Volume 2
Capítulo 28: O que guardamos II
[Sábado, 10 de setembro de 2412, 17:34 da tarde]
— Mas… como exatamente você vai me ajudar? — disse, segurando-o com uma mão enquanto acomodou-se no meu antebraço, escalando meu suéter para voltar ao meu ombro. A curiosidade e a confusão eram uma benção, pois aliviavam o medo que percorria meu corpo. Me belisquei algumas vezes para ter certeza de que a salamandra em meu ombro realmente estava aqui e não era uma alucinação criada pelo medo. Após alguns segundos ou minutos de silêncio se acomodando no meu ombro, Elmir parecia pronto para falar.
— A primeira coisa é que tudo o que você está vendo aqui é real até certo ponto, seu centro espiritual é uma representação do seu inconsciente almático para sua consciência, ou seja, você é incapaz de mudar as coisas aqui, pois você é a parte consciente, entretanto, você ainda é dono desse lugar e poderia simplesmente sair… em uma situação normal, é claro. — Havia um tom brincalhão em sua voz.
— Que tipo de situação é essa e por que aquela coisa existe aqui?
Ele passou a longa língua nos próprios olhos e respondeu: — Sou um espírito que está aqui graças à herança, e “a coisa” também é um, e já vou dizer que ele é o pior de todos e infelizmente te escolheu para atormentar. A coisa está tomando a forma que você mais teme, brincando com sua mente até ele ficar satisfeito, e ele não vai te deixar sair até que isso aconteça, Madame Minstra conseguiria dar um jeito nele, mas infelizmente ele tomou uma medida de proteção para isso.
Assume a forma do meu maior medo?
Se Elmir entrou usando a herança como porta e… esse outro também, por que ele quer que eu passe por isso? Qual é a graça de brincar com algo tão aterrorizante assim? Deixei meus pensamentos por um instante, tentando sentir meu corpo ou uma saída como fiz antes, mas tudo que eu sentia era o céu interminável repleto de constelações e as duas presenças e herança nelas. Ele me prendeu no meu próprio centro espiritual? Se eu estou preso aqui… significa Minstra está presa do lado de fora.
— O que eu devo fazer, Elmir?
Ele levantou a cabeça e me encarou com seus pequenos olhos pretos.
— Você tem duas forças dentro de você, Ousia e Volusia, e mesmo que seja inexperiente em usá-las, ainda tem a herança e sua própria energia… e eu. Você vai ter que ir para a raiz do problema, ou esperar que a Minstra venha salvá-lo quando e se conseguir quebrar a barreira que ele fez para impedir a entrada dela aqui.
Me encolhi novamente, perdendo minhas forças nas pernas, a tremedeira ficou mais forte quanto mais eu pensava em encarar aquela coisa. Tentei criar forças lembrando das palavras que meu pai disse, mas tudo desmoronava até mesmo quando eu apenas me lembrava dos olhos laranjas me encarando, de novo e de novo eu me obriguei a lembrar disso apenas para fracassar em manter a compostura. Escorei minha cabeça na árvore atrás de mim, puxando o ar com meu queixo trêmulo.
Preciso tentar!
Me obriguei mais uma vez a ver aquele dia, desde o momento em que estava tudo perfeito até o momento em que o homem pálido entrou na sala em que meu pai e eu estávamos. Desde meu pai sendo meu escudo, o sangue jorrando do buraco no estômago dele e o meu próprio pesando com o medo; o homem pálido segurando-me, impedindo-me de ir até papai, suas mãos como fogo e aquele maldito sorriso.
Meus olhos grudaram nas cicatrizes vermelhas; presentes em meus braços, desde as costas das mãos até os ombros, eram desenhos feios.
Observei as marcas negras que as contornavam e cobriam, algumas delas as deixando com uma forma ainda incompleta. Por um momento, orgulho surgiu dentro de mim! Consegui lembrar do dia por completo sem parar no meio da lembrança, o vovô confiou em mim para me dar a chave da área restrita da biblioteca e… Maya quer ser minha amiga.
As palavras do meu pai ficaram tão claras quanto um farol, eu ainda tenho medo.
Eu preciso sair daqui, contar o que eu sinto para mamãe.
Levantei-me com a ajuda da árvore, limpei meu rosto e comecei com um passo lento, depois de outro; até sair de sua proteção para refazer o caminho que corri antes. As palavras do meu pai me guiavam enquanto eu formava as palavras que queria dizer, desde o quanto eu quero orgulhar ela, até o quanto me dói vê-la triste por minha causa… sobre meus pesadelos que me atormentam na grande maioria das noites e o medo que eu tenho quando lembro do passado.
Cansei de me esconder.
— Se vamos enfrentá-lo, precisamos de um plano, Samuel.
— Eu tenho um… e pode me chamar de Sammy — falei ainda caminhando.
Era simples mostrar meus pensamentos para Elmir, na verdade era mais fácil agora do que nunca tinha sido com a Minstra. Nossas mentes se encostaram inúmeras vezes na troca de informações, eu podia sentir seus pensamentos calmos e até mesmo escutar trechos da voz de sua cabeça, foquei mais nessa capacidade tentando ouvir seus pensamentos assim como Minstra ouvia os meus. Caminhando e conversando telepaticamente, ele queria rejeitar meu plano e compartilhava suas próprias ideias, mas a falta de algo melhor o forçou a aceitar.
Parei quando estava a metros da fogueira com o fogo baixo, Elmir passou por minha nuca para chegar ao meu ombro direito. O silêncio podia me enganar, os flocos de neve caindo gentilmente sobre mim e o bosque de árvores de troncos intrincados e folhas vermelhas sem nenhuma presença era quase um colírio, mas tudo não passava de armação. Movendo a herança pelo meu fluxo, radiância e meu Sine se tornavam um só dentro de mim.
O diabo sempre ataca quando abaixamos nossa guarda.
— A luz radiante de uma estrela ou a escuridão acolhedora do próprio universo, ambos são seus por direito da herança. — Elmir parecia me ler, suas palavras em minha mente como uma luz guia.
Juntei minhas palmas, deixei que Fie saísse do meu coração e se misturasse à minha energia mista e a guiei para minhas palmas. Flocos negros se uniram em minhas mãos junto a pequenos fragmentos de luz, as sombras estavam em maior quantidade, mas a luz dançava em torno delas como os vídeos de dança clássica que meu vô e eu assistimos, lembrei dos murais de casa ao ver como as sombras e luz interagiam entre si… é lindo. A fogueira cresceu um pouco, mas logo diminuiu quando eu vi a silhueta do homem pálido entre as árvores.
Os olhos laranja brilhavam no escuro, as rachaduras negras ao redor dele estavam soltando um líquido vermelho-caramelo enquanto saía das sombras e se aproximava de mim. Meu coração batia tão rápido que era possível que ele explodisse de tanto bater. A tremedeira se intensificou mais a cada passo vagaroso que ele dava em direção a mim, mas Elmir acariciava minha mente em uma tentativa de ajudar. Os olhos laranja brilhantes passaram de mim para Elmir em meu ombro, o descontentamento e desdém misturados enquanto se encaravam.
— Sua presença é desnecessária aqui, adeus, largatixa. — A voz como uma coceira insuportável entrou em meu ouvido e o homem pálido estalou os dedos.
Uma brisa fria passou por meu ombro e logo depois ele ficou mais leve. Quando virei para ver, o pequeno anfíbio já havia desaparecido nas sombras que nos rodeavam. Tentei buscar a presença dele, mas estava distante e completamente parada, ao menos ainda parecia estar vivo... Voltei minha cabeça para frente para ver o homem pálido com seu sorriso amarelo me encarando com o que parecia uma alegria doente. Enquanto tudo acontecia, dentro de mim as coisas pareciam estar ficando… diferentes.
— Corra, se esconda! Torne isso mais divertido… — Seus olhos descontentes me dissecavam.
Parte de mim queria fugir, mas nem mesmo movi um dedo e fiquei o encarando. Observei em mim essa vontade de fugir se transformar e diluir, quanto mais fundo eu ia em meu medo, mais a vontade queimava como um carvão entrando em combustão e se tornando incandescente pelas brasas se espalhando por sua superfície…
Eu... eu nunca senti isso... Essa raiva...
Raiva de tanto sentir esse medo, raiva de ser tão limitado por meu pavor, raiva de me sentir tão fraco assim mesmo tentando ser forte.
— Eu estou cansado… CANSADO DE VOCÊ ME ATORMENTANDO, CANSADO DE LEMBRAR DE VOCÊ E CANSADO DE VOCÊ SENDO USADO CONTRA MIM PARA ME LIMITAR… SAI DA MINHA VIDA!
Desisti de todos os ensinamentos de autocontrole dos cinco princípios que minha mãe me ensinou, deixei que toda a energia raivosa saísse do meu peito e corpo e deixei que avançasse contra ele. As sombras que nos cercavam ganharam forma de mãos e também se lançaram contra o homem pálido. Ele avançou contra mim, seu corpo sendo agarrado por sombras como milhões de grãos pretos em forma de mãos, mas ainda assim ele conseguiu me alcançar. Sua mão direita se fechou sobre meu pescoço e parecia apertar cada vez mais que as várias mãos ao redor de seu corpo o apertavam.
— Você acha que é forte, fedelho? Acha que pode me impedir com algo que nem sabe controlar?
Observei seus olhos, o laranja brilhante e a máscara feita para que eu sentisse medo começou a rachar. Coloquei uma das minhas mãos sobre o seu peito e comecei a sondar tudo ao nosso redor. As sombras que o prendiam começavam a se tornar mais duras conforme meu medo estava se diluindo. Cada tranco que seu corpo dava em uma tentativa de se mexer fazia era inútil, mas mesmo tentando muito, sua mão sobre meu pescoço não iria soltar tão fácil e doía muito. Observei seus olhos mais uma vez, a cor laranja falhando e sua real presença se revelando enquanto o ar começava a me faltar.
— Eu… também… sinto… — Apertei minha mão sobre seu peito com toda força que me restava e mantive meu olho fixo nos dele.— o seu medo.
Como se eu pudesse ver um vislumbre de sua mente, mesmo que um lampejo de sua consciência, eu podia ver o sentimento de medo como uma massa de energia psíquica que era sua emoção e cheia de vida que também carregava outros pensamentos.
Nessa massa, eu vi olhos dourados como ouro brilhante, a forma lupina que eu conhecia bem se transformando em uma forma humana, seu rosto e corpo eram uma silhueta sombria, mas a forma de uma mulher com olhos dourados cheios de raiva estava clara. O aperto em meu pescoço me fez perder a concentração, mas já sei qual é o medo dessa coisa.
Cada vez maior do que uma pequena salamandra, um arrepio percorreu minha espinha quando senti o quão grande Elmir se tornara. O som de árvores sendo derrubadas à medida que a presença colossal se aproximava chamou a atenção do Homem Pálido, seus olhos se afiaram olhando além de mim, na grande criatura que sentia estar atrás de mim. Houve silêncio antes que um rugido monstruoso quase me deixasse surdo, com um assobio agudo sobrando em meus ouvidos.
O aperto em meu pescoço afrouxou, mas ainda era forte o suficiente para me colocar perto da inconsciência. Venha logo… Minstra. Minhas súplicas foram ouvidas quando um som semelhante a vidro se quebrando surgiu como se saísse do próprio ar e percorreu o bosque até meus ouvidos, algo mais imponente do que a grande presença do Elmir, que estava se aproximando mais rápido do que eu conseguia acompanhar com uma mão me sufocando. Quando a presença de Minstra carregando uma raiva palpável estava próxima, vi a máscara do homem pálido derretendo como tinta leitosa de seu rosto.
Seu bicho papão chegou… paspalho.
— Larga ele! — A voz raivosa da Minstra parecia um trovão. Em um momento eu ainda estava com a mão da criatura em meu pescoço, no outro eu estava deitado no chão com a criatura distante de mim.
As sombras, que antes tinham formas simples, agora formavam uma corrente negra com veios dourados em seus gomos, elas o prendiam de todas as formas enquanto uma fina camada do seu corpo parecia derreter como tinta leitosa. Deitado no chão, deixei minha cabeça encostar na terra macia e acima de mim uma grande silhueta negra de algo semelhante aos dragões das histórias de heróis. Estava com a cabeça fixa na criatura, mas ele a abaixou para que eu visse dois pares de olhos em uma cabeça blindada com escamas, chifres a adornando como uma coroa. Estou delirando pela falta de ar… é, com certeza.
Meu coração ficou mais calmo quando vi Minstra se aproximando de mim, seus olhos ainda tinham raiva, mas estavam acima de tudo preocupados. A forma lupina agora tinha seus pelos arrepiados e seus olhos brilhando em dourado puro, eles se suavizaram ainda mais ao encontrar o meu, tentei fazer como tinha feito com Elmir e a criatura para sentir seus pensamentos, mas sua mente estava completamente fechada. Ela virou a cabeça para a criatura que agora tinha uma forma completamente diferente… ele realmente só estava me assustando.
— Pode descansar, Sammy… — A voz de Minstra estava retraída, como se quisesse esconder de mim o ódio que eu via em sua presença.
O ar começou a ficar mais leve e os flocos de neve começaram a ficar molhados, na verdade, meu corpo inteiro estava molhado além do suor. Como acordar de uma noite de sono, a paisagem era o céu nublado que cobria a luz do sol, a chuva caindo sobre meu corpo sem nenhum intervalo, eu podia sentir a madeira molhada do píer e ouvir o junco se movendo com a força do vento e da chuva. O que achei mais lindo foi Maya, seus olhos agora eram turquesa intensos com um leve brilho prata. Acima de suas sobrancelhas, duas marcas pretas estavam lá agora.
A cor dos olhos… ela estava escondendo?
As mãos de Maya contra meu peito tinham uma aura de energia prata esbranquiçada, essa energia mergulhava no meu corpo, fazendo-me sentir… melhor. Olhei novamente para seu rosto, os traços eram, agora, claros e lindos, os olhos turquesa mais lindos do que a cor safira escura de antes e as duas marcas em sua testa eram um complemento sutil à sua beleza. Seu rosto era uma máscara de concentração preocupada, mas logo mudou para alívio ao ver meu olho aberto.
— Seus olhos… são lindos. — Empurrei as palavras.
Ela sorriu mais, seu rosto se suavizando apenas um pouco.
— Você está bem? Você caiu de repente e parou de respirar…
Relevei suas palavras apenas para continuar a observar seu rosto.
— Eu posso te contar algo… secreto? — falei, tentando parecer melhor para que a preocupação em seu rosto sumisse.
Ela me olhou confusa, mas acenou com a cabeça.
— Eu ouço a cabeça das pessoas… consigo sentir quando estão bravas ou tristes, consigo sentir coisas que pessoas como nós não, mas isso nem é meu maior segredo… O meu pai, quando ainda estava vivo, me chamava de Brasinha e eu o chamava de Brasão, e a gente chamava minha mãe de Ronquinho, mas ela nunca soube e sempre tentava fazer a gente falar, mas nunca falamos… era uma punição por ela passar muito tempo fora de casa.
Ela soltou um riso e passou a mão pela minha bochecha.
— Por que o apelido dela era Ronquinho? Brasinha pelo seu cabelo ser vermelho e você ser pequeno, Brasão pelo cabelo do seu pai ser vermelho e ele ser grande, mas por que o apelido da sua mãe é Ronquinho?
Sorri, lembrando das piadas que meu pai fazia.
— É porque… ela solta ronquinhos… quando dá risada e quando… dorme.
Manter meu olho aberto estava ficando cansativo, a chuva fria junto aos ventos me fazia ficar tão confortável, com a presença da Maya parecia ficar um pouco mais confortável. Vi o rosto da Maya voltar a ficar mais preocupado, suas mãos me sacudindo enquanto repetia meu nome, tentei dizer que apenas queria tirar um cochilo, mas não tenho certeza se as palavras saíram completamente certas. Vi seus olhos turquesa começarem a emitir o brilho opaco de prata novamente, mas ela parou por um momento de me encarar e olhou em direção à floresta, erguendo os braços em seguida.
Alguém deve ter chegado… que bom.
Deixei-me ser levado pelo sono repentino que me alcançou, meus pensamentos ficaram simples e cada um me convidava a descansar. Alguns trancos e vozes que não eram minhas surgiam, algumas familiares, outras nem tanto, mas deixei isso para trás, esperando que meu sonho se arquitetasse aos poucos. Lembranças do passado passavam por minha consciência, todas sendo levadas sem rumo na minha mente.
Paz… o meu lugar perfeito.
Eu estava no quintal da casa do meu avô, minha mãe estava acariciando minha cabeça enquanto observamos as folhas das árvores depois do muro do quintal balançando com o vento sereno da tarde. Meu avô estava sentando abaixo do pé de mexerica com seu óculos de leitura e um livro aberto nas mãos. Dessa vez, consegui imaginá-lo com as marcas que sempre mantinha escondidas. Senhora Helen e Milena estavam comendo doces junto a Emma, as três com sorrisos no rosto. Distante de tudo estava meu tio Marcelo, observando as árvores sem ninguém ao seu lado.
Levantei-me de onde estava sentado no abraço de minha mãe, dei um beijo na bochecha dela antes de ir em direção ao tio Marcelo. Cada passo em direção a ele fazia o tempo avançar, as nuvens sempre cinzas se tornando mais escuras conforme a noite se aproximava. Chegando ao meu tio perto do final da tarde, me sentei ao seu lado no chão coberto de folhas. O silêncio entre nós dois durou à medida que eu observava as árvores, o vento gelado agraciando meu corpo e levando folhas a cair em minha visão.
— Você foi forte, Sammy… mas ainda há muito mais preso aí dentro, né? — A voz dele estava diferente, na verdade parecia com… a minha.
Virei a cabeça para o lado e soltei um suspiro, surpreso ao me ver onde ele estava. Desde meu cabelo ruivo avermelhado, cílios longos, as cicatrizes ao redor do meu olho direito que agora eram como uma peça de arte que emolduravam meu olho fechado, meu olho esquerdo verde musgo como os do meu pai com a marca dourada ao redor da minha pupila, parecendo crescer em minha íris como raízes de uma árvore na terra. Havia outras marcas negras em meu pescoço, letras que para mim eram incompreensíveis.
Sou… eu?
— Sim… as coisas ainda estão presas em mim, porque eu, quero dizer, você… que confuso.
Eu… ele sorriu para mim.
— Eu sei o que há, e sei que você vai se sentir melhor quando vomitar tudo isso para fora… Me perdoe pela dor que nós te causamos no passado… — A voz igual a minha ficou mais pesada e parecia se dividir em dois tons, uma lágrima desceu pelo olho fechado.
— Mas quem é… são vocês?
O rosto idêntico ao meu tinha lágrimas descendo e um sorriso gentil.
— Ousia e… Volusia, até breve, Sammy. — Sua voz de dois tons parecia se distanciar e meu outro eu também se desfez em areia preta.
Observei o monte de areia que, há poucos segundos, era uma réplica exata de mim, enchi minha mão com ela e deixei escorrer entre meus dedos. Forças dentro de mim, foi o que Elmir havia me dito. Deixei os pensamentos de lado enquanto percebia que meu sonho ainda estava acontecendo, todos ainda estavam fazendo suas coisas, exceto por minha mãe, que me observava com um olhar gentil e paciente. Respirei fundo, deixando meu sorriso de sempre sair e acenando em uma despedida para ela. Houve um segundo, mas logo ela acenou de volta com alívio nos olhos.
Não posso mais me esconder aqui como no passado, está na hora de acordar.
O lugar pacífico com todos felizes começou a se desfazer como tinta sendo lavada de um quadro, aos poucos informações do meu corpo chegando à minha mente como atualizações. Eu já tive apagões, muitas vezes para falar a verdade, sempre tenho esse sonho perfeito, desde uma lembrança muito feliz até um cenário completamente impossível de acontecer na vida real, mas que, para mim, é maravilhoso enquanto dura. Isso é um desses casos, minha mente me mimando pra que eu possa esquecer as coisas ruins que aconteceram.
Eu preciso acordar.
Flashes de vozes que eu conheço começaram a surgir, primeiro era Maya me pedindo para acordar e depois a voz preocupada do meu avô surgindo. A sensação de ser carregado como um bebê é algo que conheço bem, podia escutá-lo falando coisas em outra língua, o balançar do meu corpo com ele correndo comigo em seus braços, tudo isso chegando até mim como uma memória do meu próprio corpo guardada até que eu as veja. As coisas ficaram mais nebulosas depois de um ponto, flashes distintos de diferentes vozes ao mesmo tempo.
Depois de tudo, veio o silêncio, neblina branca cobria meus pés e ao redor de mim uma clareira com as silhuetas de inúmeras árvores; no céu, muito acima, inúmeras constelações. No centro da clareira havia uma esfera preta e branca que sussurrava para mim, suas cores se moviam de forma amorfa como um líquido e um brilho dourado estava entre as duas, a atmosfera com fragmentos de luz e sombras flutuando sem rumo, eu me sentia confortável. Algo me atraia atrás de mim, uma canção melódica que eu conhecia muito bem saía de um ponto entre as árvores que se abria como uma passagem.
Segui um passo após o outro pela névoa rasteira até chegar onde as árvores formavam uma passagem, a melodia da minha infância soando do bosque escuro onde a passagem dava. Observei a esfera de cores amorfas uma última vez antes de seguir pelo caminho escuro que as árvores formavam, caminhei seguindo a melodia pelo bosque, as silhuetas das árvores ao meu redor sendo apenas sombras, a névoa branca em meus pés sendo a única cor visível. Mais à frente, uma luz surgiu, a melodia saía dela de forma mais clara, me aproximei mais até sentir.
Tudo ficou branco, sem forma até o momento em que senti claramente uma mão acariciando minha cabeça, os dedos traçando formas em meu cabelo. Meu corpo estava seco ao invés de molhado, quente e confortável, com um cobertor me cobrindo até o peito. Meu travesseiro eram as pernas macias da minha mãe, enquanto ela cantarolava baixo e acariciava minha cabeça. Abrindo meu olho apenas o suficiente para ver onde estava, meu quarto estava escuro, com a porta fechada e a única luz vindo do abajur ao lado da cama.
Quanto tempo passou? Pobre Maya… eu estraguei tudo.
Se eu tivesse lutado contra o sono ainda no pier, ao invés de me integrar para ir para meu mundo perfeito, teria sido melhor do que fazê-la ter que ser minha babá. Um caroço estava subindo pela minha garganta quanto mais pensava em tudo, desde o que aconteceu no centro espiritual até o que aconteceu fora dele… eu estou com medo, como se isso fosse a única coisa que eu posso sentir a todo momento. Eu podia ter feito mais do que apenas apagar, eu podia ter feito mais do que fugir para um sonho perfeito.
Eu consegui enfrentar aquela coisa, consegui lembrar daquele dia… eu quero ser mais forte.
Meu lábio começou a tremer à medida que as emoções se intensificavam, o choro que guardei desde o centro espiritual se misturando com o coquetel de emoções que estava subindo. Abri meu olho por inteiro e me virei de barriga para cima para ver o rosto de minha mãe, ela estava com sua expressão calma. Um sorriso nasceu quando meu olho encontrou os dela, mas logo a preocupação também surgiu quando deixei minhas lágrimas saírem. Ela me ergueu de sua coxa para me abraçar contra seu peito, passei meus braços por debaixo dos dela e coloquei meu rosto abaixo de seu queixo.
— Eu estou com medo, eu sempre estive com medo… eu não quero mais te fazer chorar, mãe, eu quero cuidar de você, do vovô, da tia Helen e Milena… eu quero cuidar de quem eu amo, mas esse medo está sempre ali… me desculpa, mãe, me desculpa por sempre te fazer chorar pelo papai, me desculpa por ser tão… fraco.
Ela começou a acariciar minha cabeça, dar um beijo na minha testa e tentar me acalmar.
— Você não é fraco, meu bebê, você conseguiu passar por tanta coisa… a mamãe nunca vai ficar brava com você por chorar, a mamãe nunca duvidou do quanto você sente dor e saudade… a mamãe sabe o quanto você é forte e o quanto você vai ser forte, mas primeiro você precisa entender que esse medo não é fraqueza, você precisa senti-lo e entender que isso não é uma limitação para você e nunca vai ser… é apenas medo, não uma muralha. — Ela me abraçou mais forte, sua transitando entre choro e o tom normal.
Suas mãos se moveram para as minhas bochechas, erguendo meu rosto para ver o dela. Seus olhos caramelos tinham a descoloração dourada brilhando, ela circulava sua pupila e se espalhava pela íris da mesma forma de gavinhas e raízes que acontecia comigo. Eu podia sentir seus pensamentos, mudando de orgulho para tristeza e depois ficaram incompreensíveis. Ela sorriu, seu sorriso iluminando seu rosto como um raio de sol em um dia nublado.
— A mamãe tem muito orgulho de você, muito orgulho do quanto você já superou tanta coisa, você nunca mais vai precisar usar a bengala para andar, porque você foi forte e andava pelo quarto mesmo sem a mamãe te ajudar, você superou tantos desafios e medos, tantas coisas até hoje, Sammy, você é muito forte, eu estou orgulhosa e com certeza, seu pai também está. — Ela beijou minha testa, me deixando colocar a cabeça onde estava e continuar a chorar.
Deixei que os soluços, a tremedeira e as lágrimas saíssem sem qualquer restrição. Pensei em tudo que já passei antes de hoje, o gosto horrível de todos os remédios que eu tomava para aliviar a dor até a bengala que eu usava para andar, pensei em como antes, meu fluxo era tão descontrolado que minha cabeça doía sem pausa nenhuma até que eu aprendi a controlar com ajuda do supressor que agora nem uso mais. Se o medo é apenas medo, então eu posso superar isso, como já fiz antes.
— Eu te amo, mamãe… eu prometo que vou ser forte o suficiente para cuidar de você — falei, erguendo minha cabeça apenas um pouco para ver seus olhos antes de voltar a chorar.
Ela soltou um pequeno riso misturado com um soluço choroso.
— Eu sei, mas até lá, é a mamãe quem deve cuidar de você, tá?
Ela passou os dedos na minha axila quando demorei para concordar com a cabeça, a cosquinha fez meu choro ondular antes de continuar por muito tempo. Minha mãe começou a cantarolar novamente. Quanto mais tempo passa, mais meu choro se reduzia, fortes soluços se tornaram fungadas, o peso em meu estômago se tornou uma sensação vazia, até o momento em que as lágrimas começaram a parar e o cansaço de tanto chorar e ficar acordado surgiu. Meus pensamentos ficaram mais enfadonhos enquanto me deitava de novo nas pernas da minha mãe, seu carinho e canção me levando ao sono.
— É hora de dormir… minha Raposinha.
Seus olhos pareciam estar aliviados junto ao resto de sua expressão, olhando para mim como se eu fosse um diamante. Ergui minha mão para alcançar seu rosto e limpá-lo das lágrimas com a manga do suéter. Ela ameaçava me morder e eu fiz o mesmo quando ela tentou limpar meu rosto. Seu riso retido terminou em um pequeno ronquinho como sempre. Fechei meus olhos e deixei que o sono viesse, junto a ele o que quer que fosse, pesadelo ou um sonho bobo… eu preciso parar de evitar isso.
— Boa noite, meu bebê. — Sua voz soou como um cochicho distante, logo voltando a cantarolar de novo.
Eu vou cuidar de você…