para ter uma visão das luzes da cidade, passeei meus olhos pelas bolinhas luminosas que estavam longe e às que estavam perto, isso me trazia algum tipo de paz. Esse sentimento sem forma carrega algo, eu posso sentir, posso sentir que é isso que me impediu de matar ele, mas por quê?
Mantendo meus olhos na distância, a lembrança do dia em que toquei a música preferida de Vincent e Glória voltou para mim, meus dedos dançando pela guitarra, formando as notas… imaginar o som me trazia uma paz que havia me esquecido como era. O som dos acordes em minha mente trouxe consigo uma presença estranha, uma massa escura que estava me lendo como se fosse um livro, meu Familiar, eu podia sentir ele me avaliando, julgando meus pensamentos e ações. Toquei sua presença com minha mente e ao invés de desaparecer como todas as outras vezes, ele permanece ao meu alcance.
— As informações já foram enviadas para Goro, as âncoras deixaram de ser uma possibilidade e agora são uma certeza, temos pistas sobre a localização… então por que ainda está aqui? — A presença escura em meu fluxo perguntou com sua voz rouca.
— Eu…
— Todos os anos que passou dizendo ser por vingança, que está fazendo isso pela memória do seu irmão e não vê que está amaldiçoando a memória dele? Todas dores sem propósito, mortes, ferimentos que você fez e sofreu dizendo ser por ele, ele gostaria que tudo isso fosse atribuído a memória dele?
Minha mandíbula afrouxou, sem forças para sequer fazer um ruído.
— Aceite a verdade, aceite o que você tem, pare de mentir para si mesmo e conseguirá alcançar Veritas… conseguirá alcançar Vincent. Quando esse momento chegar, chame meu nome.
A presença se aprofundou na imensidão do meu fluxo, desaparecendo e deixando para trás apenas as palavras que se repetiam em minha cabeça. Encarei meus anéis da Ordália, passei meus dedos pelas runas gravadas nele, me lembrando do momento em que eu mesmo as gravei nele com a orientação de Glória, aquele sentimento vazio dentro de mim marejou meus olhos e fez minhas lágrimas se misturarem com as gotas de chuva que caiam sobre meu rosto, minha conexão com eles sendo tão instintiva que pareciam apenas uma parte do meu corpo. Eu menti… menti para Glória, para Hana, para Armando… para Samuel.
Tantas mentiras que agora me sinto preso a elas, nesse pequeno momento de lucidez, eu apenas queria entender o porquê tudo aconteceu e como aconteceu. A verdade de ser tão pequeno, a verdade de ser tão limitado, eu quero lutar contra isso, lutar contra a verdade que Vincent apenas morreu por um desejo caprichoso de um ser maior, quero que isso tenha um significado maior do que apenas morrer por uma falha… quero que sua morte signifique algo mais para quem o roubou de mim. Preciso fazer essa criatura sofrer, preciso fazer com que ela sinta o mesmo medo e desespero que eu senti, preciso que ele olhe para mim e veja o peso de suas ações.
Eu preciso… entender o porquê isso parece ser tão importante.
Me apoiei no parapeito, deixei o aspecto do Esmero se espalhar por meu corpo, fiz com que essa energia agradável melhorasse minha mente, meus sentidos, meus músculos e ossos. Senti presenças se aproximando do primeiro andar e entre elas, a assinatura de presença que busquei de forma incansável nestes últimos oito anos, sentir ela fazia uma excitação ansiosa correr por meu corpo junto ao aspecto do Esmero, me afastei do parapeito voltando ao corredor, concentrei e senti minha mente e corpo ficarem anestesiados. Movendo energia de forma precisa, meus músculos e ossos estavam prontos, apenas faltava o toque final.
Escala de Malha Fluida.
O aspecto do Esmero traz consigo muitas melhorias possíveis, treinar fisicamente com ele ativo faz com que os músculos se alimentem de energia como se fosse calorias, isso dá aos músculos, ossos e o corpo num geral, capacidades sobre-humanas mesmo com o aspecto estando desativado. Com o aspecto ativo, essas capacidades adquiridas pelo treino ganham um buff; e quanto mais fisicamente forte pelo treinamento com Esmero, maior ele é recebido quando o aspecto está ativo. Com isso, vem a última fase do Combate de Contato Esotérico.
Dividido em três fases, esse estilo de combate visa usar energia para melhorar o desempenho e dentro da Família Aurora a um estilo único que só nós podemos usar.
Mesmo combate direto nunca sendo meu forte inicial, aprendi com certa facilidade.
A primeira fase é justamente o treino físico, dar ao corpo capacidade sobre-humana de força, resistência, tempo de reação, num geral, melhorando nossos corpos “naturalmente”. A segunda fase é a Energia de Contato, manipulando a energia com precisão, um fluxo de energia pura constante rodando pelo fluxo interno no corpo que amplia qualquer ataque com o contato físico, fazendo uma microexplosão concentrada que aumenta a potência dos golpes. E, por fim, vem a Escala de Malha Fluida, que é colocar tudo em prática, o corpo mais resistente aguenta a pressão dos golpes mais fortes e ampliados com a explosão de energia que acontece no exato momento do golpe.
Fissão de Cetim.
O adorno da obra no meu ombro me dava a capacidade de dividir minha energia em fios, finos e invisíveis aos olhos que cortam qualquer coisa com a minha manipulação de energia precisa. Deixei-o ativo quando uma explosão surgiu vindo de baixo balançou o prédio e um cheiro forte subia chegando pelas escadas mais a frente no corredor, o prédio tremeu mais uma vez com gritos que foram audíveis e que, dessa vez, também surgiram pela escadaria.
Passou-se alguns segundos antes que uma terceira explosão acontecesse, o cheiro de químicos fortes invadiu meu nariz e me senti orgulhoso por ser muito bom em química. As três armadilhas principais se foram, agora resta esperar.
O silêncio tomou conta junto ao cheiro de químicos que começava a enfraquecer, passos molhados ecoaram pela escadaria, uma única presença que restava ainda se mexendo e era essa que estava subindo. Trapos brancos queimados e uma pele branca envelhecida com ferimentos abertos, cabelo curto apareceu seguido por um rosto que ao mesmo tempo que era jovial tinha rugas, ao redor dos olhos a carne tinha rachaduras negras e seus olhos em si eram laranja brilhante, os pés estavam molhados de sangue e ele parou no topo ao terminar de subir a escada para me encarar. Meus olhos subiram para sua testa, havia uma cicatriz pequena no mesmo lugar onde havia enfiado o prego da Passagem a muitos anos atrás.
Ciro.
O rosto entre velho e novo me encarava com alguma espécie de reconhecimento, ele olhou ao redor, cruzando os braços enquanto voltava a me encarar com algum tipo de curiosidade. Toda raiva que eu guardei surgiu, mas não da mesma forma que antes, apenas encarei a entidade, sem reação ou medo pelo seu semblante que enchia o ar, apenas com um silêncio que apitava em minha cabeça como um rádio fora de área, ele passou os dedos na pequena cicatriz da testa, desgosto surgindo em seus olhos. Sua boca se abriu revelando dentes pretos, sua voz estridente e profunda entre a de um velho e um adolescente pescou minha atenção.
— E então, nos encontramos novamente. Um dia que eu aguardei pacientemente pela oportunidade de me banhar em seu sangue e fazer você pagar por sua ousadia… quais são suas últimas palavras, Efêmero?
Meu corpo anestesiado trouxe uma memória do fundo da minha mente.
— Lembre-se de mim, lembre-se desse dia e nunca esqueça esse momento… chegou a hora de você pagar o que me deve.
Ele estendeu a mão em minha direção, o brilho dos seus olhos se intensificando mais.
— Lembre-se do dia em que você desafiou Ciro…
Apontando minha mão direita com todos os dedos esticados em direção a ele, preparei cinco fios que avançaram cortando as paredes e quase instantaneamente chegando até a ele. Ele pulou para trás apenas perdendo o braço esticado e esse mesmo sendo retalhado entre os cinco fios, com passos largos e força extra nas pernas, cobri a distância com cinco passos e pulei pelo corrimão da escada para cair sobre os joelhos ao lado dele na curva da escadaria, seu braço cortado deixava sangue vermelho caramelo cair no chão enquanto uma massa de carne se formava no cotovelo. A palma de sua mão brilhou suavemente antes que eu o acertasse na barriga o colocando contra a parede.
Uma troca de golpes se iniciou, cada soco que eu errava abria buracos rasos na parede atrás dele, até que agarrei-o pelos trapos o arremessei para trás, ele bateu contra o corrimão já tentando me acertar com um chute para trás.
O braço decepado agora era uma bolsa de carne sangrenta que ele rasgou para revelar outro braço, e, com uma joelhada em sua barriga, ele foi jogado contra o corrimão e ambos foram voando para o corredor segundo andar, suas mãos brilharam em meio a queda e pulei para o lado contrário no chão. Uma labareda de fogo rosado engoliu o lugar onde estava e me seguiu antes de desaparecer, pulei para o corredor enquanto ele ainda se levantava.
Ele agarrou minha perna quando tentei chutar sua barriga, seus golpes eram ardidos e estranhos, com movimentos erráticos entre socos e chutes quentes, a carne e pele de sua mão começou a queimar e derreter quando fogo rosado cobriu seus punhos. Me aproximando mais, um de seus socos liberou uma labareda que queimou as paredes do corredor atrás de mim, dobrando meus joelhos e colocando força no cotovelo, o soquei suas costela às sentido afundar enquanto o empurrava contra a parede com toda a força, um buraco se abriu nos blocos com sua passagem pela parede e caindo dentro de uma sala. Passei pelo buraco feito pela passagem do seu corpo, pulei para o acertá-lo com uma voadora de dois pés enquanto ainda se levantava.
Seus rostos tinham inúmeras feridas abertas deixando sangue vermelho caramelo fluir, seus punhos em chama liberavam fumaça preta pela sala, inundando o ar com o cheiro de carne queimada. Minha voadora o pegou de raspão e nós dois fomos ao chão, chutando o punho flamejante que estava vindo em minha direção, nossa briga de chão terminou quando apontei três dedos para ele, liberando um fio que fez seu caminho pelo chão e mesas antes de pegar sua barriga de raspão. Me levantando, seu pé atingiu minha barriga em um chute estranho, defendendo um segundo chute, ele agarrou minhas roupas, puxando-me.
Seu punho encontrou minha garganta e seu pé foi em direção a minha virilha, ignorando a dor e queimação o agarrei em um abraço enviando energia para meu fluxo interno, alcançado a obra incompleta.
Quando a energia carregando a obra chegou até mim, senti um caminho feito de energia que ia até o andar de cima e sorri. Com um urro de esforço, cobri-o com essa energia instável, desejando com fervor que funcionasse, o mundo ficou mudo e preto, ele parou de socar minhas costelas e se debater, segundos se passaram num completo escuro existencial e nesses segundos eu senti medo. Com um estalo, fui arremessado contra um chão de britas, Ciro também caiu rolando pelo chão.
Água da chuva caía sobre nós, os açoites dos ventos chegando por todos os lados, estávamos na cobertura do prédio de ensino. Olhei para a porta da escadaria que dava acesso aqui, a marca que desenhei na porta fumegava após nossa passagem, senti alívio ao perceber que meu plano arriscado deu certo e também senti orgulho pela minha obra incompleta funcionar tão bem. Movi minha atenção novamente para Ciro que se colocava de pé e olhou ao redor antes de focar seus olhos confusos em mim e, então, ofereceu-me um sorriso estranho, com sangue alaranjado luminescente saindo do nariz quebrado e dentes faltando.
— Você… você é interessante.
Usando a Fissão de Cetim, dividi minha energia em mais fios, mas os mantive dentro de mim e adormecidos antes de avançar em direção a Ciro, seus punhos deixavam os ossos e carne queimada expostos para mim quanto o fogo se apagou. Suas mãos se uniram e senti um frio na barriga ao ver que ele havia estendido seu poder, formando território comigo dentro.
Apesar do temor, estendi minha energia ao redor empurrando a dele para formar uma aura e, então, a fortaleci com o aspecto do Esmero em segundos me preparando para o que poderia acontecer sem a Cortina. Esperei por um segundo antes de ser recebido com uma sequência de socos, seu território se desfazendo na atmosfera.
Um blefe?!
Agarrei seu punho queimado e o puxei colocando minha mão esquerda sobre seu peito, fiz a energia em forma de fios cortantes se fundirem em um único corte e o liberei pela palma da mão. Ele socou meu braço pra cima fazendo o corte pegar apenas seu ombro esquerdo e voar para longe, mesmo tendo sido de raspão, dava pra ver o que tinha atrás dele pela ferida em seu ombro, o presságio brilhou em minha mente como um clarão me dizendo para me afastar, com um chute em sua barriga, coloquei força para que ele fosse jogado contra o pequeno parapeito da beirada. Seu sangue vermelho caramelo começou a fumacear enquanto se levantava cambaleando, labaredas do fogo rosado saindo por sua ferida.
Esses desgraçados… sempre na vantagem.
Havia um corte na minha palma esquerda por causa da minha própria obra, a potência e os milissegundos que tive para deixá-la pronta fez com que um ferimento surgisse como efeito rebote.
E nós… somos mais fracos que eles…
Cortei seu braço no início da luta e imbuí a obra nos meus golpes fazendo pequenos cortes e ainda assim ele vive, até mesmo os socos que estou desferindo nele mataria uma pessoa apenas pela força, se eu fosse uma pessoa normal ou mais fraca, seu primeiro soco me mataria. Treinei para que meus golpes fossem quase impossíveis para conseguirem se regenerar, fazendo com que a energia permanecesse no ferimento, mas contra algo forte existem muitas possibilidades.
Preciso continuar batendo!
Observei enquanto seu rosto formava um sorriso discreto e satisfeito, isso fazia meu sangue ferver, a ferida em seu ombro queimando em labaredas rosadas que lutavam para se manter acesas, seus punhos também se acenderam com um fogo baixo. Uma batalha entre dois portadores do caos?
Comecei a ampliar ao Real, a Escala de Malha Fluida ganhando a instabilidade, vozes em minha mente, conflituosas e em sua maioria sem sentido, o Real é o Caos, a pura instabilidade que une tudo em todos em sua essência. Entre meus anéis, energia caótica começava a assumir a forma de eletricidade estática saltando de um anel pro outro, os olhos de Ciro brilharam ainda mais e isso me deixavam ainda mais irritado.
— Você… — Seu sorriso se desfez e seus olhos se desfocaram da realidade, quando voltou, uma feição amarga ocupava o seu rosto. — Aquele rato é incapaz de fazer qualquer coisa sozinho.
Suas mãos se uniram em um encanto quando eu dei um passo em sua direção, o fogo rosado brotando em suas mãos pelas palmas queimadas e se misturando a um intenso brilho laranja formando uma pequena entre as mãos.
— Voltarei para buscar o traidor e se ainda estiver vivo até lá… continuaremos nosso duelo.
A bola do tamanho de um olho explodiu em minha direção na forma de uma labareda, tudo que estava no caminho foi engolido pelo fogo brilhante conforme vinha até mim. Expandi minha energia ao meu redor o máximo que pude, fechei meus olhos para me concentrar em manter o Território consistente, fazendo tudo isso em segundos, a onda de fogo engoliu meu território e o desgastou até só sobrar uma aura ao meu redor, a força e pressão tiraram meus pés do chão e me arrastaram para trás. Me vi caindo, observando o brilho da labareda se desfazendo contra o céu escuro, meu corpo batia e rebatia parecendo boneco de pano caindo e atravessando os telhados estendidos do prédio.
O que?
Caindo contra o teto de um carro, a dor demorou para aparecer junto ao sentimento de impotência, eu poderia ter morrido, sinto as queimaduras pelo meu corpo e sei quantos ossos quebrou na queda, mas o sentimento de vazio e impotência era muito maior que a dor. Minha concentração se desfez antes que lágrimas enchessem meus olhos, meu peito parecendo estar afundando em um vazio infinito conforme a realidade me abraçava.
Eu falhei, falhei de novo… falhei de novo….
Será que é só isso que eu sou?
Um fracasso?
O choro preso em minha garganta saiu na forma de um urro, a represa que eu tanto alimentei com ódio se desfez e deixei toda minha raiva, tudo que guardei para me dar forças para o momento do combate saísse.
— FILHO DA PUTA!!!
Meus gritos eram levados pelo uivar dos ventos e os estrondos dos trovões, me soquei e arranhei para alugar a dor fria em meu peito, mas tudo que eu fazia era inútil conforme a represa que eu tinha construído se desfazia em choro. Mais nada restava, minha mente era silenciosa, sem qualquer tipo de pensamento raivoso ou comprometido como antes, a vontade de perseguir aquela entidade se esvaiu junto às lágrimas até só restar eu, sozinho, estirado em cima do teto de um carro após cair do terceiro andar de um prédio. Uma vibração familiar surgiu no meu bolso, movi minha mão para pegar meu celular.
Hana…
Ela me ligou durante a noite inteira, sempre deixei com que o celular tocasse até o final, não queria recusar suas chamadas e nem atendê-las, mas agora, eu quero ela… eu quero estar com ela. Coloquei o telefone ao lado da cabeça, sua voz tão doce e cheia de raiva gritando todos os tipos de ofensas contra mim, mesmo chorando eu consegui sorrir ao ouvir sua voz e xingamentos… as palavras ficaram presas na minha garganta, a vontade de dizer “eu te amo” presa pelas lembranças das minhas cagadas e múltiplos erros. Fiquei em silêncio, apenas o som baixo do meu choro e chuva caindo sendo audível do meu lado da linha.
— Marcelo?! Você está bem?! Responda, merda!
Do fundo uma memória veio na forma de um nome.
— Bar do Requintado, eu… te vejo lá. — Desliguei puxando o ar, minha cabeça zonza pelo estresse, confusão e dor.
Hana…
Empurrei-me para o lado, cai de costas do teto para o chão, percebi que o carro era o mesmo que usei para chegar até aqui. Forcei meu corpo à ficar de pé, cambaleei em direção ao prédio antes de parar ao ver Eithor cambaleando em minha direção, o desejo de matá-lo se foi junto a raiva, ele era uma peça quebrada como eu, reconhecer isso me dava ânsia de vômito apenas pela mínina comparação… mas é a verdade, ele chegou até mim e se escorou em meu ombro. Coloquei seu braço sobre mim e também me escorei nele, comecei a caminhar para fora do centro de ensino, minha mente tão silenciosa quanto um cemitério.
— Para… onde… vamos? — Eithor perguntou.
Parei momentaneamente para pegar e ver o cartão que minha mente havia me feito lembrar, que o homem que pegou as chaves da Belinda havia me dado, antes de recomeçar a caminhada.
— Para um lugar seguro.