Volume 2

Capítulo 35: Despreparo II

[Segunda-feira, 12 de setembro de 2412, 01:12 da madrugada]

 

Passando o algodão com álcool ao redor da ferida em minha coxa, limpei-a da melhor forma possível antes de começar a costurar. Passando a linha pelo olho da agulha curva, puxei bastante ar antes de enfiar a agulha nas bordas da ferida, a dor aguda era amplificada pela ardência do álcool, mas depois de chorar por meia hora nessa cabine essa dor é o de menor comparado ao que está por vir. Um ponto atrás do outro, a ferida começou a sangrar novamente me obrigando a fazer uma pausa para limpá-la de novo.

 

Tempos mais simples… eu gosto de lembrar deles. 

 

O Arcanista que ensinou eu e meu irmão podia ser definido como um bom professor, mas extremamente rígido. Nossos pais eram pessoas comuns, mas tem um certo histórico de anômalos na família… o professor odiava essa palavra, anômalos, ele me colocava de castigo com frequência por minhas pirraças, Vincent e Glória eram grudados tanto na escola tanto na casa dele e era óbvio que os dois eram os seus preferidos. Recomecei a dar os pontos quando a ferida parou de sangrar, os pontos internos eram mais difíceis e ardiam mais.

 

O nome para o que somos é Numen, aqueles com a conexão melhor desenvolvida apenas para um lado são os Médiuns e depois vem as pessoas comuns sem a conexão aberta natural com a alma ou com o outro lado, como é tão difícil assim você entender?”

 

A questão dos nomes era fácil, mas era divertido vê-lo irritado apenas porque usava apenas a palavra anômalos para nos definir. Os Arcanistas são pesquisadores, dedicam suas vidas ao estudo da imensidão do outro lado e aos nossos dons, como todos os cientistas eles inventam um jeito para rotular as coisas, Numen é uma palavra antiga, hoje em dia ela tem um significado diferente no latim, mas na língua morta de Ambrósios usada pelos Arcanistas é definição de humanos com a  maior conexão natural com o outro lado. Fechando o último ponto externo da ferida, joguei a agulha no lixo junto a alguns algodões sujos e limpei a ferida uma última vez.

 

Parei por um momento me lembrando do professor finalmente me explicando o que anômalos significa, confesso que ainda me sinto mal por ter enchido tanto o saco dele por algo que julguei ser idiota. Anômalos ou anormal é, na verdade, uma ofensa para qualquer pessoa com dons sobrenaturais, por ser muito usada acabou pegando, mas a origem nunca mente, uma palavra que é usada para nos ofender por conta do que somos e do que podemos fazer. Ouvir ele contar a história do que fizeram com o filho dele ainda me causa um aperto no coração, mas reprimi a memória para focar.

 

Agora é a hora da dor de verdade.

 

Foquei no adorno de uma das seis disciplinas na minha coluna, seu aspecto começou a se manifestar no meu corpo causando os calafrios, os sussurros de sempre e trazendo seu símbolo consigo, mas era uma sensação mais familiar. Tenho afinidade com a Tesoura pelo cosmo ser meu ponto médio e por isso essa disciplina é mais familiar para mim do que o Esmero e a Marionete, os efeitos da Tesoura pode ser confundida com o Metamorfo por um detalhe simples; a Tesoura muda COM a energia, o Metamorfo muda A energia, manipulando o aspecto eu já estava sofrendo por antecipação. Acelerar a cicatrização com a Tesoura só pode ser descrita como um inferno pela dor. 

 

Acumulando a energia nos meus anéis, coloquei minha mão direita sobre a ferida fechada pelos pontos, os anéis estavam vibrando com minha ansiedade enquanto preparava minha mente. Um adorno próximo quadril me dava acesso a Obra da Cicatrização, os adornos são divididos em níveis de profundidade de entendimento que o usuário tem do conhecimento, esses níveis são: base, emblema e Profundo, meu entendimento da obra da cicatrização está na fase do emblema. Movendo a energia carregando o conhecimento da obra, amplifiquei o efeito com a tesoura controlando com o máximo de eficácia possível. 

 

Sentir dor te faz você se sentir melhor? Assim que quer se punir? — Meyrine me indagou. 

 

Exatamente.

 

Fiz a obra de cicatrização penetrar minha carne, moldando e aparando o conhecimento com a tesoura, fiz com que a carne começasse a crescer, usando meu próprio sangue como combustível para isso. Gemer era o de menos, manter a concentração com a dor de meus músculos, mesmo que em uma área pequena, sendo obrigados a crescer e se fundir uns nos outros era mais do que apenas angustiante, era uma tortura que eu mereço… mesmo com a desaprovação da Meyrine, ainda sinto minha razão. Qual é minha justificativa para estar aqui? Qual é minha justificativa para ter deixado Samuel no aniversário dele? Eu escolhi isso, esse é o preço. 

 

Simplesmente vai aceitar? Vai usar a carta de que agora que está aqui, tem que ir até o final? Você pode voltar, a questão é que você tem medo porque não sabe quando o sentimento de raiva vai voltar para te controlar porque você apenas o aceita.

 

Engolir cada palavra distraia minha cabeça para a dor física, mas a dor que estava em meu peito parecia ser cutucada com um ferro quente. A obra se desfez quando sua tarefa foi completa, uma cicatriz nova estava na lateral da minha coxa, os pontos se desfizeram pela intensidade da energia e só restou a cicatriz, subi minha calça e joguei a pequena bolsa do kit no lixo ao lado da privada, me levantei com a perna esquerda dormente e me recostei na parede da cabine esperando a sensação dela voltar. Lembrei de uma situação parecida que aconteceu comigo quando era um mensageiro, faz parte dos bons tempos…

 

Eu tive que sair, foi a melhor coisa para mim e para todos.

 

Quando um policial erra no meio de um tiroteio, por qualquer motivo que seja, seus colegas de equipe e civis podem receber um ferimento que poderia ter sido evitado. Nos mensageiro aprendemos que devemos cumprir nosso papel como engrenagens de um relógio, porque quando um falha, isso afeta a outra engrenagem e as coisas vão começa a dar errado como uma reação em cadeia, aceitar ser uma engrenagem é estar ciente que seu fracasso pode afetar as outras engrenagem. Eu estou inutilizado, me tornei defeituoso quando perdi a certeza das coisas… quando perdi Vincent. 

 

A raiva que a Meyrine mencionou é a única certeza que eu tenho quando a sinto, a raiva e desejo de vingança e estar disposto a morrer para isso acontecer… mas isso nunca deveria ser a minha prioridade. Quando estou com Sammy eu sou feliz, quando estou com Hana eu me sinto amado, quando estou com Glória eu sinto a presença de uma irmã, mas essa raiva passa por cima de tudo como um furacão e tudo que me resta depois disso é… vazio, fico oco e só me resta os cacos. Abri a porta da cabine indo direto para uma das três torneiras da pia, lavando minhas mãos eu joguei água no rosto para tentar lavar meus pensamentos também. 

 

Eu preciso controlar esse tornado, controlar o caos dentro de mim, mas… como?

 

Pegando os papéis, enxuguei meu rosto e mãos, limpando o sangue e observando a água avermelhada correndo para o ralo. Respirei fundo, tentando trazer algum tipo de paz do ambiente para dentro, mas o que senti com esse momento de concentração foi um presságio ruim, minha nuca se arrepiou junto a um calafrio que subiu por minha coluna junto ao presságio, tem algo errado… ninguém entrou nesse banheiro desde que eu entrei, olhei para as cabines as três primeiras estavam fechados, na outra ponta havia a única que estava aberta. Coloquei a mão na empunhadura do revólver no peito, me aproximando da cabine aberta. 

 

A cada passo, pequenas teorias surgiam junto a esperança de ser um alarme falso, mas, os presságios têm uma chance extremamente baixa e quase inexistente de serem enganosos. Sacando o revólver, pulei na frente da porta da cabine apenas para apontar a arma para uma privada sem ninguém, caminhei abrindo as três outras cabines, mas todas estavam vazias, até mesmo olhei para a cabine onde eu estava apenas para encontrá-la vazia também, tem algo errado, mas de onde está vindo essa sensação? Aproximei-me novamente da pia com o revólver na mão, observei meu reflexo tentando buscar algo de diferente em mim. 

 

Galante com cara de acabado, tudo normal.

 

Passos chamaram minha atenção para o pequeno corredor de entrada, o homem de altura média vestia um terno preto comum, sua barba e cabelo tinham fios grisalhos em meio ao pretos e seus olhos vieram diretamente para mim. A mesma raiva surgiu novamente em minha cabeça, brilhando forte e me puxando para dentro de si conforme eu reconhecia o rosto cansado do homem, Eithor Guile, quem estava envolvido com o incêndio, quem deu a maldita localização para o Leonardo e nos levou pra uma armadilha, todas essas informações vieram de uma vez em minha mente. Meu braço direito subiu quase que instantaneamente após reconhecê-lo, apontando a arma para ele. 

 

— Espera!

 

Se ele está aqui, os outros cultistas também estão, é uma armadilha, matar cultistas em público vai trazer muita atenção ou pode haver danos nos civis. Suas mãos foram para cima e seu rosto sem nenhuma emoção além de medo me dizia algo, ouvi dizer que ele sempre se vestia com roupas chamativas, mas a observando o terno preto simples junto a nenhuma joia ou relógio caro no pulso era estranho, a única coisa que brilhava nele era uma aliança no dedo anelar esquerdo que tinha um pequeno diamante. Puxei o cão do revólver, uma gangorra se formando em minha cabeça entre atirar ou tentar conseguir alguma informação.

 

— Me escuta! Eu posso… eu… posso. — Sua voz começou a perder o tom e ele agarrou o braço esquerdo na altura do antebraço.

 

O presságio surgiu de novo, mas dessa vez meu corpo inteiro ficou frio, todos os instintos gritavam para que eu fugisse, simplesmente saísse correndo, mas a curiosidade junto ao senso de dever me fez esperar. Abaixando minha arma, observei o homem gemer e grunhir enquanto segurava o braço esquerdo, ele caiu de joelhos e começou a se debater no chão, quando ele parou de gemer, as luzes do banheiro começaram a piscar e a atmosfera ficou fria como um freezer. Ele começou a se levantar, cada instinto agora me dizia que algo estava diferente, as luzes pararam de piscar e todas se desligaram, restando apenas uma muito fraca acima de mim.

 

A radiância começou a preencher meu corpo, se espalhando a partir do meu coração, meu sangue a levando para as raízes e músculos, até chegar ao meu cérebro e envolvê-lo. Meyrine estava com sua presença mais destacada, seu silêncio me preocupava mais do que se ela dissesse qualquer coisa para mim, na verdade eu estava quase implorando que ela dissesse algo, Eithor se levantou do chão e olhou ao redor antes de focar seus olhos em mim, a segundos atrás eles eram duas bolas castanho escuro, mas agora havia um brilho carmesim sutil em sua íris. Meus olhos se aqueceram, a luz fraca acima de mim começou a piscar quando liberei meu semblante. 

 

— Eu sei quem é você… Marcelo, algumas das minhas crianças o temem como as crianças normais temem a história do “bicho papão”... acho que é esse o nome da história. — Sua voz tinha outro tom, seu comportamento e postura eram mais elegantes.

 

Meyrina?!

 

— Você é o Emissário? Quem mandou aquela entidade para casa do meu irmão, quem está recrutando Cruciros e dando poder a eles… o que você quer? — O que tá acontecendo? Meyrine?!

 

Ele uniu as mãos de uma forma estranha, o rosto dele estava sereno e nem mesmo piscava. 

 

— O menino, Samuel, me dê ele e renegue a herança das entidades da Aurora, se a mãe dele também o fizer, serei misericordioso o suficiente para aceitá-los… Quanto ao incidente de oito anos atrás, saiba que nunca foi pessoal, mas o que aconteceu aconteceu, certo? Você já matou muitos dos meus poucos humanos marcados, acho que a dívida de uma vida já está paga de certa forma. 

 

A Radiância começou a ferver dentro de mim, cada pensamento ficou mais lúcido e uma outra presença começou a se aproximar a se manifestar através da radiância que saia do meu peito. Dívida paga? Destruiu a vida do meu sobrinho, da minha irmã de consideração, roubou a vida do meu irmão e acha que a vida de moribundos lunáticos sequer é capaz de pagar um milésimo disso?



Não me faça rir.



Isso com certeza se tornou ainda mais pessoal. A radiância absorvia minha raiva e seu calor aumentava mais, a presença que se manifestava pedia minha permissão, ela começou a emitir pensamentos e vontade quando deixei que me guiasse.

 

— A dívida só será paga quando a sua vida for nossa, você tomou algo meu e isso nunca mais acontecerá tão facilmente, você pagará, Pólios, farei com que Etrerus sangre e você será o canal da ferida. — As palavras estavam longes de ser minhas, algo ou alguém na herança é quem estava falando.  

 

— Gnosis, Filho da Morte… sua presença tão insignificante quanto as pessoas que o seguem, seus outros irmãos Eminentes serão varridos junto às almas tolas daqueles que confiaram em vocês, por fim… este receptáculo se provou ser um risco desnecessário, a criança será minha e você e sua turma apenas terão que aceitar isso… A Eternidade é Absoluta. 

 

Gnosis?!

 

Meu braço se levantou, a radiância tomou muitas formas que sou incapaz de compreender, o corpo do Pseudo Eithor ficou paralisado e sua feição se banhou em confusão.

 

— Etrerus pode até ser absoluto, mas você, Pólios, está longe de ser... Neste tempo, nenhuma das nossas crianças serão mais suas vítimas, neste tempo… faremos com você o que fizemos com seu antigo mestre, ele também era arrogante, se lembra? Etrerus é absoluto, mas a Morte é mais que uma certeza. — Os anéis em meus dedos vibraram, a luz dos meus olhos iluminavam qualquer lugar que eu olhasse. 

 

Caminhando até o Pseudo-Eithor, ficando em frente a ele, mesmo meu corpo sendo controlado por outro eu conseguia ler algumas de suas intenções. Ódio brilhava no vermelho sutil dos olhos de Eithor, o ódio de quem estava o controlando banhou o rosto dele quando minhas mãos puxaram a manga do seu braço esquerdo, a marca que era uma estrela de sete pontas parecia uma cicatriz avermelhada no seu antebraço, fechando meu punho, à frente dos anéis queimaram a carne por cima da marca com energia vinda da radiância. Os olhos de Eithor começaram a perder o brilho vermelho, sua feição ficando flácida conforme a presença na radiância também se esvaia. 

 

— Até o fim disso, Pólios. — As palavras eram a última mensagem que a radiância enviou usando minha voz antes da presença dentro dela sumir e meu corpo estar sob meu controle. 

 

Pisquei algumas vezes, Eithor estava grunhindo no chão enquanto segurava o braço esquerdo, olhei ao redor no banheiro que estava escuro com a única luz vindo das frestas da porta. Gnosis se manifestou… em mim? Como? Quero dizer… eu sei que é possível por que a herança é uma passagem de ida e volta, a pergunta real é porquê. E… por que por ele? Encarei Eithor, o ser que o controlava disse que ele era um risco desnecessário, então se ele está vivo agora é porque Gnosis fez algo usando meus anéis. Na verdade, a resposta é muito simples: se esse Polios se manifestou através do Eithor até mesmo com 5% do poder, eu estaria morto. 

 

Mesmo com a resistência que a herança me dá contra poderes vindos de outras entidades e pessoas, ele estava usando o corpo de um dos seus marcados, então conseguiria usar seus poderes através dele.

 

A herança me dá certa imunidade contra poderes vindos de outras entidades, mas existem muitas variáveis, desde quão ligado o servo é e desde quanto poder ele recebeu de seu senhor. Eithor chegou aqui e quando ele começou a falar a manifestação de uma possessão aconteceu, logo, seu senhor queria evitar que ele falasse e essa tentativa colocou ele na lista de descarte… mas o que ele queria falar? É realmente importante? Antes que pudesse pensar mais, outro presságio ruim chegou, algo começou a rondar o posto de gasolina, eu podia sentir uma presença estranha do lado de fora. 

 

Estão aqui por mim? Não, é claro que é por ele.

 

A contra-gosto, guardei meu revólver no coldre e puxei Eithor pela gola para colocá-lo de pé, ele ergueu a mão direita enquanto a esquerda estava colada ao corpo. Seja o que for, Gnosis queria ele vivo, então deve ser algo que vale a pena o sacrifício de mantê-lo vivo, eu podia sentir o alívio de Meyrine antes que a preocupação voltasse a ocupar nossa conexão, o presságio estava ficando mais frio conforme a presença do lado de fora crescia e um cheiro de queimado começou a surgir no ar. Comecei a andar pelo curto corredor arrastando o moribundo Eithor pela gravata, o cheiro de queimado se intensificou quando abri a porta do banheiro. 

 

Lembranças ruins…

 

Fogo rosado queimava a loja de conveniência do posto e também o teto acima das bombas de combustível, as pessoas corriam desesperadas enquanto os carros ao redor também começavam a pegar fogo do nada. Observei impotente aquele fogo rosado, a lembrança do incêndio batendo em minha mente como um martelo, soltei a gravata do Eithor e tentei ajudar as pessoas que fugiam da chama que parecia perseguir qualquer sinal de vida, alguns tropeçavam, outros ficavam paralisados, mas meus instintos se afiaram quando vi uma jovem abaixo de uma barrada de ferro. Quando me aproximei, ela pediu por ajuda ainda chorando. 

 

De novo não… De novo NÃO!

 

Mesmo com o aumento de força do Esmero, a barra estava conectada a muitos outros entulhos que caíram do teto, o fogo pareceu nos perceber e começou a deslizar em nossa direção, queimando concreto e aço. A jovem começou a se agarrar a mim, observei ao redor para ver que o fogo estava começando a nos encurralar, observando a menina, uma imagem de Samuel no dia que o vi com os braços queimados voltou para me assombra, mas ao invés disso me causar a raiva avassaladora, o que eu senti era apenas remorso de ser tão fraco. Olhei mais uma vez para o fogo, mas desta vez, vi Vincent olhando de volta para mim, sua feição séria enquanto apontava para o peito 

 

Para vencer uma entidade, crave os pés no chão e suporte tudo que ele mandar contra você, seres absolutos têm dificuldade em afetar um barco bem ancorado… Goro faz parecer fácil.

 

Limpei minha mente me levantando, a moça temeu que eu a deixasse sozinha, mas apenas me levantei e fiquei logo ao seu lado. Busquei no fundo, no centro espiritual o legado que eu havia deixado de construir quando Vincent se foi, ao contrário de obras comuns que apenas são a formação de um poder pronto, uma obra inata se forma de dentro, o último e quarto estágio de conhecimento que poucos alcançam, Transcender, entrar em sintonia com uma obra e torná-la parte de você… ou criar algo que te complete. Mergulhei nesse conhecimento incompleto, deixando que ele corresse por meu corpo, alimentando ele com a Radiância e toda energia armazenada no meu sangue. 

 

Deixei meu senso atrás levar meus sentidos pelas chamas, como navegar pelo rio conhecendo suas curvas e pontos de saída, saber onde começa e termina. O fogo já havia engolido mais de 80% do ponto, podia sentir a presença doente que o controlava de dentro, o próprio fogo como um animal desesperado pela próxima vítima e caçando, senti tudo isso, cada labareda faminta que queria matar tudo que se mexesse, usando a obra incompleta, agarrei essa presença como um todo e a arrastei para dentro. Meus estudos sempre me levavam a Penumbra, a obra incompleta também a levava para lá, tentando criar uma passagem de ida e volta… mas agora eu só preciso da parte de ida. 

 

Por favor, funcione, tem que funcionar!

 

— Translado — falei suavemente ouvindo o sibilar das vibrações dos anéis que saiam da mão à frente do meu rosto.

 

O som crepitante do fogo desapareceu quando a sibilar dos anéis pararam, a energia em meu corpo foi quase totalmente drenada me dando tontura. Abrindo meus olhos, apenas a chuva caia sobre o que restava do posto, o fogo simplesmente havia sumido e deixado apenas o calor residual que estava desaparecendo pela chuva constante, olhei para a moça e vi a luz dos meus olhos se apagando no reflexo dos dela, seu rosto estava ficando mais confuso conforme me encarava. Mais pessoas começaram a se aproximar, usei a confusão para desaparecer em meio às pessoas ainda zonzo, busquei até achar Eithor desligando o celular em uma rua ao lado da loja de conveniência destruída.

 

Observei o posto destruído andando até Eithor, corpos carbonizados encolhidos estirados pelo chão e alguns era apenas cinzas. Nunca esperei nada de bom das entidades, mas conhecer a Aurora me fez ver que há algumas que realmente tem um apreço por nós… no entanto, essa situação na minha frente é a realidade para 98% dos casos, somos baratas para serem pisadas e nunca dão uma segunda olhada por onde passam, somos irrelevantes para eles, para que se dar o trabalho de olhar? Essa era a raiva que me aquecia quando era mais jovem, mas agora, eu sei bem quais são minhas poucas aliadas. 

 

Eithor olhou para mim com temor quando fiquei de frente a ele, antes que ele falasse fiz um sinal para que ele ficasse em silêncio, me concentrando novamente com certa dificuldade, senti presenças semelhantes às do fogo se aproximando. Peguei sua gravata e comecei a puxá-lo seguindo a rua até um estacionamento de caminhões, o chão coberto por pedras de cascalho, muitas carretas formavam caminhos entre elas, as presenças estavam ficando mais próximas conforme eu puxava Eithor para o fundo do grande pátio de caminhões. Paramos entre duas carretas com um espaço que caberia dois carros entre elas, a luz branca dos postes chegava até nós com certa dificuldade.

 

— Vou perguntar apenas uma vez, por que foi até mim e por que isso está acontecendo? — Prendi Eithor contra o baú de uma das carretas.

 

Ele tentou repuxar o ar perdido com meu aperto.

 

— Eu preciso de você e você vai precisar de mim, pensei que apenas dividir meu pensamento cobriria o rastro e me daria tempo, mas agora eu sou oficialmente um traidor com muitas informações sobre eles.

 

Muitas informações, isso já explica algumas coisas.

 

Cinco presenças se aproximando, se prepara. — Meyrine alertou. 

 

Soltei a gola do homem e sinalizei para que ficasse atrás de mim, comecei a estimular meu senso astral captando as assinatura dos cinco que estavam rodeando chegarem por de trás. Usar a obra incompleta foi um risco e me custou muita da energia que estava circulando por meu fluxo interno, comecei a buscar minha reservas dentro do fluxo e me decepcionei ao ver que realizar aquela obra também comeu grande parte dessa reserva, comecei a juntar o que tinha e a impregnar mais Fie através da conexão natural com o astral. Relaxando meu corpo, acessei o adorno no meu ombro, a obra no estágio profundo apareceu em minha mente junto a seu símbolo. 

 

Simplicidade.

 

Limpando meus pensamentos, comecei a moldar a energia que passava pela obra, a energia assumiu a forma de um fio mais fino que um fio de cabelo e começava a me ensinar o que ela era capaz de fazer. A capacidade de afinar minha energia vinha com algo mais profundo, mas deixei isso para depois, busquei com minhas nas costas entre o suéter e o sobretudo até achar a empunhadura e, tirando o punhal de sua bainha, envolvi meu cérebro com Sine melhorando a qualidade dos meus pensamentos com radiância. Esperei pelas cinco presenças paradas, mas a demora me irritava, eles acham que podem me pegar de surpresa?

 

— Vamos, apareçam, venham conversar com o Titio Marcelo. 

 

Observei no final entre as duas carretas duas figuras saírem de trás dos baús, ainda podia sentir os outros três escondidos de uma forma péssima. O estado de omissão é pra apagar a presença, mas quando usado por um amador ela apenas reduz a presença invés de apagar, é assim que eu escondo meu semblante, estou em constante estado de omissão regulado para reduzir minha presença, mas posso simplesmente desaparecer do sentido astral de outras pessoas… exceto para Glória. Observei a figura alta com músculos volumosos e quase dois metros de altura, as roupas estranhas e lábios que se entendiam até as bochechas entregarem sua raça.

 

Cruciro.

 

Dizem que existiram muitas variações hominídeas no mundo e nós humanos somos uma das poucas que conseguiu sobreviver até os dias de hoje, mas existem algumas outras. Os Cruciros são uma espécie hominídea assim como nós e os macacos, a única diferença é que no meio desses anos de evolução, pegaram gosto pela carne de outros hominídeos e entre eles, humanos, dizem que a carne de seres conectados ao astral como Numens e algumas outras raças e espécies de seres com conexão dá a eles a capacidade de ficar mais fortes. Encarei os olhos negros do Cruciro ao lado de alguém mais baixo com capuz que cobria o rosto deixando apenas o queixo à mostra. 

 

— Adepto da Aurora, Marcelo, me entregue o homem atrás de você e sua vida será poupada, lute contra isso e acabará como um dos nossos objetivos principais — disse a figura mais baixa com capuz.

 

— Vocês estarão mortos nos próximos cinco minutos… — sussurrei para mim mesmo.

 

Encarei meu punhal, a lâmina com algumas runas da Aurora que fiz junto da Hana, a empunhadura escura com a guarda em bronze. Assumi minha posição, dobrando um pouco os meus joelhos e preparando meu corpo, as duas figuras estavam imóveis até que o Cruciro começou a assumir uma postura de luta, era um teatro bem elaborado, enquanto minha atenção fosse do brutamontes mortal eu nunca perceberia que havia mais três pessoas para me pegar desprevenido, só acho que realmente nunca ouviram falar de mim. Quando o Cruciro urrou e deu três passos na minha direção, ele parou, debaixo das carretas as sombras tomaram formas. 

 

Com meus joelhos bem posicionados, apenas pulei para trás enquanto três figuras avançavam para onde eu estava, observei as três pessoas que saíram das sombras, uma mulher, um homem forte e um homem magrelo. Todos os três tinham o cabelo curto e portavam lâminas de diferentes tamanhos.



Avancei contra o homem magrelo que parecia ser o melhor em esconder sua presença, preparei minha adaga e ele assumiu uma postura defensiva enquanto a mulher avançava contra mim pela esquerda e o homem forte pela direita. A espada curta da mulher cintilou ao se chocar com a minha, girei dando um soco com as costas da mão na mulher para encontrar o homem forte tentando me apunhalar pela direta.

 

Pegando o braço do homem pelo pulso, sua apunhalada passou passou por mim e o puxei para mais perto de mim com minha adaga entre nós, a lâmina penetrou sua barriga em uma espécie de abraço. Forçando a lâmina a cortar até sair pela lateral de sua barriga, agarrei sua jaqueta e firmei meus pés no chão para lançar se corpo contra a mulher que estava vindo para mim de novo, o sangue e os intestinos fizeram uma trilha no chão até o corpo se encontrar com a mulher, seguindo para o meu alvo principal, o homem magrelo assistia tudo com medo nos olhos. Levantei minha lâmina e ele ergueu as mãos, próximo a ele, abaixei meu tórax e ergui minha perna contra sua barriga. 

 

Insistente.

 

Notei a mulher avançando por trás com sua cara sendo a definição de desespero e raiva, mudando minha estratégia, defendi o golpe da mulher e faíscas voaram, ela tinha ataques ferozes, mas eu era mais ágil. O magrelo tentou avançar junto à amiga, mas mesmo ambos juntos era fácil defender e contra atacar seus golpes e já havia os atingidos muitas vezes, a mulher abriu os braços e se jogou abraçando minha barriga no meio do meu ataque e senti sua tentativa de tentar me apunhalar nas costas, com uma joelhada em sua barriga seu abraço afrouxou e puxei sua cabeça pelo cabelo curto enfiando a adaga em seu peito. O magrelo se jogou contra mim, seu jogo de corpo nem mesmo me balançando.

 

Menos dois, falta três. 

 

Tirando a adaga do peito da mulher a deixando cair no chão, o magrelo mais uma vez tentou trocar golpes comigo, havia tantas aberturas em seus ataques que ele estava sangrando por inúmeros cortes em suas roupas e rosto. Uma brisa fria surgiu por trás de mim e braços fortes me envolveram prendendo meus braços, o Cruciro me segurou e tirou meus pés do chão, atrás do magrelo uma sombra surgiu antes que uma lâmina atravessar seu peito vindo em minha direção, usando meus pés empurrei um corpo moribundo do magrelo mantendo a lâmina da Figura longe de mim e empurrando o Cruciro contra a carreta. A Figura jogou o corpo do antigo aliado para o lado e avançou com sua lâmina fina contra mim de novo.

 

Meus braços contidos pela força bruta de um Cruciro era uma coisa complicada, tentar causar dor o suficiente nele para que me liberasse era algo possível, evitei usar a obra acreditando que haveria o momento perfeito… ele chegou. Visualizando os finos fios, usei a pouca energia dentro de mim para formar esses fios e enviei para a minha, saindo de mim pelos anéis enquanto apontava dois dedos para a figura baixa, eles eram invisíveis e quando encontraram a figura, sua lâmina se dividiu em duas e seu corpo foi empurrado para trás com o impacto. O Cruciro grunhiu e começou a me apertar mais forte, meu ar estava sendo roubado pela pressão, mas me mantive focado.

 

Com mais um fio, agarrei um dos braços do Cruciro e liberei o fio cortante em seu corpo pelos anéis, o aperto se aliviou quando um dos braços da criatura caiu no chão e sangue jorrou do coto. O desgraçado tentou morder meu pescoço ainda me segurando com seu braço restante, preparando outro fio com mais energia, minha concentração se desfez quando o aperto da criatura se também se desfez e fui libertado, olhei para o lado para ver Eithor recuando mostrando as mãos para mim e olhei pra criatura logo depois. Minha adaga estava afundada na lateral do pescoço do Cruciro, os longos lábios abertos mostravam fileiras de dentes amarelos irregulares. 

 

Sangue saia da jugular cortada, mas a vitalidade dessas criaturas sempre me impressionam, o Cruciro perdeu suas forças e caiu de costas no chão de pedras, ainda se mexendo com movimentos lentos. Pegando minha adaga, ele tentou me agarrar, mas sua força já havia o deixado pela quantidade de sangue que manchava o chão.



Puxando a lâmina ao redor do pescoço da criatura, sua respiração parou de vez. Levantei-me para encarar Eithor, ele apontou para trás de mim e me dei o trabalho de olhar, a figura com capuz mancava tentando se afastar usando a carreta como apoio. 

 

Caminhei lentamente e ainda assim a alcancei, limpei minha adaga antes de guardar ela novamente na bainha em minhas costas, peguei a figura pelo pescoço e arranquei seu capuz. Era uma mulher, talvez na casa do vinte e cinco anos, seu rosto tinha uma cicatriz marcante na testa, sangue escorria por sua boca num ritmo constante, ela está viva então seu corpo deve ter tido treinamento para criar resistência a energia ou treinamento para se proteger com energia, qualquer um dos dois já era algo um tanto preocupante. Liberei meu aperto e me afastei alguns passos para trás, olhei para Eithor que assistia a tudo com dúvida.

 

— Quem é ela? A entidade disse que havia poucos humanos marcados, ela é uma dessas pessoas? — perguntei à Eithor.

 

Ele se aproximou para ficar a alguns passos de mim.

 

— Provavelmente queria ser… é uma Capacitada, eles lideram grupos pequenos, então se tivesse sucesso, receberia a marca e os demais também estariam mais perto de recebê-la ou melhor… acreditavam nisso. 

 

A mulher cuspiu na direção de Eithor. 

 

— Trai… Traidor — suas tentativas de ofender Eithor terminavam em vômitos com sangue. 

 

— Ela tem alguma informação de valor? — Meu tom saiu sombrio. 

 

Eithor engoliu em seco.

 

— Mais do que eu, você pergunta? Capacitados apenas sabem o que precisam e lideram grupos pequenos, cinco ou três pessoas, eu estava mais perto dos chefes…  

 

Que merda. 

 

Apontei três dedos para a mulher, seu olhar de medo beirava a aceitação e por um momento senti pena quando um fio avançou contra ela. O corpo com inúmeros cortes profundos foi dividido na diagonal na área do tórax pelo último corte que enviei, observei as duas metades caindo com uma mistura de raiva e pena, matar me deixa com um gosto ruim na boca, mas isso é bom. Significa que eu faço isso porque preciso e não porque sou um retardado homicida, mas essas pessoas que fazem isso por serem retardadas homicidas, eu quero apenas matá-los e nunca sentir nada. Quantas vidas eles destruíram? Quantas pessoas mataram? Será que sequer eles pensam nisso com culpa ou arrependimento? 

 

É claro que não. 

 

Um criminoso tem seu valor medido pelo seu crime, alguém que rouba para sustentar alguém ou a si mesmo sempre terá o valor maior do que a de um homicida que mata por prazer. Mas e se ele roubou a comida de alguém que precisava? Me aproximei do Eithor e ele deu passos para trás, o perdão é na verdade uma dívida que nos é cobrada a cada segundo que fazemos algo de errado, a cobrança nunca para e nunca vai te deixar, nossos erros e escolhas a partir deles nos definem, então qual é o seu valor? Todas as vidas que tirei eu tirei por mim mesmo, nunca busquei um ser maior para justificar os meus erros… mas e você? 

 

Por que veio até mim? Justamente até mim? Perguntas para uma outra hora.

 

— Você veio de carro? 

 

Eithor acenou com a cabeça.

 

— Mostra o caminho. 

 

Ele começou a andar e eu a segui-lo, passamos por todo caminho que havíamos feito quando entramos no pátio de caminhos até sair na estrada. Olhando em direção ao posto de gasolina, vi muitos caminhões de bombeiros, Drones da polícia, viaturas e ambulâncias, o aglomerado de pessoas em volta formavam uma multidão, quantas pessoas morreram ali? A morte de uma entidade compensaria tudo isso? Segui Eithor até uma agência de correio, um Sedan de luxo estava parado em frente a agência com uma placa que dizia: fechado. Eithor deu toques no vidro do motorista, quando nada aconteceu ele deu toques mais desesperados. 



Empurrei Eithor para o lado e abri a porta do carro, o antigo motorista era um homem moreno e careca que estava com um buraco no topo da cabeça, puxei o cadáver para fora e o coloquei no chão. Eithor olhou com o que vi sendo culpa antes de tentar sentar no banco do motorista, o impedi e sinalizei para que desse as chaves, sem protestar ele deu a volta no carro e me sentei no assento do motorista, colocando a chave pomposa na ignição, dei a partida para ir a uma parte mais tranquila da cidade. Manobrando o carro, tive que passar pela rua que dava visão ao posto, enquanto passava, notei duas pessoas encarrando o carro, ambos vestiam ternos cinzentos e sobretudo negros, seus rostos cobertos por guarda-chuvas.

 

A Ordem vai entrar em ação.

 

Seguindo as avenidas e ruas, deixei-me pensar nos dois mensageiros no posto e no próprio Eithor, ela é um fugitivo jurado de morte pela Ordem e agora também era jurado de morte por uma entidade. Começando a entrar na parte mais calma da cidade, estacionei o carro em um estacionamento perto de um parquinho escuro, em frente havia uma instituição de ensino e de resto alguns comércios fechados ou abandonados, esse cara tá tentando bater um recorde de ser procurado? Olhei para Eithor após checar se estávamos realmente sozinhos com o senso astral, ele estava enrolando faixas nas feridas em formas de runas em seu braço. 

 

— Eu juro que tenho uma boa explicação… — disse amarrando o curativo no antebraço.

 

Recostei-me no banco, minha mente ansiosa, mas mantive minha fachada, nossos olhos se encontraram e por debaixo do medo, eu vi algo mais profundo e complicado. 

 

— Então comece. 

 





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