Volume 2
Capítulo 33: O que importa?
[Domingo 11 de Setembro de 2412, 17:05 da tarde]
Maya Volundros
As páginas se tornavam mais complexas a cada uma que eu terminava, primeiro começou com uma explicação do que o livro se trata e agora me ensina a como tratar cada energia. Ordália Moyo Oludre, eu já tinha visto esse nome em um dos códices do templo a um ano atrás, uma mulher tão habilidosa que era capaz de afetar o clima cósmico com seu poder esotérico e uma estudiosa do proprio esotérico, o códice dizia, também dizia que era uma grande mulher. O livro foi escrito na África antiga por um de seus alunos, ele recebeu permissão dela para ensinar as futuras gerações das cinco famílias… nós.
Olhei de canto para Samuel, enquanto eu tava na página cinquenta, consegui ver que ele já havia passado da página cem. Nem mesmo um ruído ou pergunta, ele nem mesmo desviou o seu olho do livro, na verdade até sua posição estava igual a quando ele começou a ler, observei o menino com mais atenção notando apenas uma diferença sutil: seu olho direito estava aberto. Seus olhos eram lindos, o esquerdo tinha sua íris verde musgo com raízes douradas envolvendo a pupila, o direito era um roxo profundo como uma galáxia com as mesmas raízes se enrolando na pupila e sua íris era como vórtex.
Ele é… curioso, em muitos sentidos.
Quando o vi na casa que onde eu vou para praticar meu canto, me perguntei como ele chegou ali, desconfiei que ele poderia ter me seguido no início, mas tenho certeza que pode ter sido algo mais. A forma como nós reconhecemos é Família das Cinco Auroras ou apenas Família Aurora, cada família é chamado de Lar e leva o sobrenome do Adeptos do patrono junto ao sobrenome que representa nossa união. Me distraí com os pensamentos vendo que a noite já havia começado, as luzes amareladas foram acesas e me vi com mais curiosidades.
Nossos Lares são destinados a andarem juntos, no templo á dois membros do lar Áureo e um do lar Trono que ajudam as Mamas e Escribas do templo do meu Lar, Lunaris. Ele me encontrou por acaso ou uma hora iríamos nos encontrar de qualquer forma? Pensei na primeira vez que o vi no encontro das pequenas estrelas, das seis crianças ele era o único que realmente prestava atenção no que as mamas e escribas falavam e estava realmente interessado. Eu tive o desejo de falar com ele, mas também tenho vergonha de admitir agora que eu… tive medo.
Uma memória antiga me veio à mente, o homem com uma feição feroz e seus olhos com a íris quase completamente dourada, o avô do Samuel. O relacionamento com qualquer membro de qualquer lar é de respeito, mas dizem que os Áureos tem um instinto de proteção forte, eu lembro que um homem da cidade que havia acusado o senhor Simão de fazer maldições e tentar ensinar isso as crianças… ele se arrependeu. O avô do Samuel fez o acusador urinar na própria calça, o homem que parecia ter vinte e pouco anos se ajoelhando chorando como uma criança foi uma visão marcante.
Eu sei que ele estava nos protegendo… mas me deu medo.
Eruditos escolhidos por Gnosis, Áureos, a um ditado que diz para nunca ameaçar quem eles amam ou qualquer um do Lares diante um Áureo e nunca duvidar de suas mentes… a primeira parte do ditado fez muito sentido naquele dia. Foquei no livro percebendo meu tempo perdido em divagações e o sentimento de frustração por isso nasceu, se eu parar de pensar tanto em outras coisas, talvez eu consiga aprender mais sobre o que realmente preciso aprender: controle sua mente, alinhe suas emoções e estabilize seu coração… estabilize meu coração. Deixei que a graça da minha senhora corresse por minha mente, me ajudando a manter o foco.
Como deve ser a Graça do Senhor Gnosis?
Eu me fiz essas perguntas muitas vezes, essa curiosidade existe para todas as Graças, na verdade, a energia que nossos patronos nos permitem usar. O Trono do templo me disse que quando usa Graça do Senhor Malaika, poderia correr por um dia inteiro e pareceria que ele apenas deu uma caminhada pelo parque da cidade, eu tive medo de perguntar para os Áureo do templo, mas nos códices diz que a Graça do Senhor Gnosis deixa seus pensamentos mais claros, ou algo assim. Me belisquei percebendo que perdi meu foco novamente, a frustração estava crescendo mais a cada desfoque.
Se concentra, concentra!
Notei alguém se aproximando por trás de mim, a pessoa puxou a cadeira ao meu lado e se sentou para que eu pudesse ver que era a senhora Glória. Olhei de canto a bela mulher, seu pele branca marcada pelo mural construído com pequenas letras negras, o símbolo em sua testa parecia se encaixar perfeitamente com o símbolo na testa do Samuel, seus olhos caramelos tinham a mesma deformidade de um vórtex que Samuel e sua marca dourada que rodeava a pupila era maior do que a marca nos olhos do Samuel. Ela tinha seus olhos no livro, mas eu sabia que sua atenção era minha; isso que é o problema… cacimba.
— Algo me diz que você está com algum problema, posso ajudar minha pequena convidada, Florzinha do Luar? — Sua voz e a forma que falava tinha tanta elegância, mesmo parecendo ser tão casual.
Engoli minha própria saliva antes de estar pronta para responder.
— Eu tenho problemas pra manter o foco… você já foi uma Flor do Luar?
Olhei de canto para ver seu sorriso gentil e olhos em mim.
— A muito tempo, antes mesmo de saber que eu fazia parte de um Lar das Famílias da Aurora, meu marido e eu íamos aos encontros da lua cheia com mais umas dez pessoa que seguiam a Dama Lunaria nos suburbios de Cedro, quando me tornei uma mensageira e depois tive o Sammy, ficou difícil arranjar tempo para dedicar a Dama, mas sempre que eu podia, eu fazia — ela disse com um olhar nostálgico.
Fiquei curiosa, mas ao mesmo tempo, as Flores do Luar são homens ou mulheres com a capacidade de ouvir a Dama com mais clareza, faz sentido ela ter sido uma. Olhei de canto para Sammy que ainda estava absorvida em sua leitura, eu antes pensava que era curiosa e gostava de aprender, mas perto dele eu sou apenas uma garota curiosa. Será que ele está ouvindo? Seu corvo estava empoleirada em seu colo, Felícia é o nome dela se me lembro bem, ela estava com seus olhos fechados, provavelmente dormindo, eu acho.
— Ele é tão curioso assim? — perguntei com um sorriso o encarando. — Parece que o mundo inteiro deixou de existir para ele.
Ela riu, uma risada casual e ainda assim elegante. Quero ser assim quando for maior…
— Eu diria que é um mal de família, meu marido também esquecia do mundo quando estava lendo ou focado em alguma coisa… acho isso fofo e vantajoso, dá pra dar beijos na bochecha dele sem que ele tente fugir.
Me deixei imaginar, pensando nesse homem que era seu marido, me lembrei da foto que vi do pai do Samuel na casa em frente ao lago. Comecei a juntar os pontos óbvios que eu tinha, quando nos conhecemos ele usava faixas em seu braço e disse que foi um acidente, no lago quando ele desmaiou, ficou murmurando pedidos de perdão, algo aconteceu, algo que com certeza eles não vão se sentir confortáveis para falar. Destruí qualquer perguntas dessa natureza insensível, dando lugar a outras que julgo serem melhores.
— Como era antes? Digo… antes do que aconteceu acontecesse? Espera, eu… — As palavras me fugiram da minha cabeça ao pensar melhor em minhas palavras.
Ela me olhou com o que parecia ser diversão contida, mas era um olhar muito complexo para mim, ela colocou a mão direita com os anéis mais próxima a mim e seu sorriso pequeno ainda estava no seu rosto.
— Me deixe te mostrar.
Engoli minha hesitação e peguei mão dela, ela apertou gentilmente e senti os anéis em seus dedos vibrando de forma sutil enquanto ela fechava os olhos. Segui seu exemplo fechando os meus olhos, houve uma sensação de silêncio antes que a atmosfera ficasse mais agradável e novos sons fossem captados por meus ouvidos, a sensação de estar sentada foi substituída por estar em pé junto a algumas outras. Quando abri meus olhos, estava completamente em outro lugar, o ambiente, atmosfera e até mesmo as condições eram diferentes.
Estava em um quarto que estava sendo iluminado pelo sol que entrava pela janela passando as cortinas, as paredes de cor marinha e móveis simples davam lugar a uma grande cama. Observei quem estava na cama, uma versão mais jovem da senhora Glória, sem a maturidade que ela tem agora, mas ainda assim sua excelência estava lá, acima de seu peito estava um garotinho de cabelo ruivo avermelhado, era Sammy com provavelmente dois ou três anos. O som de uma porta se abrindo veio atrás à minha direita, cabelo vermelho avermelhado entrou em minha visão seguido por olhos verdes musgo.
O Pai dele.
Observei o belo homem se aproximando da cama com uma bandeja de café da manhã, seu rosto era encantador em vários sentidos, traços afeminados como seus longos cílios e lábios finos eram bonitos. Ele deixou a bandeja no armarinho ao lado da cama e se aproximou para beijar Samuel e a senhora Glória, observei Sammy acordando e indo para o abraço do pai e senhora Glória se sentando para comer o café e ambos alimentavam o pequeno Samuel enquanto conversavam. Meu coração se apertou vendo uma visão tão… distante, isso também me causa culpa por parecer que todo o carinho que Simão me deu é insuficiente.
Eu só queria ter conhecido eles…
Olhei uma última vez para a imagem de uma família com tanto amor, observei os olhos do homem, o verde musgo com a íris deformada em um vórtex como as de Samuel e a mãe dele. A imagem se desfez como tinta na água, o quarto ficou vazio e mais escuro, escutei passos e logo depois a senhora Glória passou por mim para se sentar na cama, ela deu tapinhas ao seu lado me olhando com gentileza. Me sentando ao seu lado, o silêncio era de alguma maneira inexplicável para mim; confortável, mesmo me sentido tensa, esse silêncio era confortável.
— Telepatas tem memória fotográfica, mais forte e clara, podemos reviver qualquer momento de nossas vidas do qual nos recordemos em nossas memórias com esse nível de detalhes, basicamente reviver uma memória, isso é ao mesmo tempo que uma bênção, também é uma infeliz maldição.
Ela passou seus dedos pelo meu cabelo, colocando alguns fios rebeldes e minha franja atrás da minha orelha para revelar a lateral do meu rosto.
— Vincent era melhor do que eu em ler pensamentos e influenciá-los, era uma certeza que Sammy seria um Telepata quando seus dois pais são Telepatas… mas acho que você gostaria de falar sobre outra coisa, né?
Me virei para olhar seu rosto, vi em seus olhos algo que só tenho uma breve memória… um olhar fraterno de uma mãe.
— Simão falou de mim para a Senhora?
— Ele me disse que você é uma garota excepcional, forte em todos os sentidos, eu te observava através dos olhos da Emi, mas nunca vi um momento bom o suficiente para conversarmos. Você tem dificuldades em controlar as vozes, organizar seus pensamentos, né? Sammy tambem sofria com isso quando mais pequeno.
— As vozes eu consigo, aprendi a bloquear, mas as vezes meus pensamentos se perdem e eu perco meu foco e fico brava e… quebro.
Nós duas ficamos em silêncio, me perguntei se ela seria capaz de me ajudar de forma definitiva ou eu sempre ia ser dependente da graça da minha senhora. Ser um anômalo é algo complicado por si só, temos uma passagem natural entre a realidade e o outro lado e por isso podemos ouvir espíritos, ver coisas que ninguém mais pode ver e fazer coisas que poucas pessoas conhecem ou sequer sabem que existem. Ser um Anômalo na nossa Grande Família é tratado com certa normalidade, tirando algumas crianças que nos tratam como se fossemos superiores a eles, é normal.
Nos templos das nossas famílias, crianças como eu e Samuel são ensinadas a silenciar as informações que vem do outro lado para podermos viver confortavelmente e no futuro aprendemos a controlar isso. Eu sempre tive dificuldades para silenciar, mas aprendi do pior jeito o que pode acontecer se deixarmos a conexão que temos com o outro lado ser aberta e sem controle, o espírito que tentou me possuir usou minha inocência para se alimentar da minha energia por minha incapacidade de controlar ela. Quando atingimos a pré-adolescência, é nos dado a oportunidade de aprender mais, de fazer mais.
O que Samuel havia dito sobre sua mãe no caminhão da casa ao lago? Vai, lembra… lembra…
— Você era uma Mensageira? Samuel disse que você lutava contra monstros e disse que se chamava de mensageira, o que isso significa?
A senhora Glória sorriu, parecia envergonhada.
— O Avô dele sempre exagera nas histórias… Ser um mensageiro significa sofrer, existem um número razoável e nenhum deles entram apenas por dinheiro, já que se pensarem apenas nisso acabam mortos na primeira missão, ser aceito pela ordem e carregar o brasão dos mensageiros significa que você vai morrer da pior forma possível e ver muitos horrores, mas cada um tem uma história fascinante para explicar como se tornou um e porque se recusa a sair.
— Porque você se tornou uma?
Ela olhou para o teto, quase podia ouvir sua mente debatendo se devia responder minha pergunta. Nós é oferecido a chance de aprender mais para servirmos um propósito comum, entre outro lado para a realidade a barreira que divide nosso mundo e nos mantém a salvo não é onipotente, poucas coisas podem limitar seres quase divinos e se o Véu for incapaz de barrar a entrada deles, estamos perdidos. Simão me disse que tudo que conhecemos vive em uma balança, do qual NÓS, humanos, nem mesmo somos grãos de poeira no prato da balança.
— Limite, esse é o motivo para existir os Mensageiros e os Barqueiros da Aurora, nossos senhores apenas queria nos ensinar e queriam poucos, mas apenas aqueles que realmente queriam se comprometer, a mesma coisa para o Mensageiros, se a pessoa apenas estar lá sem um real motivo ou desejo, perecem… Temos que limitar os seres do obscuros, espíritos ou o pior mal de todos e o mais presente na terra: humanos. Sem pessoas dispostas a ser o limite, ser maior do que um corpo frágil, ter um objetivo maior do que esses seres quase divinos, estamos à mercê da maior vontade.
Observei como sua expressão era serena, pensei em suas palavras passando meus olhos pelo quarto, vendo como a atmosfera estava mais escurecida como o final de uma tarde. A um garoto no templo, ele é uma pessoa comum e nesse ano completou dezoito anos, eu o admito e respeito porque o vi implorar ao senhor Simão para que deixasse ele ser um Barqueiro, isso é uma das nossas escolhas, podemos apenas servir nos templos ou escolher um futuro arriscado caçando coisas que vem do outro lado ou que simplesmente já existem aqui. Eu preciso ter um desejo maior, ter um sonho pelo que lutar, o garoto mesmo sem nossos dons tem um desejo que transcende o medo, o que me impede?
Seja realista, Maya: o problema tá dentro da sua cabeça.
Meus pais são descritos pela minha Mama preferida como o mais puro amor, que me amaram no exato momento em que deixei a barriga da minha mãe, mas a vida pouco se importa com isso. Ela disse que minha mãe era doente e isso era algo que ela aceitou, a Dama nos ensina isso, aceitar a dor e ela a diminui ao nível da quase inexistência para vivermos da melhor forma possível enquanto ainda vivos, o fato de que ter nascido sem essa doença foi graças a Dama. Já meu pai… ela o descreve como um completo apaixonado, que sumiu no dia que minha mãe se foi e só foi encontrado vestígios de seu corpo.
Eu queria poder me lembrar mais claramente, seus olhos e cabelo brancos, sua voz doce, queria ter uma memória melhor de você, Mãe.
Em minhas meditações escuto alguém cantar para mim, músicas que nunca ouvi junto a uma voz extremamente familiar, mas que pouco me recordo. Ela olhar para mim aqui, eu disso, mas tenho medo que ela veja que me recinto da ausência de ambos, na verdade acho que ela já sabe disso, afinal, um pedaço da Dama está em mim, sua herança que me protege e guia, me sustenta e auxilia, tudo que eu posso fazer e melhorar por ela e por mim. Senti meus olhos ficando pesados, os braços da senhora Glória me envolveram me levando mais perto dela em um abraço.
Seu peito era macio e quente, logo percebi que estava na realidade e não mais em algum lugar na mente dela, algumas lágrimas desceram por meu rosto enquanto me confortava no abraço dela. Pela primeira vez em algum tempo senti minha mente realmente calma sem usar a graça da minha Senhora para me ajudar, deixei que mais lágrimas descerem e a cada uma que deixava meus olhos eu sentia meu peito ficar mais leve, o carinho que a senhora Glória fazia em minhas costas também me deixava mais leve. Me desculpa mãe, pai… eu vou aceitar isso, eu vou melhorar.
Eu sei que vocês nunca me deixaram realmente.
Minutos se passaram no silêncio do sótão, Dona Glória começou a cantarolar uma música suave ainda acariciando minhas costas. Comecei a acompanhar sua música, cantarolando mais baixo apenas como um complemento para ela, nós duas cantamos por algum tempo, uma complementando outra conforme o tempo passava e parecia apenas um convite para continuar nosso dueto de músicas. Um som roubou nossa atenção, paramos de cantarolar e coincidentemente o som que estava vindo do nosso lado também parou.
Me virei para ver Samuel um olhar envergonhado, as marcas negras que emolduravam a cicatriz em seu rosto que descia para bochecha esta mais ressaltada pelo vermelho da vergonha. Ela estava com uma das peças que seriam nossos futuros anéis de Ordália e uma lixa na outra, pelo som que estava soando ele provavelmente estava lixando devagar para não chamar nossa atenção. Dona Glória sorriu esticando uma de suas mãos para acariciar o cabelo de Samuel, ela me liberou de seu abraço, mas passou as mangas de seu belo sobretudo para enxugar minhas lágrimas.
— Desculpa… eu tentei fazer baixo pra evitar atrapalhar vocês — Samuel disse ainda envergonhado.
Notei a semelhança que ele tinha com o pai, os longos cílios e lábios e dedos finos junto a alguns outros detalhes efeminados que dava a ele um rosto gentil, tudo isso era equilibrado com um toque de excelência que com certeza vinha da sua mãe. A cicatriz que emoldurava seu olho direito descia ate sua bochecha, a cor vermela escurecida emoldurada pelas marcas negras do mural, sua cicatriz não poluia sua aparencia e nem a marca em sua testa fazia parecer que seu rosto estava sobrecarregado, as pequenas manchas escuras abaixo dos olhos mostrava um traço que notei em sua personalidade. Ele era bonito, uma mistura fofa entre seu seu rosto gentil e seu carisma, eu gostei dele.
— Tudo bem, a conversa já tinha acabado, o que tá fazendo? — perguntei.
Seu olho verde musgo se estreitou antes dele esticar sua manga e usar sua manga para limpar uma parte ainda úmida do meu rosto, me mantive serena mesmo com a vergonha que pulsou em mim.
— Eu estava começando a lixar, os anéis se adequam ao tamanhos dos dedos do portador de forma mágica, então só é necessário começar o lixamento para colocar os dedos, inserir as escritas e tirar o excesso de metal, depois vem a parte dos rituais que ainda estou lendo — ele falava de uma forma que parecia fácil entender.
A Dona Glória se levantou e colocou a mão nas nossas cabeças, nós dois olhamos para sua feição tranquila e levemente preguiçosa.
— Continuaremos amanhã, Samuel, acompanhe a nossa linda Convidada até o ponto e sim, eu deixo você ler o livro se prometer for dormir cedo, mas os anéis ficaram para amanhã, quanto a você, Maya, leve o livro e se tiver alguma dúvida, traga elas para mim amanhã, depois de amanhã, quando você quiser, você é bem vinda quando quiser, Florzinha.
Saber que eu precisava ir doía, mas saber que era bem vinda me consolava, Sammy sorriu para mim, um sorriso meigo e fofo. Ele se levantou e pegou minha mão para me puxar enquanto eu tentava agarrar o livro, nos aproximando da escada de entrada e saída que já estava aberta, Samuel foi primeiro e um chamado da Dona Glória me fez olhar pra ela que estava a poucos passos de mim, seu rosto estava fraterno me encarando em silêncio. Ela mexeu no bolso do seu sobretudo, reconheci assim que vi uma corrente de cor dourada opaco com um suporte pouco maior que uma moeda da mesma cor da corrente com uma pedra circular pálida do tamanho de uma moeda dentro do suporte.
Meu colar.
— Você nunca precisou disso pra controlar seus pensamentos assim como o Sammy nunca precisou de uma venda, a Dama nos ensina, mas quando somos teimosos, ela acha um outra forma pra te mostrar do que você, só você, é capaz — ela disse se aproximando de mim.
Quando ela estava na minha frente, ela pegou minha mão para deixar o colar e a embrulhou em suas duas mãos ainda me olhando com carinho.
— Espero te ver amanhã, Florzinha.
Ela me abraçou rapidamente antes de se virar em direção a bancada onde estávamos, fiquei estática por alguns segundos apenas encarando o colar. A graça da minha senhora nos ajuda a manter o equilíbrio, a controlar nossas emoções e corpos, todas as vezes que eu pensava estar usando ela para me controlar, eu apenas me controlei sozinha achando que era ela? A senhora Glória estava arrumando algumas coisas, eu tinha tantas perguntas, mas as guardei para o próximo dia.
Samuel estava esperando brincando com Felícia empoleirada em seu antebraço, quando me viu, o seu sorriso ficou um pouco maior. Ele pegou minha mão e começamos o caminho para sair de sua casa, ele começou a falar sobre o livro enquanto descíamos a escada para o térreo, eu gostava do jeito que ele explicava as coisas e ver ele tentando esconder sua animação era divertido de assistir. Eu gostaria de ter falado com você antes ao invés de ter sentido medo, teria sido incrível.
De qualquer forma, estamos nos falando agora, isso é o que importa.
Durante a parte da estrada baldia coberta por árvores, comecei a tirar dúvidas já que havia parado minha leitura na página cinquenta e cinco. Samuel disse que os anéis são feitos de um mineral especial, um que cresce apenas em terras onde a energia é presente de forma natural como um bioma oculto, todos os processos de trabalhar nele e investir nosso tempo e sentimento nele faz parte do processo de criação e ele disse que é a parte mais importante. Quando chegamos no ponto, nos sentamos para continuar conversando, ele me atualizou sobre muitas coisas do Códice da Ordália e também compartilhou outras sobre si.
— Tempestade! — Uma voz veio do teto do ponto, rouca e feminina.
Felícia pousou entre nós, movi minha cabeça para cima olhando as nuvens se fechando e deixando o céu escuro ainda mais escuro. Em minutos a chuva começou a cair sobre a terra, o ventos gelados carregando gotas de chuva nos acariciando, olhando para frente, a visão das ruas da cidade vazias e iluminada pelos postes de iluminação enquanto a chuva caia era confortável, olhei para Samuel que estava com observando as poças que se formavam no bosque público atrás do ponto. Nós nos entreolhamos, tinha certeza que nossos pensamentos eram iguais quando seu sorriso cresceu um pouco.
— Minha mãe pode esperar um pouco… que brincar nas poças? —ele perguntou se levantando e me oferecendo sua mão.
Sorri aceitando sua mão e o puxando para fora do ponto entrando embaixo da chuva.
— Sim!
Corremos pela rua para chegar ao bosque, pulamos nas poças que cresciam a cada minuto que a chuva caia mais e mais, correndo entre as árvores para brincar de pega paga. Felícia estava empoleirada em uma árvore nos observando, Sammy jogou água nela e ela começou a voar atrás de nós, nos perseguindo enquanto jogávamos água um no outro também, em meio a corrida me escondi momentaneamente de Sammy para recuperar o fôlego, talvez pelo cansaço ou a água nos meus olhos, mas por um momento vi a silhueta de uma mulher antes de piscar e ela sumir. Hm… Fui surpreendida com Sammy aparecendo ao lado da árvore com seu sorriso meigo e seus dois olhos abertos.
Espero que a senhora Glória espere um pouco mais…