Volume 2
Capítulo 29: Avançar
[Domingo, 11 de setembro de 2412, 07:12 da manhã]
A janela do quarto aberta dava visão para o céu nublado de sempre, o vento aprecia regularmente para balançar as cortinas acima da escrivaninha ao lado da cama. Sentado na beira da cama, meu corpo parecia mais leve e meus pensamentos mais suaves, comigo parado, apenas olhando ao redor no meu quarto, meditando em minha mente e tentando absorver o que havia mudado. A bagunça em que tudo estava antes, todas aquelas informações de uma vez só na minha cabeça, parece que tudo está organizado.
Observei, mais profundamente, minha energia correndo pelo meu corpo através do sistema circulatório sanguíneo e formando meu fluxo interno. A energia que saía constantemente do meu peito estava limpa, sem nenhum dos traços de Volusia ou Ousia, apenas minha energia deixando a porta do fluxo para meu fluxo interno e meu coração bombeando o sangue junto a essa energia para meu corpo. Pensei que a sensação de leveza fosse apenas por ter falado com minha mãe, o que aconteceu dentro de mim?
Observando mais do que o fluxo, tudo parecia de certa forma diferente agora. Minha cabeça estava livre de uma sensação que me irritava profundamente todos os dias, de manhã, tarde e noite, a sensação de meus próprios pensamentos serem esmagados e saírem apenas como um sussurro, era até estranho para falar a verdade, como se eu esperasse que essa sensação retornasse para me atormentar. Ouvir minha própria voz tão claramente assim… é bom.
Um vulto negro entrando pela janela roubou minha atenção, o corvo com topete de penas avermelhadas se empoleirou no encosto da cadeira. Observei e ele parecia fazer o mesmo comigo, era maior do que os corvos comuns e também diferente com as penas vermelhas em sua cabeça. De certa forma, esse corvo me lembrou o Jack por algum motivo. Estendi meu antebraço para o pássaro escuro e ele bateu suas asas para se lançar em minha direção e se empoleirar no meu braço.
É você…
Ele beliscou meu dedo quando tentei acariciá-lo uma primeira vez, mas deixou que eu acariciasse seu pescoço na segunda tentativa. Seus olhos pretos tinham um tom de carvalho e olhavam para mim sem perder o contato visual por nada. Suas penas, diferente dos outros corvos que quando expostos à luz ficam azuladas, ficavam avermelhadas quando a luz cinzenta que vinha da janela batia nelas. Seu comportamento parecia estar relaxando quanto mais os segundos passavam, ele começou a se movimentar pelo meu braço, olhando ao redor.
— Ela estava ansiosa para ficar com você, né, Felícia?
Olhei para o lado e minha mãe estava na porta com um prato nas mãos e um copo de achocolatado na outra. Ela se aproximou, deixando o copo com chocolate na escrivaninha e se sentando ao meu lado na beira da cama. Seu braço passou ao meu redor para me levar mais perto dela enquanto o outro segurava um prato com biscoitos de chocolate. A corva fixou seus pequenos olhos no prato de biscoito, ignorando todo o resto. Me escorei em minha mãe, pegando um dos biscoitos com a mão que estava acariciando Felícia.
Que nome bonito.
— Como você está? — Minha mãe perguntou.
Nem precisei pensar para responder.
— Melhor… é como se eu estivesse mais leve.
Ela começou a beijar o topo da minha cabeça e fungar no meu cabelo, balancei a cabeça de um lado para outro para afastá-la. Tentei manter o foco quebrando o biscoito que peguei em pedaços menores para Felícia, ela bicava os pedaços pequenos e os engolia de uma vez. Minha mãe ainda estava tentando cheirar meu cabelo, então comecei a balançar minha cabeça mais rápido, ficando um pouco tonto. Minha mãe finalmente desistiu e fez um bico descontente, logo depois voltando à sua feição tranquila. Ela esticou a outra mão para pegar o copo com chocolate.
— Pode falar com a mamãe se estiver com algo a mais te incomodando, tem algo a mais que você quer se abrir, Sammy? — ela perguntou, me dando o copo com leite achocolatado.
Pensei por um momento, Felecia pulou para minha coxa quando peguei o copo e ficou me observando, como se também esperasse a resposta. Observei o achocolatado ainda pensando, se eu guardo tudo para mim e isso faz eu me sentir pesado sempre, então sempre vou ter que passar por isso? Esse processo de limpeza, onde eu coloco tudo que eu guardei para fora, será que vou conseguir fazer isso por conta própria algum dia? Resolver meus problemas sem ajuda, parece uma meta difícil, mas, ao mesmo tempo, deve ser incrível.
Mas eu ainda preciso de ajuda, então não devo me deixar levar.
— Eu estou com medo… é como se eu estivesse esperando aquela sensação sufocante voltar e, quando ela volta, eu só fico inerte até o momento em que vou colocar tudo para fora de novo. Eu quero aprender como posso mudar isso, como eu posso enfrentar isso… eu quero melhorar.
Sua mão ergueu meu queixo para encontrar seus olhos gentis com seu sorriso discreto, carregando… orgulho.
— Você já sabe, você já fez isso. Quando uma ação nunca muda nada ou um caminho sempre leva ao mesmo resultado, nós temos que tentar algo diferente e você fez isso… Estou orgulhosa de você, Sam, você só precisa ser você mesmo e sempre se lembrar de que nada é difícil demais quando aprendemos como funciona.
Meu olho marejado deixou uma lágrima cair e meu sorriso aumentou um pouco. Estava longe de ser tristeza o que estava passando por mim, era muito mais quente… era orgulho também. Minha mãe beijou minha testa e me abraçou mais forte e retribuí isso. Quando o momento passou, ela me liberou de seus braços e colocou o prato de biscoitos no meu colo antes de se levantar e ir em direção à porta. Ela parou no meio do caminho, se virando para mim com diversão nos olhos antes de realmente falar.
— Sua amiguinha está aqui, Maya, ela está esperando você na sala.
Quase me engasguei tomando o achocolatado.
— Maya? Ela está aqui? Eu preciso...
— Você vai terminar o café, escovar os dentes, encontrar sua amiguinha e depois vai para a biblioteca para encontrar a mamãe, entendeu? — Seu tom e olhar ficaram firmes e isso me deu um arrepio.
Concordei com a cabeça, colocando um biscoito na boca e ela se virou para sair do quarto. Quando sua presença já estava distante, coloquei dois e três biscoitos de uma vez na boca. Felícia estava bicando as migalhas que caíam no meu colo, saltitante como se estivesse abaixo de uma chuva de guloseimas, perto de ficar sem ar de tantos biscoitos secos de uma vez, bebi o achocolatado para fazer a massa descer mais rápido. Terminado o café, segurei um grande refluxo que queria subir para minha boca.
Vamos lá, mais rápido!
Deixando Felícia se banquetear, quando ela parou de bicar as maiores migalhas que haviam acabado, pulou para meu antebraço. Levantei-me da cama para colocar o copo e prato na escrivaninha, partindo do quarto para o banheiro levando comigo as roupas para trocar depois do banho. Entrando no banheiro, Felícia foi para a grande lua de mármore que tinha as duas torneiras abaixo do grande espelho do banheiro. Antes de tirar a roupa, vi meu reflexo, tendo novas marcas pelo meu corpo visíveis no meu pescoço e olho.
Tirando minha camisa, havia diversas novas marcas com símbolos estranhos no meu corpo. Os símbolos maiores estavam um pouco apagados, como se estivessem incompletos, mas as diversas letras pequenas se espalharam por minha barriga, costelas, peito e até mesmo para debaixo das minhas calças e pernas. Encarei um símbolo grande incompleto nas costas da minha mão por um tempo. É estranho, sinto que conheço… mas, ao mesmo tempo, tenho certeza de que nunca o vi, então como posso reconhecer?
Felícia saltitou para mais perto, seus pequenos olhos me observando e quase podia sentir sua curiosidade. A acariciei antes de seguir para o banho e, durante o mesmo, encontrei mais dos símbolos familiares incompletos no meu corpo. Vesti-me novamente e fui incapaz de conter meu descontentamento com a explicação que meu avô havia me dado sobre esses símbolos. Com um suéter azul marinho, calça preta e uma camisa branca longa que era maior que o suéter, me observei mais um pouco em frente ao espelho.
Meu olho fechado era emoldurado pela minha cicatriz pelo lado e a cicatriz era emoldurada pelas pequenas letras que se conectam e formavam uma linda forma estranha. Senti o desejo de abri-lo, mesmo que apenas por um momento, apenas para ver se havia algo de diferente ou a cor dourada ao redor da pupila dele também. Juntando coragem, eu o fiz e abrir minha pálpebra direita parecia um movimento completamente novo de tanto tempo que eu não fazia. Observei com o esquerdo as mudanças do direito.
Essa sensação…
Manter meu olho direito aberto me dá uma sensação de tontura por causa do que ele tem, completamente cego para o material, mas posso ver uma coisa nova. Dividir a atenção com os dois olhos abertos é como se eu tivesse que olhar duas janelas de coisas completamente diferentes e manter o foco em ambas a todo momento. Minha íris era um tom intenso e profundo de cor escura com um toque de puro roxo, como uma galáxia. Ao redor da pupila, a cor dourada formava o anelete que crescia na galáxia com raízes em espiral.
E se.
Fechei meu olho esquerdo para focar apenas no direito, era tudo escuro, porém podia ver a silhueta de todas as coisas como um aglomerado de flocos brancos. Olhei em direção à Felícia, sua forma era igual, porém eu podia ver a energia dentro dela, como a cor branca e preta se misturando e o dourado no meio… isso parece aquela esfera que vi quando saí do centro espiritual. Olhei para meu reflexo e vi a energia branca saindo do meu coração e deslizando pelo meu corpo na forma do sistema circulatório sanguíneo.
Era muito mais do que estranho, antes minha cabeça doía apenas de abri-lo, mas agora é apenas... estranho. Eu podia ver a forma dos seres vivos, como Felícia, sendo uma mistura de branco e preto esculpindo a forma de seus corpos e sentir a energia se movimentando dentro deles, já objetos ou coisas sem vida são apenas branco ou cinza, suas formas moldadas pelo acúmulo de flocos pálidos. Meu próprio olho no reflexo era uma versão menor daquela esfera, o branco e preto se movimentando em minha pupila como líquido.
Respira, deixe fluir.
Comecei a enviar energia para meu olho através do fluxo interno, reduzindo e aumentando até o momento em que eu só conseguia ver meu próprio reflexo. Meu corpo também foi montado por flocos brancos no mar preto, exceto por meu olho que tinha flocos dourados também e minhas roupas eram como ondulações dos flocos, Felícia também era a mesma coisa, seu corpo pequeno e penas sendo revelado para mim como uma mistura dos flocos brancos com a escuridão que nos cercava. Eu nunca tinha feito isso… é incrível!
Lembrar que Maya estava esperando por mim na sala, foi a maior motivação para fechar meu olho. Meditei por alguns segundos, processando o completo escuro antes de abrir meu olho esquerdo. Minha visão voltou ao normal e minha cabeça estava leve, apenas uma leve tontura. Estiquei meu antebraço para Felícia, que subiu nele em um salto, e comecei minha caminhada para o térreo, saindo do banheiro e indo para a escada. Por que agora estou sem dor de cabeça para abrir meu olho?
Talvez eu esteja mais desenvolvido.
Chegando à escadaria que levava ao hall, pensei por um momento antes de começar a descer os degraus. Muitas coisas no paranormal eu ainda tenho que entender, mas uma coisa que já aprendi por experiência própria é que: quanto mais exposição você tem a algo de lá, mais acostumado você vai ficando e se adaptando, como se a conexão fosse aumentando com a habilidade ou conhecimento e isso te mudasse física, espiritual e mentalmente. Antes eu tinha que viver com o supressor, senão as diversas informações que eu captava com meu senso astral me faziam ter dores de cabeça.
E então, Minstra me ensinou a filtrar as informações com a atmosfera cheia de energia da Penumbra, com aquela projeção da minha consciência para lá. O que mudou em mim além da herança? Mais perguntas se formaram comigo atravessando o hall de entrada em direção a porta da sala de estar. Parei por um momento, percebendo que estava andando em círculos na questão e continuaria a andar em círculos por falta de alguma informação que não tenho ou deixar passar. Vou ter o dia todo para perguntar para minha mãe, foca no agora, Samuel.
Foquei minha atenção na sala a minha frente, do lado direito, onde ficava a mesa de jantar, vi os dois irmãos sentados de costas para a entrada. Ver eles ali me tirou a atenção do resto até o momento em que vi uma silhueta se aproximando de mim, vindo do sofá, Maya estava se aproximando em um passo rápido, sua feição fria me deu arrepios antes de se desfazer em um olhar de alívio. Eu desmaiei ontem e ela teve que cuidar de mim e me viu ser levado como um bebê por meu avô… acho que foi uma péssima primeira impressão.
— Oi… como você está? — perguntou de frente para mim.
Então, as mudanças na aparência dela eram de verdade, observei seus olhos turquesa vividos e os dois pontos negros acima de suas sobrancelhas. Fiquei estático tentando me lembrar se já tinha visto isso em seu rosto antes ou apenas, de alguma forma, fui incapaz de perceber, os pontos acima das sobrancelhas eram maiores que suas sardas ou a pinta abaixo da boca, mas os olhos… eu com certeza perceberia essa cor turquesa viva. Seria engraçado ver dessa forma, eu uso uma venda e ela usa uma obra?
— Melhor, acho que foi graças a você também, obrigado por ter ficado lá e… se arriscado. — Se você estava escondendo sua aparência, aquela aura prateada deve ter atrapalhado a máscara.
Ela olhou ao redor e fiz o mesmo para ver os dois irmãos olhando para nós, o mais velho dava olhadas de canto e o mais novo era menos discreto. Eu sinalizei para o hall e comecei a caminhar com ela ao meu lado, Felícia e ela ficaram trocando olhares até o ponto em que Felícia voou para ela, Maya se assustou antes de estender o antebraço para Felícia se empoleirar. Seu suéter de duas cores, as calças largas e sapatos sem cadarços, junto a seu cabelo curto com várias mechas grisalhas, seus olhos e as pintas apenas a deixavam mais bonita.
— Quando eu era mais pequeno e ainda não tinha reivindicado minha herança, minha mãe me disse que a Dama da Lua ensinava seus seguidores a curar usando a energia dela… aquela aura prateada nas suas mãos, ela atrapalhou o disfarce, né?
Ela sorriu com seus olhos na Felícia e a acariciou.
— Meus olhos chamam muita atenção, então eu apenas achei uma forma de cobri-los... como a sua venda. Eu usei a energia da minha Senhora para tentar te ajudar de alguma forma, mas poderia ter te colocado em risco já que nem sabia o que estava fazendo… desculpa. — Seu sorriso se desfez junto a felicidade de seu rosto.
Eu a abracei, espremendo Felícia entre nós dois enquanto me lembrava do momento em que ouvi e senti a presença de meu pai. Os mortos nunca devem voltar, essa é a ordem natural da coisa e infelizmente é assim que deve ser… mas eles podem enviar mensagens, eu realmente não sei como, mas sentir a presença dele, mesmo que apenas uma mensagem, me faz acreditar que ela ajudou para aquilo acontecer. Acho que quero continuar te conhecendo, para isso eu devia parar de fazer esse tipo de coisa sem pensar… mas você é tão cheirosa.
— Você me ajudou mais do que pode imaginar, obrigado de verdade, Maya.
Me afastando, as bochechas dela estavam avermelhadas e, pelo calor no meu rosto, eu podia dizer que as minhas também estavam. Felícia grasnou para mim como reclamação antes de escalar o suéter de Maya até seu ombro, Maya evitou olhar meu olho e sempre estava buscando um lugar para olhar que nunca era meu rosto ou na altura do meu rosto, acho que fui um pouco longe demais. Você tirou a máscara para me ajudar, é justo eu tirar a minha.
— Seus olhos são muito bonitos, eu gosto de olhar para eles, acho que eu também posso tirar a minha máscara para você, né? — Puxei a venda que cobria meu olho direto para baixo e falei — Eu perdi minha visão quando tinha quatro anos, ao menos um tipo de visão, manter os dois olhos abertos por muito tempo me dava enxaqueca.
Seus olhos finalmente subiram para meu rosto, analisando meu olho direito, e ela ergueu sua mão apreensiva para tocar a lateral da minha cabeça. Seus dedos passaram pelos símbolos antes dela afastar a mão, sua feição deixou de ser envergonhada ou apreensiva, mudando para algo mais relaxado e curiosa, deixei minha venda pendurada no pescoço sem colocá-la de volta e isso até me deixava mais confortável… que estranho. É melhor começar a andar antes que minha mãe venha atrás de mim.
Gesticulei para a porta um pouco mais a frente da escada que dava na biblioteca, eu fui à frente apenas para abrir a porta. Na biblioteca, as prateleiras de madeira paralelas uma a outra formavam o corredor que levava ao meio da sala onde havia a mesa de estudo, mas minha mãe não estava lá como de costume, olhei ao redor com Maya ainda em silêncio. Talvez… olhei para a grade que separava a seção restrita e busquei por sua presença e a achei.
Comecei a fuçar meu bolso para pegar a chave que meu avô havia me dado, de frente para o portão, tinha algo estranho. Olhei para trás para ver Maya estática olhando para baixo, seus olhos estavam distantes e ela parecia estar me seguindo apenas por um piloto automático. Voltei minha atenção para ela e a cutuquei com o dedo, ela pareceu acordar, mas seus olhos ainda estavam um tanto distantes. A forma como ela estava me olhando, era estranha e um pouco desconfortável, como se estivesse com medo de algo.
— Você está bem?
— Sim… eu só estou feliz, digo, parece que não, mas eu estou, é só que… eu posso vir amanhã também? Para conversarmos ou coisas assim?
— Sim, mas você já precisa…
— Não! É só que...
O silêncio ficou entre nós dois, sua feição transitando entre vergonha e confusão. Tentei me lembrar de algo que me ajudasse na situação, mas esse é um tipo de coisa que, sinceramente, é um pouco nova para mim. Ela quer vir aqui mais vezes? Ou tem medo disso? Eu estou tentando entender, mas é um pouco confuso. Maya fechou os olhos e respirou fundo, passou alguns segundos antes de sua expressão suavizar e ela reabrir os olhos.
— Eu quero sair mais… eu gosto de conversar com você e quero te conhecer mais, eu gosto dessa amizade nova que eu tenho com você, é isso.
Uma sensação fria surgiu em meu peito e desceu para meu estômago, ao mesmo tempo que surgiu um sorriso nos meus lábios. Esse medo de uma coisa nova, eu senti isso quando minha mãe me trouxe para morar aqui e quando fui a uma reunião das pequenas estrelas, é quase como se ele me alertasse sobre o que está acontecendo e o que pode dar errado ao fazer. Mantive meu sorriso pequeno nos segundos que se seguiram, antes de falar.
— Eu também, por isso te contei aquele segredo, espero que você venha mais vezes.
Ela sorriu também.
— Posso te chamar de Sammy? — ela perguntou sorrindo.
— Posso te chamar de May?
Concordamos mutuamente enquanto me virava para a porta de metal, colocando a chave dourada na tranca e a virei três vezes. Dentro da porta, soou cliques de metal e também senti um fino veio de energia se mover dentro dela. Empurrei a porta para abri-la, mas o fato de ser uma mistura de árvore com metal a deixava um pouco pesada demais para uma porta. Vi a mão de May passando ao meu lado e, com apenas um empurrão dela, a porta foi até o limite das dobradiças.
Legal.
Entrando na área restrita com ela ao meu lado, a porta se fechou sozinha com uma suavidade surpreendente, sem muito alarde. No começo, pareciam apenas a mesma coisa da parte livre da biblioteca, mas a diferença estava nos detalhes, nesse caso nos livros. Eu conseguia sentir que todos tinham energia dentro deles, um tipo puro com alguns traços da radiância em alguns. Observei as fileiras paralelas se espalhando como um L em um cubo, com uma parte livre e com uma mesa.
Fiquei tentado a pegar um dos livros e entender o porquê de todos terem energia dentro, mas um pressentimento depressa me fez reter essa vontade. Felícia voou do ombro da Maya e desapareceu entre as estantes de livros. Maya e eu nos entreolhamos antes de começar uma busca pela área restrita. Observei os livros enquanto passava entre as prateleiras, todos sendo grossos e ordenados perfeitamente. Parei por um momento antes de me concentrar, filtrando as informações recebidas para procurar uma em específico.
As prateleiras iam até o teto e, além do teto, eu conseguia sentir a presença da minha mãe. Procuramos mais pouco para achar uma escada caracol em um canto que levava até o segundo andar. Maya sorriu animada, olhando ao redor e colocou as mãos no meu ombro enquanto subíamos para o segundo andar da casa. O escritório da minha mãe também fica acima da biblioteca, essa sala está conectada? Saímos de uma sala com muitos armários e com cheiro de flores e ervas.
Minha mãe estava com um pilão nas mãos e o mexendo em frente a uma mesa com muitos potes cheios de coisas diferentes. No meio do caminho até ela, no centro da grande sala, havia um círculo pintado cercado por velas brancas novas e acesas. No centro havia linhas que formavam um hexágono, círculo, quadrado e com muitos outros símbolos diferentes e estranhos. A sala também era completamente iluminada por velas e por uma lareira ao lado da escrivaninha que minha mãe estava.
Entendi por que há uma chaminé, mas nunca tinha encontrado a lareira.
Passei meus olhos pelos armários caminhando até minha mãe, todos estavam cheios de potes, ervas e muitas outras coisas até encontrar Felícia em um deles. Próximo a minha mãe, observei-a derramar o que estava moendo com o pilão dentro de um prato dourado opaco antes de colocar o pilão de lado e virar sua cabeça para mim,. Ocheiro forte e estranhamente bom de ervas vinha do prato dourado e percebi que havia mais pratos com coisas dentro também. Minha mãe ssorriu,olhando para mim e Maya ao meu lado.
— Está na hora de entrarmos mais fundo na esfera do esoterismo para que você possa avançar mais e isso vale para sua amiguinha também — minha mãe disse, se levantando e continuou — você e a amiguinha podem ajudar a mamãe com os pratos?
Ela nem esperou uma resposta antes de seguir para o centro do círculo cheio de símbolos, olhei para Maya que já estava com dois pratos na mãos. Olhando os pratos restantes, meus olhos foram atraídos para o que tinha um crânio humano e alguns outros ossos que também pareciam ser humanos. Tive um arrepio que se intensificou mais ao pegar o prato em uma das mãos e me virar para minha mãe. Seus olhos ficaram receosos antes de arquear uma sobrancelha para mim.
— A mamãe não matou ninguém, os ossos são do seu tataravô e ele os doou para as futuras gerações, o que inclui eu e vocês — ela explicou com seu tom preguiçoso de sempre.
Oi, vovô…
Caminhei até ela com os olhos fixos nos ossos até o momento de entregar nas mãos da minha mãe. Ela organizou os pratos que levamos até ela dentro das formas. A primeira forma era um triângulo dentro de um círculo que tinha três pratos em cada ponta. A ponta principalmente levava os ossos e folhas de ervas, a da direita tinha uma esfera escura que brilhava como um céu estrelado e um líquido verde jade, o último tinha uma pedra normal com terra e sal. Observei minha mãe escrevendo mais glifos e runas dentro do círculo.
Se conectando ao triângulo dentro do círculo pequeno com muitas linhas e glifos, tinha um hexágono com suas seis pontas tendo um prato. Dentro dos pratos havia uma coisa específica e até um pouco comum, em um prato havia linhas e ganchos para tricô, no próximo havia uma tesoura e tecido velhos, após ele havia um boneco de porcelana, o próximo era uma pedra de amolar, o próximo era uma borboleta de metal e o último era uma esfera de vidro e uma folha de metal. Observei como o grande círculo englobava o hexágono e o círculo menor com o triângulo no centro.
Esfera esotérica…
A forma como tudo estava conectado por símbolos e linhas que se traçavam entre si como uma tapeçaria perfeita era lindo. Minha tinha terminado de escrever os símbolos e estava se aproximando de nós em sua mesa com seu sorriso discreto. Ela deixou o pincel que estava usando para desenhar no chão na escrivaninha antes de se sentar e focar seus olhos em nós. Podia sentir ela se divertindo com minha curiosidade crescendo. Seus olhos se moviam entre mim e Maya, ela pegou uma pequena caixa ornamentada da escrivaninha.
— O teste da esfera é para dar uma direção dentro da esfera dos esoterismos, o ritual de luz guia ou, mais popular, Cerimônia, nos revela os símbolos para se usar as autoridades das disciplinas e também os símbolos dos elementos do astral, vamos descobrir os elementos de vocês dois e a disciplina primária mais compatível com cada um. — Ela abriu a caixa ornamentada com um clique.
Da caixa, ela tirou uma esfera que cabia em sua palma, seu interior era cheio de cores, indo e voltando e se movimentando como líquido. Ela passou seus olhos por nós, mas se fixou em Maya e isso roubou minha atenção para olhar também. May estava com uma feição confusa no rosto, além disso, parecia estar triste. Ela olhou para baixo antes de levantar a cabeça novamente, parecendo estar confusa.
— Senhora, eu acho que teve um engano, o senhor Simão disse que iria fazer isso para mim no próximo mês e uma esfera de cristal só lê uma pessoa por vez…
— Esses jovens, sempre tão aflitos com uma pequena mentira, não são, senhorita Glória? — A voz familiar veio de trás.
Do lado contrário, onde entramos pela escada caracol, havia uma porta que estava sendo fechada após o senhor Simão entrar. O senhor moreno, com olhos e cabelos longos crespos brancos, vestes semelhantes às de um monge com a cor prata e preto, estava contornando o círculo carregando um pano branco dobrado nas mãos e uma feição tranquila. May estava com uma cara entre feliz, irritada e surpresa, as três emoções brigando para ver quem ficaria no rosto dela.
O senhor Simão chegou até nós, minha mãe estava contendo seu sorriso e o rosto de May ainda estava brincando entre si. O senhor Simão passou seus olhos pálidos por todos antes de focar em mim, um sorriso mútuo nasceu entre nós, quase uma saudação silenciosa e estranha, ele só desdobrou uma vez o pano para revelar mais uma esfera de cristal entre as dobras. Minha mãe pegou a esfera com a mão livre e colocou ambas em cima da mesa antes de voltar seus olhos para nós.
— As dúvidas quanto ao senhor Simão serão resolvidas pelo próprio, vou preparar a tinta.
Maya encarou Simão com uma raiva silenciosa semelhante à forma que minha mãe faz com o tio Marcelo. O senhor Simão ergueu a mão para acariciar a cabeça de Maya, deixei isso de lado para dar privacidade a eles, mas confesso que fiquei com meus ouvidos em pé para qualquer coisa que dissessem. Felícia estava na mesa da minha mãe e saltitou em minha direção. Ela subiu em minha mão e comecei a acariciá-la.
— A senhora disse que familiares têm uma conexão com a gente… como? — perguntei, ainda acariciando Felícia.
Ela estava com uma tigela com líquido verde jade à sua frente, como se estivesse cozinhando algo.
— Os familiares podem ser muitas coisas, mas uma coisa em comum é a conexão que eles têm com seus escolhidos. Essa conexão aumenta com a convivência, Felícia te escolheu, assim como os outros dois espíritos dentro de você. Agora, como é que a conexão se forma ou por que te escolheram, talvez seja algo que não seja para ser explicado. — Ela olhou para mim e passou a mão por meu olho fechado, acompanhando as marcas com os dedos. — Eu gosto quando você fica sem a venda, o seu rostinho é bonito demais para ficar escondido.
Me senti ficar vermelho pelo calor das bochechas, beijei rapidamente sua mão para ela afastá-la. Minha mãe voltou sua atenção para a tigela com líquido jade e eu voltei minha atenção para Felícia, comecei a mover meu fluxo interno e a colocar energia em minhas mãos. Fie, sob meu controle, começou a acariciar Felícia e ela agitou suas penas em resposta, mas podia de alguma forma sentir que ela gostava disso. Se essa conexão fica mais forte pela convivência, faz sentido o nome Familiar… você também acha, Elmir?
Na saída do fluxo em meu peito, eu consegui sentir a sensação de estar sendo observado, isso até que é comum, mas a presença era diferente. Lembro bem da presença de Elmir pelo que senti no fluxo, acho que em grande parte por ele ter me ajudado e segunda grande porque eu queria falar com ele. A presença dele reagiu sutilmente ao meu pensamento, apenas ficando um pouco mais clara com ele deixando de se esconder antes de afundar. Entendi… agora não é a hora certa para conversar.
— Pronto… vamos começar?— Minha mãe disse com seus olhos na tigela.
Inclinei a cabeça para ver melhor, o líquido jade estava mais escuro, exalando uma névoa fraca. Minha mãe se virou para nós e eu e Maya nos entreolhamos com certo receio. Minha mãe estava com a tigela nas mãos e mexendo no líquido com um pincel branco. Seus olhos foram para mim e podia ver ela me lendo como um livro aberto. Mantive uma expressão calma, no fundo, o medo de uma nova experiência existia, mas não permiti que me controlasse.
— Hum.