Volume 2
Capítulo 32: Cerimônia II
[Domingo, 11 de setembro de 2412, 14:03 da tarde]
Samuel Merial
Deixei a energia correr pelo meu sangue, encher cada pequeno vaso e músculo como se estivesse criando raízes, assim como minha mãe nos orientou a fazer. Nas muitas horas em que minha mãe explicou para mim e Maya o funcionamento dos elementos e das energias como um todo, ela também explicou a forma para aumentar a afinidade de nossos corpos com esses elementos e a própria energia em si. Enraizar, encher cada canto dos nossos corpos com energia o tempo inteiro. Conforme seguimos nossos dias, a energia e a carne se misturam com naturalidade.
As disciplinas ainda deixam minha cabeça zonza.
Estava sentado na mesma cadeira com Maya ao meu lado e nós dois em silêncio. Minha mãe estava cantarolando uma música com um livro aberto nas mãos. O ambiente iluminado pelas lâmpadas amarelas da área restrita era acolhedor para mim enquanto aprendia essas coisas que poucas pessoas sabiam no mundo. Fechei meus olhos para me concentrar na formação das raízes, manter o fluxo interno constantemente em movimento era algo que requer uma certa atenção. Puxei mais energia da Fie do relógio em minhas mãos, enchendo mais o meu corpo com energia sob meu domínio mental.
É como controlar um córrego, cansativo.
A energia que eu absorvia pelas minhas mãos logo era impregnada pelo meu domínio. Assim como minha mãe ensinou, usei o movimento do meu sangue para movimentar a energia pelo meu corpo. Cada pequeno vaso sanguíneo, cada fibra dos meus músculos, veia, artérias ou osso estava com energia em seu meio, era como conhecer meu corpo de forma mais íntima. Quando tive a certeza de que estava pronto, comecei a Integração, que era fazer a energia se fixar mais fundo no meu corpo. Uma queimação surgiu nos músculos e ossos, alguns pontos queimavam mais que outros e essa dor me fez tremer.
— Concentre-se no que está fazendo, Sammy, a dor logo irá diminuir. — Mesmo com meus olhos fechados, eu conseguia imaginar que feição minha mãe tinha em seu rosto.
A queimação fazia minha concentração bambear, mas meu foco continuava firme mesmo com as mensagens dolorosas que meu corpo enviava. Se passando os minutos mantendo meu foco, a dor diminui para uma queimação desconfortável, a Integração deixou de ter que estar em minha mente para que a energia continuasse a se infiltrar profundamente ao meu corpo, a energia já havia entendido o que fazer e tudo que eu precisava era manter o fluxo interno cheio e em movimento. Abri meus olhos para espiar Maya, seu rosto era uma máscara de concentração serena e ela nem mesmo grunhiu que nem a mim.
Movi minha atenção para as costas da minha mão, as marcas dos três elementos junto às demais runas e outras escritas estavam adormecidas. As regalias são o conhecimento já formado que pode ser absorvido e fica dentro de nós, mas quando nós o absorvemos, nasce um caminho até esse conhecimento. Minha mãe disse que esse caminho são os adornos. Minha mãe disse que os adornos são uma representação para ajudar na concentração, os verdadeiros conhecimentos estão fundo dentro de nós e esses adornos são apenas um atalho para chegar mais rápido até eles e alcançar sua essência.
E também disse que: se alguém perde o membro onde as marcas estão, elas surgem de novo em outra parte do corpo… isso me assustou um pouco, admito que parecia um aviso.
Me concentrei no adorno da essência e as mudanças na minha energia começaram a surgir, minhas capacidades e pensamentos mais claros junto aos meus sentidos. Como antes, essas informações vinham com a mudança sutil no meu Sine, os três elementos são as conexões inatas que nós temos com o oculto. Da conexão direta com o espírito vem a essência, da conexão direta com o astral vem o cosmo e a conexão com a realidade vem o real, tudo isso sai do Sine que vem direto da alma. O Sine é a forma bruta da energia dos seres vivos, e dentro de sua formação existem os três elementos que fazem parte da alma.
Amplificando a essência em meu Sine, eu conseguia sentir essa conexão com meu espírito mais claramente e também podia sentir isso nos outros. Uma coisa que aprendi também com a Minstra é controlar minha capacidade de ouvir os pensamentos das pessoas, isso me incomodava antes, mas com o tempo e treino aprendi a fechar minha mente para as vozes dos outros. Agora eu entendo, os pensamentos são parte da alma e a essência é o elemento mais próximo dela. Eu posso ouvir a essência das outras pessoas e, com isso, seus pensamentos.
Além dos meus pensamentos, minhas ações também ficavam mais rápidas, vendo que os pensamentos são parte da alma, os instintos também são parte dela. Quando eu sequer pensava em fazer algo, na verdade, antes mesmo de pensar em fazer algo, esse desejo já tomava forma e meu corpo agia. Quando se quer algo, você pensa e depois age, mas com a essência amplificada esse intervalo é reduzido. Amplificar a essência com o adorno traz uma sensação natural para mim, mas eu estaria mentindo se dissesse a mesma coisa do real.
Deixando o adorno da essência sair do meu foco, comecei a dar atenção para o adorno do real e a ampliar esse elemento no meu Sine. Minha energia começou a oscilar e vibrar dentro de mim, agitada e animada como uma criança. Essa agitação constante me dava calafrios por todo o corpo e uma vontade estranha de sair andando ou apenas me mexer muito. Meus pensamentos também ficaram agitados e inquietos com isso. O real é a mudança constante para tudo que existe, a transformação de tudo do plano terreno ao outro lado… o caos.
Isso é muito agitado para mim.
Deixei de amplificar o real para que a inquietação sumisse com o elemento. Minha mãe disse que o ponto menor sempre será um sentimento estranho e o médio será mais natural. Focando no adorno do cosmo, o elemento começou a se ampliar e com ele um silêncio perpétuo em meus pensamentos e na minha energia. Era uma sensação tranquila e serena, onde eu podia pensar livremente no silêncio do elemento e minha energia se comportava de forma lenta e obediente. O cosmo é a imensidão infinita do outro lado astral, o silêncio perpétuo do desconhecido do universo.
É… pacífico.
Passei alguns minutos pensando no silêncio do elemento antes de parar de alimentar o adorno, abri meus olhos já esperando que Maya tivesse terminado o início da integração. Olhei para minha mãe, que ainda estava entretida em seu livro, espiei Maya para ver que seus olhos estavam abertos e encarando sua mão acima da mesa. Ela tinha uma feição serena, seus olhos turquesa vividos tinham um brilho de curiosidade encarando a própria mão. Ela parece ser mais forte que eu, a porta pesada ela apenas empurrou com uma mão e nem mesmo soltou um som de desconforto agora… legal.
Um estalo de dedos chamou minha atenção de novo para minha mãe, seus olhos caramelos estavam em nós dois como uma professora. Ela estendeu a mão que usou para estalar para nós, a princípio sua mão estava feita com exceção das marcas do mural, porém, aos poucos, algo começou a se mover acima de sua palma, uma massa branca translúcida como uma névoa de flocos que assumiu a forma de uma esfera. A esfera de névoa incolor se contorceu e ganhou cor, sendo comprimida e ganhando tons escuros no processo.
Ela fechou sua mão e tudo que podia sentir era uma ansiedade latente em descobrir o que estava por vir. Quando ela reabriu a mão, essa ansiedade se transformou em curiosidade. Em sua mão estava uma flor com pétalas negras e vermelhas, assisti como o talo verde da flor estava crescendo para que minha mãe a segurasse entre os dedos, observei, quase incrédulo e extremamente perplexo, vendo o quão pouco sabia das artes esotéricas. Minha mãe colocou a flor dentro de um dos copos na mesa e tinha certeza de que os olhos de Maya estavam fixos nela, como o meu.
— Agora que os preparativos estão prontos, vamos entrar nas disciplinas, elas são divididas entre funções e foram criadas para cumprirem um objetivo, elas são: a Marionete, o Esmero, a Tesoura, a Cortina, o Tear e o Metamorfo. Cada disciplina possui um conhecimento único dentro de si, ao contrário dos elementos que existem em vocês, as disciplinas emprestam suas capacidades para seu Sine, isso é chamado de Aspecto e cada disciplina tem o seu.
Levantei meu olho para ver minha mãe colocando algo em cada dedo.
— Os adornos são a passagem rápida para o conhecimento dentro de nós, os adornos das disciplinas funcionam exatamente da mesma forma, mas eles fazem com que sua energia ganhe o aspecto da disciplina. A cerimônia foi para vocês absorverem as seis disciplinas e seus adornos, junto aos adornos de ampliação dos elementos, mas por fim, vamos ao que importa; as disciplinas também são ligadas aos elementos e reagem a eles, se alimentando e se fortalecendo.
Ela terminou de colocar cinco anéis de bronze em cada dedo da mão direita.
— A essência fortalece a Marionete e o Esmero, o cosmo fortalece a Tesoura e a Cortina e o real fortalece o Tear e o Metamorfo. A cerimônia revelou o elemento de maior conexão de vocês e também o aspecto da disciplina que mais vai se ambientar às suas energias. Para o Samuel, é a disciplina da Marionete, assim como eu e para a nossa convidada fofinha é a disciplina da Tesoura... Agora, basta experimentar a sensação e conhecer as disciplinas e o que seus aspectos podem fazer. Perguntas?
Houve um silêncio aterrador conforme eu percebia que minha mãe estava muito absorvida em sua explicação para realmente explicar. Eu e Maya nos entreolhamos e nossos olhares de confusão se conectaram. Usei o silêncio para reparar nos anéis que minha mãe colocou nos dedos. Cada anel tinha runas e símbolos negros gravados no metal bronze. Esses símbolos davam a volta no contorno do anel e terminavam na parte de cima com um símbolo que tenho certeza de que é um sigilo. As disciplinas nos emprestam suas capacidades, certo? Os adornos são uma passagem para esses conhecimentos, sim, então o que são esses anéis?
Sinto que já os vi antes…
— Senhora… o senhor Simão me disse uma vez que é impossível criar vida, digo, como os animais ou pessoas usando o outro lado e suas energias, então eu queria perguntar: como a senhora criou essa flor, digo, as plantas têm um tipo de vida, né?
Minha mãe apoiou a cabeça nas mãos e seu sorriso pequeno aumentou um pouco.
— Ele está certo, mas pela metade, dizer que é impossível criar uma vida real é mais fácil do que explicar os meios de fazer isso. O fato é que: não é impossível, mas é um tipo diferente de vida do que você vê, podemos compartilhar nossa essência e estimular a vida já existente… mas minha pergunta agora é; de que flor você está falando? — Ao terminar de falar, seu pequeno sorriso se tornou brincalhão.
Meus olhos foram para onde a flor estava e apontei meu dedo prestes a dizer “essa aqui”, mas quando olhei o copo só havia canetas dentro dele. Passei meus olhos por todos os copos com caneta e até olhei debaixo da mesa, pensando que minha mãe havia escondido em nossa desatenção. Minha mandíbula afrouxou ao encarar o copo onde eu juro que havia uma flor com pétalas negras e vermelhas, tudo que fiz foi olhar boquiaberto como Maya também estava fazendo. Eu vi a energia na mão dela e a flor, eu tenho certeza… ou ela queria que eu visse isso? Talvez…
— A mente é algo complexo, pessoas com maior conexão com a essência, como eu e Sammy, podemos nascer com um dom especial e raro, a capacidade de ouvir os pensamentos e até influenciar os pensamentos de outras pessoas, a singuridade da telepatia é rara e normalmente algo hereditário… talvez houvesse uma flor, talvez eu quisesse que vocês vissem uma flor, a questão é como eu fiz vocês verem essa flor?
As engrenagens da minha cabeça começaram a rodar em busca de uma resposta. Eu ser um telepata deveria me dar uma pista da resposta, mas tudo que me vem à mente é a dúvida de como ela fez isso. Minstra me disse que a telepatia é como ser capaz de traduzir a estática em voz e é muito mais fácil ouvir do que influenciar, mesmo eu tendo dificuldade em ouvir a mente de algumas pessoas, como meu avô, que tem uma mente blindada, e meu tio, que só sai ruídos. Ela ampliou o dom com o elemento, acho que ela usou o aspecto da disciplina também.
— Marionetes são feitas para serem manipuladas, eu li que os nomes dizem indiretamente o que está dentro de cada disciplina… a Senhora aumentou a capacidade do dom com o aspecto da Marionete ou com o elemento — falei após os segundos em silêncio.
Seus olhos vieram para mim e eu tinha um orgulho discreto neles.
— Está certo, é muito mais fácil um telepata ler a mente de alguém do que influenciar, mas com esforço e estudo é possível aprender a usar dons inatos de maneiras mais complexas… agora chega de enrolação e perguntas, mergulhem na conexão das disciplinas, irei preparar o último passo após isso — minha mãe disse, se levantando da cadeira.
Enquanto minha mãe sumia entre as estantes de livros da área restrita, a curiosidade sobre esse último passo ardia dentro de mim. Emma sempre disse que minha mãe era uma professora que gostava mais de aulas práticas do que apenas conversar. Minha mãe deixava eu assistir suas conversas com a Emma, mas nunca deixava eu assistir às aulas que as levavam ao sótão. Minha atenção foi chamada para Maya, sua cabeça estava baixa e a expressão em seu rosto mostrava que ela estava incomodada com algo.
— Tudo bem? — Cutuquei seu ombro levemente.
Ela parecia com vergonha de olhar para mim.
— Sim, é que… parece que eu estou roubando um momento seu e da sua mãe, sabe? Acho que o senhor Simão não deveria ter me intrometido em algo tão pessoal assim. — Sua voz saía como um cochicho e suas bochechas brancas com sardas estavam avermelhadas.
Um riso me escapou… acho incrível essa capacidade dela.
— Eu gostei de ter você comigo, acho que seria meu tio, mas ele… — As palavras me escaparam — eu prefiro você, eu gostei de dividir esse momento com uma amiga, você gostou?
Ela ergueu a cabeça para me encarar, suas bochechas voltando lentamente à cor branca enquanto um sorriso pequeno aparecia em seu rosto.
— Sim, eu gostei muito, obrigada… O que houve com seu tio?
Minha boca se abriu para responder, mas lembrei que nem mesmo eu sei o que está acontecendo com ele ou onde ele está e tudo que saiu foi um som de ar.
— Uma missão, parece que foi repentina, não sei muito mais que isso, desculpa. — Minha cabeça foi recebida pela memória da minha mãe me dizendo isso hoje de manhã.
Houve silêncio antes que ela recitasse um mantra em uma língua que nunca ouvi, mas reconheci cada palavra que saía de sua boca. A radiância pulsou dentro do meu corpo pelo meu fluxo interno e até mesmo nas raízes profundas que estavam sendo formadas em meu corpo. Cada palavra fazia a radiância pulsar mais forte e cada pulsação diminuía as queimações causadas pelo enraizamento e também lavava minha mente de preocupação. Quando ela parou de recitar, as dores em meu corpo eram apenas de uma coceira e a preocupação era diminuta.
— O Senhor da Sabedoria da Umbra, a Alvorada, escolhe apenas aqueles com o desejo de proteger tão intenso quanto a luz e infinito como a escuridão. Tenho certeza de que seu Tio está bem, Sammy… — ela disse com sua feição suavizada e um sorriso gentil.
— Obrigado, May.
Nossos olhares se desencontraram conforme achávamos uma posição confortável na cadeira para começar a mergulhar. Minha cabeça confusa estava lúcida para o objetivo e apenas poucas dúvidas restavam. Fechei meus olhos buscando a memória que me causou o desequilíbrio mental, minha mãe me dizendo que meu tio havia saído, mas ela parecia querer dizer mais do que apenas isso. Na verdade, eu podia sentir raiva em seus pensamentos enquanto falava dele, mas no final houve um sentimento de angústia antes de dizer que ele foi convocado para uma missão. Ela mentiu para mim, ela sempre sente angústia ao fazer isso, ela estava com raiva dele e mesmo assim o protegeu.
Ele saiu atrás daquilo…
Ela já disse para mim o quanto ele se afetou quando meu pai se foi, ele saiu depois do meu aniversário, na verdade no meu aniversário, para ir atrás daquilo. Eu realmente não consigo sentir raiva, tudo que eu conseguia sentir ao pensar nisso era medo, medo de perder ele também ou de ele nunca voltar por achar que eu ficaria bravo com isso… fiz o que parecia ser tão natural agora do que jamais foi, deixando a radiância correr por meu corpo apenas para tentar enviar algo. Alinhando meus pensamentos, fiz minha voz interna falar para a energia da herança.
— Apenas volte para casa, tio.
Deixei a mensagem ser levada pela radiância conforme sua grande quantidade retornasse ao meu fluxo. O veio de energia dourada corria por meu corpo, que me permitia trazer mais energia da herança. Estava mais nítido por causa do enraizamento. Limpando minha mente das preocupações, deixei a energia do meu fluxo passear pelo meu corpo. A cada segundo que se passava, minha mente estava mais limpa das preocupações e do medo, até que houve o silêncio total. Meu fluxo, minha energia, minha herança, apenas isso agora.
Visualizei sentindo a energia em meu corpo cheio de energia, ela se manifestando como raízes em minha carne e vasos, essas raízes me ajudavam a mover energia dentro de mim. Essas raízes partem do meu coração até o cérebro e as plantas dos pés. Conforme o tempo passava, elas ficavam mais nítidas e mais energia eu podia deixar passear por elas. As raízes que visualizei como dourado eram as que movimentavam a radiância da herança em meio às que movimentavam minha energia pura. Sangue, carne, ossos e tudo se misturava à energia correndo por minhas veias.
Basta buscar os adornos, a conexão.
Visualizando os adornos dos elementos nas costas da minha mão direita, eu podia ver que cada adorno era ligado a uma raiz que ia ao meu até meu coração. Quando me concentro em um deles, essas raízes carregam os elementos e os ampliam, basta buscar as raízes das disciplinas que eu senti antes… comecei minha busca seguindo cada pequena raiz que se espalhava pelo meu corpo, talvez minutos se passaram até eu encontrar as raízes certas. Antes eu via isso como fios, mas agora, com o enraizamento, eu vejo que são os caminhos para as disciplinas.
Cada raiz terminava em um adorno em minha coluna que estava conectado às raízes dos elementos em minha mão. Comecei a mover a energia e sentir mais as raízes das disciplinas. Cada adorno me dava um sussurro sobre quem era, assim como nos elementos. O adorno que mais sussurrava para mim era o que carregava o nome da Marionete. Comecei a mover energia por ele e deixei que minha consciência fosse levada junto à energia ao mergulho. Minha energia tremeu quando meu mergulho me trouxe um símbolo complexo, o adorno em minha coluna se aqueceu de forma confortável conforme eu me aprofundava nos conhecimentos dele.
A Marionete possui os conhecimentos de manipulação e controle sobre tudo que é real, astral ou vivo.
Os conhecimentos vieram junto ao aspecto que estava no meio da minha energia, informações que o aspecto me revelava surgiam em minha mente em meio aos pensamentos. Meu dom de telepatia, uma coisa que faço e controlo como um instinto por ser algo tão íntimo, eu foquei nele, minha capacidade de pensar e montar cenários tão reais em minha cabeça graças a como minha mente é mais forte que uma mente comum. Quando eu focava nisso, o aspecto reagia, me dando mais controle sobre minha própria mente. Eu queria o silêncio e assim aconteceu, minha mente limpa de qualquer desejo além do meu.
Abri meus olhos enquanto ainda deixava o aspecto da Marionete ativo, olhei para o relógio, minha Réquia que ganhei tinha um brilho sutil nos ponteiros. Por alguma razão, meu desejo de sugar a energia que saía da minha Réquia fez com que a energia que eu estava sugando constantemente com minha mão esquerda desviasse e começasse a ir para minha mão direita centímetros acima do relógio. Comecei a moldar esse desejo, querendo que a energia se esticando rodopiasse. Meus pensamentos silenciosos sabiam o que fazer, o aspecto me explicava em sussurros como fazer.
O calor confortável em minha coluna me deu uma ideia para ser testada, fechei meus olhos novamente e comecei a puxar mais energia do relógio. Quando visualizei essa energia entrando, ter controle sobre ela era muito mais fácil com o adorno da Marionete ativo, meu domínio mental sobre as energias dentro de mim era absoluto, comecei a estimular as raízes dentro de mim com a Fie diluída, meu Sine e a radiância, a queimação oscilava e restava apenas uma sensação desconfortável pelo meu corpo. As raízes aos poucos ficavam mais nítidas em minha mente, podendo passar mais energia por elas e fazer com que se desenvolvesse cada vez mais.
Enquanto minha atenção era para desenvolver e melhorar meu enraizamento, uma leve tontura fez minha concentração oscilar e meus dois olhos se abrirem. As cores eram mais fortes e intensas, as informações que minha mente recebia ficavam mais complexas e detalhadas conforme mais tempo o aspecto permanecia ativo. Eu podia sentir que estava sendo conhecido, analisado e parecia que cada minuto com o adorno ativo mais coisas o aspecto queria me mostrar. Uma sensação molhada saindo pelo meu nariz me levou a tocá-lo, a ponta do meu dedo ficou úmida e, quando olhei, era sangue.
Quanto tempo meu aspecto está ativo? Acho que… uns dois minutos.
— Foram trinta minutos, Samuel, você precisa descansar, desative o adorno. — A voz de Minstra apareceu em minha cabeça de forma nítida e clara, podia sentir o fio radiante de sua presença saindo do meu coração e se movendo pelas raízes até meu cérebro.
Fazendo como ela disse, parei de focar no adorno e comecei a sentir o aspecto deixando meu corpo, voltando lentamente para meu fluxo e seus sussurros foram silenciados. Fechei meu olho direito quando a sensação difusa na minha visão começou, tentei me escorar na mesa para esperar a sensação de tontura passar, mas algo fez com que minha mente um pouco adormecida acordasse em um pulo quando coloquei um pouco do meu peso na mesa e a senti abaixar. Por reflexo, me inclinei de volta para a cadeira enquanto o som de madeira rachando começou a ecoar quando a mesa se quebrou do nada e foi reduzida ao chão.
Olhei para o lado e vi Maya com uma feição apavorada e suas mãos esticadas onde deveria estar a mesa. Ela virou o rosto para mim e vi o mesmo sangue escorrendo de seu nariz em seu rosto apavorado. Suas bochechas começaram a ficar vermelhas junto ao resto de seu rosto e ela desviou seu olhar do meu e focou seus olhos para o outro lado. Eu observei a mesa com atenção, sentindo vestígios de energia com a presença da Maya em meio a madeira com rachaduras. Como ela quebrou uma mesa feita de carvalho? Antes que eu pudesse pensar mais, a voz de Minstra surgiu de novo.
— A disciplina da Tesoura é a remodelagem, podendo mudar as condições de algo com seu aspecto… provavelmente ela estava absorvida demais, como você. — Havia uma espécie de bom humor ou graça em sua voz.
Uma outra presença escorregou do meu coração e subiu pelas raízes até minha cabeça.
— Lembro das crianças tendo que receber um amuleto porque usavam as disciplinas para aprontar… bons tempos. — A voz de Elmir tinha uma óbvia diversão ao invés da graça discreta da Minstra.
Ri, encarando a mesa destruída, os vestígios de energia dentro dela estavam se desfazendo lentamente na atmosfera, apenas restando pequenas concentrações muito profundas na madeira. Um bater de asas seguido por um leve peso em meu ombro me fez olhar para Felícia, que estava girando a cabeça de um lado a outro. Ela beliscou minha orelha antes de saltar e bater as asas algumas vezes e ir para Maya. Maya ainda tinha seu rosto completamente vermelho e estava sentada de lado para evitar olhar para mim ou a obra de arte que ela havia feito com a mesa. Ela começou a acariciar Felicia.
— Eu deixo vocês sozinhos por alguns minutos e conseguem quebrar uma mesa de carvalho? Estou… orgulhosa. — A voz da minha mãe veio de trás e vi de canto ela se aproximando entre mim e Maya.
Maya olhou para minha mãe com suspeita e eu apenas aceitei o elogio. Minha mãe ofereceu um pano para mim e Maya, enquanto dava uma volta na mesa, sentou-se na cadeira em que estava antes. Usei o pano para limpar o sangue que saiu pelo meu nariz e vi Maya fazendo o mesmo. Reparei apenas após limpar meu nariz que isso havia acontecido por causa do aspecto. Eu li que usar a energia de formas muito complexas exerce estresse no corpo, mas que isso melhorava com o tempo. Eu perdi até mesmo a noção do tempo, mas em nenhum momento eu senti dor por usar o aspecto.
Quando o aspecto estava ativo, na verdade, é que era confortável e até mesmo me fazia sentir bem, apenas parecia que minha energia tinha uma nova capacidade. Talvez essa familiaridade seja porque é a disciplina com a qual eu mais tenho afinidade. Manipular a minha própria energia e até mesmo influenciar a Fie pura que saía do relógio era muito mais fácil. Meus pensamentos e sentidos, eu podia controlar tudo de forma mais fácil com o aspecto ativo. Observei minha mãe, que estava mexendo nos anéis em seus dedos, seu olhar preguiçoso estava levemente animado.
— Acredito que vocês tenham entendido as suas disciplinas com maior afinidade, o resto delas será explicado com o tempo, mas já sabem ao menos como funciona o aspecto das disciplinas… agora está na hora de vocês partirem para o último passo da cerimônia; os Anéis da Ordália, eles permitem controlar a nossa entrada e saída de energia para fora do corpo, mas para nós, Adeptos, eles são um dos vínculos com nossos Patronos e isso nos deixa guardados. Poucos veem a utilidade real dessa ferramenta e por isso poucos a usam, muito poucos na verdade, mas para nós…
Ela encarou seus anéis com apreço antes de continuar.
— Sammy foi mantido no escuro sobre os cinco lares por minha causa, mas tenho certeza de que você sabe alguns dos nossos ritos, Maya… Os anéis são um deles. Criar um anel é se conectar com sua fabricação, criar algo que só funciona para você e para quem você permitir que ele funcione, isso demonstra capacidade, controle e acima de tudo: maturidade. Uma ferramenta poderosa que maximiza suas capacidades e mostra que você é capaz de muito sendo tão pouco. Você vê isso como fraqueza, mas eu e os outros poucos portadores de anéis vemos isso como força... Vocês começaram a criar seus anéis e com isso vamos entrar nos ensinamentos mais profundos do esotérico, alguma pergunta?
Novamente houve silêncio, dessa vez minha mente estava completamente em branco sobre esses anéis, apenas abrindo novas dúvidas. Provavelmente eu já os vi em algum lugar, acho que vi meu avô usando também, mas devo ter deixado passar sendo apenas anéis normais. O que me chamou atenção foi ela dizer que escondeu os cinco lares de mim, tenho certeza de que teve um motivo, mas, ao mesmo tempo, me pergunto o porquê. Minha mãe se levantou e eu e Maya a seguimos, nos levantando da cadeira. Ela começou a caminhar em direção às estantes antes que Maya dissesse algo.
— E… a mesa? — A voz de Maya tremeu.
Minha mãe se inclinou um pouco para vê-la, seu sorriso sendo astuto.
— Eu já esperava que algo se quebrasse, sinceramente estava esperando isso do Sammy, mas foi uma surpresa divertida ver que foi você… está tudo bem, alguém já está vindo para dar um jeito nisso.
Fiquei tentado a perguntar o porquê de ela esperar que eu quebrasse algo, mas Felícia pousando no meu ombro me fez mudar de ideia e apenas segui-la junto com Maya. Passamos pelas muitas estantes até chegar na mesma escada caracol que dava na sala da cerimônia, a mesma ainda estava iluminada pela lareira e várias velas, a atmosfera com cheiro de ervas e especiarias, o grande círculo no chão estava limpo e sem as tigelas com oferendas. Minha mãe continuou sua caminhada até a porta, sem dar tempo para eu continuar a olhar a sala.
A porta dava no seu escritório, uma mesa ocupava o centro da sala e cadeiras ao seu redor, armários contra as paredes e de frente para a janela estava sua escrivaninha. Ela parou no espaço que havia entre a porta e a mesa, esticou a mão direita onde seus cinco anéis estavam e disse algo na mesma língua que Maya usou para recitar o mantra. Meu entendimento foi imediato, mas o que chamou minha atenção foi um pulsar de energia invisível que seus anéis emitiram antes que a escada para o sótão descesse. A escada se desdobrou e no teto a abertura se fez para que pudéssemos subir. Minha mãe foi primeiro seguida por Felícia e Maya.
Então, era por isso que ele não me deixava subir.
Comecei a subir a escada e entrar em uma atmosfera agradável, o cheiro de ervas medicinais encheu meu nariz junto a uma brisa confortável que me abraçou. Olhei ao redor e também vi a passagem começando a se fechar enquanto a escada subia. O sótão era muito maior do que um espaço apertado entre o teto e o forro que eu imaginava, era dividido por uma parede que tinha um arco que permitia passagem de um lado para outro sem nenhuma porta, apenas uma cortina antiga. Os muitos armários grandes, baús e estantes cheias de livros, havia plantas que estavam amarradas ao teto e ficavam penduradas no ar.
Segui minha mãe, que estava de frente para duas janelas redondas que davam vista para a lateral da casa e os aviários. A luz escura do final da tarde que entrava pelas duas janelas banhava uma bancada grande cheia de ferramentas abaixo delas. Minha mãe puxou duas das quatro cadeiras que estavam encostadas na bancada e eu e Maya nos sentamos. Além das muitas ferramentas, havia dois livros com capa de couro com muitos ornamentos um pouco semelhantes. Passos vieram do arco que dava à outra parte do sótão, a cortina da passagem balançou quando a pessoa se revelou.
Emma.
A pele parda e os olhos verdes cristalinos foram a primeira coisa que entrou em minha visão, seu cabelo liso com algumas tranças realçava sua beleza. Enquanto ela se aproximava com uma caixa ornamentada nas mãos, percebi uma sensação estranha ao olhar para ela, seus olhos verdes pareciam de certa forma brilhar suavemente de forma perpétua de uma maneira que eu nunca tinha visto ou reparado que eles faziam isso. Quando ela estava mais próxima ao lado da minha mãe, reparei que o brilho sutil em seus olhos era real.
— Finalmente posso deixar de me esconder, seu mural é lindo, Corvinho — Emma disse com sua voz suave antes de virar sua atenção para minha mãe.
Minha mãe pegou a caixa nas mãos de Emma e colocou na bancada entre mim e Maya. A caixa de madeira escura ornamentada se abriu com um clique. O interior da caixa era de veludo e estofado na parte de cima e em baixo para guardar círculos de um metal bronze que lembrava um anel ainda, só que ainda em um estado bruto. Havia dez dos anéis de bronze incompletos e minha mãe colocou cinco das peças à minha frente e cinco na frente de Maya antes de fechar a caixa e entregar de volta para Emma. Olhei as peças já entendendo o que teríamos que fazer com isso; criar nossos anéis.
— Primeiro leiam o livro, ele dará muitas respostas para as prováveis perguntas que vocês querem fazer… Quando vocês não estiverem trabalhando nos anéis, estarão estudando e mergulhando para aprenderem mais sobre as energias, mas por hora, apenas leiam e se familiarizem com o que vão trabalhar. — Minha mãe disse, indo em direção a uma cadeira acolchoada um pouco distante.
Minha atenção voltou para Emma para admirar os olhos dela. Busquei em seus olhos verdes a descoloração dourada ao redor da pupila, mas eles eram puramente verdes como cristais e com o brilho discreto que os deixava mais vivos. Lembrei-me das palavras da Minstra quando me explicou rasamente sobre os cinco lares. Os Áureos que prezam pela sabedoria, os Elipses que prezam pela virtude, os Lunaris que prezam pelo controle, os Tronos que prezam a coragem e por fim; os Druidas que prezam pelo equilíbrio.
— Minha mãe te pediu para esconder o quê? Além de todo resto? — Deixei minha pergunta com um óbvio toque de provação e fiz questão de que minha mãe escutasse.
Emma focou sua atenção em mim, um sorriso pequeno se formou e o brilho sutil de seus olhos aumentou por breves segundos antes de voltar ao estado sutil.
— Ela queria que você se divertisse antes de pular de cabeça da forma ansiosa que você sempre fazia quando algo estranho surgia… e ela me pagava em barras de chocolate para fazer as aves te bicar quando você se recusava a beijar a bochecha dela.
Maya deixou um riso escapar e muitas memórias comigo sendo perseguido pelas aves do aviário e correndo para os braços da minha mãe voltaram com um gosto amargo. Encarei o lugar onde minha mãe estava sentada de forma preguiçosa na cadeira acolchoada, um livro convenientemente cobria seu rosto enquanto as peças se encaixavam. Eu queria ter percebido antes a conveniência de recusar ser seu ursinho de pelúcia e uma situação surgia que me obrigava a ser. Foquei meu olho em Emma com meu melhor olhar zangado, mas seu sorriso apenas cresceu um pouco mais.
— Era fofo ver você brincando de pega a pega com os gaviões, as corujas sempre se recusaram a bicar você porque te acham fofinho… mas agora é melhor focar no livro, prestem muita atenção se quiserem aprender mais, esses livros guardam um conhecimento que até o nobres matariam para ter ao menos uma página. — Emma se levantou,acariciando a minha cabeça e a de Maya,e seguiu de volta para o outro lado do sótão.
Eu e Maya nos entreolhamos antes de olhar a bancada e as peças de bronze que seriam nossos anéis. As ferramentas eram diversas em tamanho e formas e minha atenção desceu para o material com o qual teríamos que trabalhar. Peguei uma das peças cor de bronze, tinha um cheiro estranhamente satisfatório e eu conseguia sentir que o metal emitia algum tipo de energia, muito sutil, mas eu consegui perceber isso, coloquei as cinco peças de lado e puxei o livro para ficar à minha frente. A capa escura de coura adornada com ilustrações em dourado opaco fazia do livro uma bela peça de arte.
— Você conseguiu sentir também? O metal emite um tipo de energia, com certeza não é um metal normal. — Compartilhei meus pensamentos com Maya, que estava analisando uma de suas peças.
Ela colocou as peças de lado para aproximar o livro de si.
— Nos códices mais antigos no templo, contam que em certos locais do mundo, onde o Véu é mais fino, a energia entra e causa modificações, transformando biomas ou animais em seres diferentes que podem coexistir com as energias do outro lado. O códice dizia que isso é a Vida Oculta e que existem muitas coisas no nosso mundo que reagem naturalmente com as energias… a Amazônia é dita como um desses lugares — disse, abrindo o livro que era muito semelhante ao meu.
Segui seu exemplo pensando em suas palavras, a vida oculta seria basicamente o que uma pessoa anormal seria, vida podendo interagir com o outro lado e paranormal naturalmente. Abrindo o livro, a folha de entrada tinha um nome junto a uma mensagem, as bordas da folha continham inúmeras runas que emolduravam a folha grossa de cor amarelada com as escritas em cor negra. Tentei ler as runas que emolduravam a folha, mesmo com meu entendimento baixo, fui capaz de traduzir levianamente as escritas que falavam sobre as energias.
“Ordália Moyo, a Primeira ArquiCinzeladora”
Virando a próxima página, as letras que eu sabia por experiência que eram escritas à mão enchiam a folha amarelada sem deixar um único espaço vazio. Dentro de mim, ver um livro tão misterioso e que parecia ser tão cheio de informações fazia meu corpo inteiro se arrepiar em animação. Essa animação subiu para meus olhos e mesmo o que estava fechado se aqueceu com a herança, como sempre acontecia quando eles brilhavam. Ordália Moyo… comecei lendo cada palavra com máxima atenção enquanto esquecia do resto do mundo.
Me conte sua história…