Volume 2

Capítulo 27: O que guardamos

[Sábado, 10 de setembro de 2412, 16:12 da tarde]

Samuel Merial.

 

O vento frio passava pelas árvores, sacudindo suas folhas e chegando até nós como uma brisa gelada. A trilha fechada já havia terminado em uma trilha espaçosa coberta de folhas caídas, as árvores que nos cercavam eram diversas de tipos e tamanhos, os sons das folhas sacudindo e caindo eram o maior que vinha da mata. Maya caminhava ao meu lado enquanto conversávamos, nossas vozes viajando entre as árvores e seus sons. 

 

O sol de antes já estava sendo coberto por nuvens escuras que estavam indo na mesma direção que nós, Maya disse que gosta de brincar na chuva. Durante o início do caminho havia uma certa tensão, mas após algum tempo as coisas foram fluindo entre os assuntos que nós dois tínhamos, ela gostava de conversar, talvez um pouco além do que normalmente estou acostumado… mas até que isso é legal. A maioria de suas perguntas era comum, sobre minha família ou coisas do tipo, foi legal saber mais sobre ela também.

 

A trilha sinuosa parecia  apenas uma linha reta enquanto trocávamos curiosidades, nem mesmo conseguia sentir a passagem do tempo. Maya foi criada pelo homem que encontrei no ponto quando estava na penumbra, Simão. Ela também me disse que algumas outras crianças de fora da comunidade Lunare tinham medo de mim por causa dos meus dons e dos animais que me obedeciam. Essa parte me mostrou um pouco mais da parte que minha mãe havia me dito, somos temidos por nada.

 

Ao menos, foi legal saber que Lunita é apenas um apelido.

 

— Por que você não tenta? Eles só precisam entender o que somos e o que a de diferente em nós, é impossível que todos tenham medo — afirmei enquanto pensava no assunto. 

 

Maya sorriu, ainda olhando para a trilha.

 

— Seu pensamento é fofo, mas infelizmente essa realidade é difícil fora da comunidade. Os adultos até entendem… alguns, mas as crianças que não têm medo, costumam nos tratar de maneira diferente, como se buscassem algo, é… muito chato — ela parecia mais leve ao falar. 

 

Pensei por um momento, eu passei grande parte da vida interagindo com pessoas como eu, então realmente é difícil entender. Todas as vezes que fui à cidade, eu estava na companhia da minha mãe ou da Senhora Helen, acho que a um senso geral de que a comunidade Lunare tem pessoas que nascem com dons místicos e também algumas pessoas frequentam os templos deles, então ainda acho que esse medo seja por não entenderem. Pensei um pouco mais, existem pessoas como nós que são ruins, mas é apenas mais uma pessoa ruim… com dom místico. 

 

Complicado…

 

— Você está certa… acho que ainda tenho que aprender mais sobre isso para falar algo. 

 

Ela virou a cabeça para o lado na minha direção, seus olhos safiras escuros estavam me sondando muito mais do que apenas me encarar. Pude sentir uma energia residual deixando seu corpo, sem massa ou cor, apenas resíduos de energia invisível, navegando dela para mim em uma sondagem. A energia dourada dentro de mim ressoava com esses resíduos, como um cumprimento. Um sorriso se formou em seus lábios, seus olhos focando no cachecol em meu pescoço. 

 

— O senhor Simão me disse que a Família Áurea tem marcas negras pelo corpo, como essas manchas escuras se movendo no seu pescoço. — Havia um toque divertido em sua voz enquanto ela virava a cabeça para frente. 

 

Movi minha mão até onde ela estava olhando e tentei sentir qualquer rastro de energia, mas até lá parecia apenas uma brincadeira. Peguei o canivete que ganhei do senhor Leonardo e usei sua lâmina metálica para tentar ver meu pescoço. A imagem era embaçada, mas realmente tinha uma mancha sem forma se movendo em meu pescoço. Maya começou a soltar pequenas risadas em meio a minhas tentativas de usar a lâmina de espelho, no final desisti, guardando o canivete de volta no bolso.

 

Minstra, isso é normal?

 

Houve apenas o silêncio quando tentei buscar por sua presença em meu fluxo, isso era estranho. No começo da trilha, eu podia senti-la em meu fluxo, ela fazia pequenos comentários e coisas assim, mas agora tudo estava em silêncio, nem mesmo vestígios de sua presença restavam em minha mente. Parei por um momento minha caminhada, Maya parou logo depois e olhou para mim enquanto eu procurava pelos galhos das árvores ao nosso redor. 

 

Cadê Jack e Emi?

 

Ambos nunca me deixavam sozinhos, nem mesmo quando eu ia à cidade com meu avô. Imitei o som de um corvo com a boca, esperando que Jack respondesse como quando brincávamos, depois imitei uma coruja esperando pela resposta de Emi, mas nenhum som além das folhas balançando pela força do vento que aumentava a cada minuto veio da mata ao nosso redor. Minha barriga ficou gelada, nem mesmo suas presenças eu podia sentir como sempre. 

 

O que aconteceu…

 

— Está tudo bem? — Maya tocou meu ombro, sua voz leve como uma pena pousando em meus ouvidos. 

 

Talvez fosse porque eu acabei de fazer doze anos ou talvez por eu ter reivindicado a herança, mas ainda assim, minha mãe avisaria se parasse de enviá-los para cuidar de mim. O pressentimento estava percorrendo minha coluna como um bloco de gelo, senti como se olhos estivessem grudados em minha nunca, não importa para onde ela estivesse virada. Olhei para o céu, entre as copas das árvores, as nuvens escuras já estavam quase sobre nós e avançando. 

 

— Vamos ter que andar um pouco mais rápido — falei, pegando sua mão em meu ombro e começando a andar rumo ao nosso destino.

 

Maya e eu seguimos em silêncio o trecho sinuoso com mais velocidade que o normal, a trilha começou a se expandir mais à medida que as árvores se abriram. Uma clareira à beira de um grande lago com suas margens cercadas por juncos grandes e, ao longe, nele dava para ver uma pequena cachoeira. Um pouco à nossa frente havia um píer de madeira e também tinha a casa onde passei grande parte da infância, um pouco distante da margem. Engoli minhas preocupações para olhar Maya. 

 

— Bem-vinda… eu esperava… — Algo roubou minha atenção, duas presenças estavam na casa… mas meu avô sempre me avisa quando alguém vem para cá. 

 

— É muito bonito… você está bem?

 

— Acho que não. — Foquei meus olhos na casa, sentindo mais as duas presenças ao redor dela. 

 

Fiz um gesto para Maya ficar em silêncio e esperar enquanto comecei a andar em direção à casa, mas Maya me seguiu com uma expressão firme. As árvores que cercavam a clareira deixavam suas folhas caírem e serem levadas pelo vento. Andar discretamente pelo chão coberto de folhas secas e barulhentas seria um desafio se eu não tivesse morado aqui até meus dez anos. A varanda de laje simples rodeava a casa, suas janelas fechadas junto à porta principal confirmavam que ninguém entrou nela.

 

Entrando na varanda, fiz um gesto para que Maya ficasse novamente, mas ela acenou em confirmação e continuou me seguindo quando lhe dei as costas. Vozes se tornaram mais claras à medida que nos aproximávamos da porta lateral que dava em direção ao lago, uma voz era mais fina e a outra um pouco rouca. Nunca vi alguém que não sabia onde achar o lago chegar até aqui, então quem eram essas duas pessoas? Enchendo meu peito de ar, parei de reduzir meu fluxo e virei a esquina da varanda para vê-los. 

 

A primeira coisa que vi foi um garoto mais velho ajoelhado em frente a porta, ele estava mexendo na tranca antes de virar sua cabeça para mim. Meus olhos subiram para ver um outro garoto, seu cabelo loiro pálido encaracolado e pele branca era como o do garoto mais velho, seus olhos castanhos se arregalaram ao me ver e seu braço esquerdo subiu em minha direção. O garoto mais velho se ergueu e se afastou da porta para ficar ao lado do mais novo. Seus olhos surpresos se suavizaram antes de ficarem aflitos de novo.

 

— Espere, Antônio! — O mais velho tentou alcançar o braço erguido do mais novo. 

 

— Durma! — O mais novo fez um gesto que reconheci quase que de imediato, mas tudo que fiz foi esperar que chegasse até mim. 

 

Maya estava atrás de mim com uma mão no meu ombro e a cabeça apoiada no outro, porém ela escondeu a cabeça atrás de mim quando o mais novo gritou. Energia saiu do garoto de cabelo loiro e veio até mim como uma névoa invisível. Ao encostar em mim, senti o desejo que ela carregava e sua função, tentando obrigar minha mente a se apagar e me fazer dormir. Porém, meu fluxo constante apenas desfez a obra simples que tentava alcançar meu cérebro e os traços dourado, azul e vermelho desfizeram o propósito da obra quase de imediato.

 

Lembrei-me do truque que minha mãe me ensinou na biblioteca, uma obra simples para eu usar quando estivesse em uma situação desconfortável. Aumentando a saída de energia do fluxo, condensei meu desejo através da energia radiante e a separei de todo resto como um projétil a ser lançado, unindo lentamente minhas mãos a frente do corpo e mentalizando o símbolo da obra. O encantamento das mãos permitia que eu intensificasse a obra e me ajudava com a concentração. As marcas em minha costela ficaram levemente frias quando a obra  avançou em sua forma invisível em direção aos dois garotos. Seus olhos se arregalaram ainda mais no processo. 

 

— Paralisia — falei para ajudar em minha concentração, finalizando o encanto de mão.

 

Ambos estavam parados da mesma forma que seus últimos movimentos foram feitos, o mais novo com um olhar surpreso e o mais velho com o que parecia ser raiva enquanto encarava o mais novo. Mantendo minhas mãos formando o encantamento, observei o quanto ambos se pareciam e a particularidade estranha que tinham. O mais novo estava vestido com um casaco marrom, mas a manga do braço direito estava murcha depois da altura do cotovelo. O mais velho estava com uma jaqueta com zíper e a manga estava murcha depois do cotovelo esquerdo. São irmãos e… um tem o braço que o outro não tem? Estranho e curioso ao mesmo tempo.

 

Manter uma obra ativa parecia mais simples do que realmente é, a corrente de energia que me conectava a ela apenas precisava de um pouco de atenção. Aprendi isso com minha mãe enquanto estávamos na biblioteca, era muito mais difícil mantê-la ativa para conter alguém quando minha mãe é mais poderosa e habilidosa do que eu, mas esses dois… o mais novo usou uma obra simples e um encantamento de mão, mas tirando isso, é fácil contê-los. Maya ficou ao meu lado e encarou minhas mãos com um sorriso bobo. Troquei meu olhar entre ela e os irmãos.

 

— Que truque legal, você pode me ensinar? — Ela disse sorridente. 

 

— Acho que eu preciso aprender mais sobre ela antes de tentar ensinar… — Foquei meu olho nos dois para ver que não estavam respirando.

 

Como eu regulo a potência da paralisia?

 

Manter a obra ativa era simples após fazer, mas regular a saída de energia era o que a tornava forte ou fraca,e isso é algo especialmente difícil para mim. Tentei segurar a grande quantidade de energia que estava indo para a corrente, mas era como tentar impedir a água de uma cachoeira de avançar apenas com um balde nas mãos. Observei com ansiedade o mais novo ficar com os lábios um pouco mais escuros. A ansiedade correu por mim como eletricidade até o momento em que parei de fazer o encanto de mãos. 

 

Os dois voltaram a se mexer, puxando o ar como se estivessem se afogando, e isso fez um alfinete de culpa me atingir no estômago. Observei meu fluxo interno agitado enquanto a corrente da obra oscilava, fechei completamente a saída de energia do meu corpo, prendendo meu fluxo em mim mesmo... Se controlar uma obra é difícil, como eu vou conseguir fazer isso se nem consigo controlar minha energia? Um calafrio percorreu minha nuca de novo, dessa vez era mais do que a sensação de estar sendo observado… como se algo estivesse atrás de mim.

 

Tanta insegurança, medo e decepção dentro de algo tão frágil… que patético. — A voz áspera parecia arranhar minha mente antes que eu pudesse retornar à realidade. 

 

As coisas pareciam estar em câmera lenta, o garoto mais novo estava vindo em minha direção com o punho erguido e o mais velho estava tentando pará-lo. Antes que eu pudesse colocar meus instintos em ação, Maya interceptou o golpe com uma mão, ela girou e acertou o rosto do garoto com as costas da mão livre e puxou o braço dele para acertá-lo na barriga com uma joelhada. Ela terminou o que parecia uma dança acertando o garoto no peito com as duas mãos, empurrando-o para os braços do mais velho. Observei, ainda atônito, enquanto Maya estava à minha frente, o pressentimento frio sondando minha mente como um disco arranhado.

 

Você é inocente, seu medo e insegurança fazem parte do crescimento, pequeno. — Uma outra voz surgiu, calma e centrada, afastando o pressentimento frio e a si mesmo para o fluxo. 

 

Olhei para trás, rezando para que nada realmente estivesse em minhas costas. As nuvens escuras cada vez mais perto foram a única coisa que vi além do telhado da varanda. Sondei dentro de mim mesmo em busca das duas vozes que apareceram em minha consciência, mas nada além do normal surgiu. Eu podia sentir algo se divertindo com o medo que estava crescendo dentro de mim, mas também havia algo além que estava me sondando. Maya se virou para mim com uma expressão curiosa, tentei parecer bem, mas algo me dizia que falhei. 

 

— O que está acontecendo, Samuel? — Vi uma preocupação pouco discreta surgir em seu rosto. 

 

Mordi meu lábio, tentei evitar assuntos sobre o paranormal para nos conhecer, mas isso realmente é algo difícil de se fazer quando ao fato de que isso me segue. 

 

— Eu… ouço vozes, às vezes… quase sempre, na verdade, eu não sei o que… É complicado. — Ela pareceu entender quando foquei meu olho nos dois garotos. 

 

O mais novo tinha uma marca avermelhada na bochecha onde Maya o atingiu, ele estava com a mão na barriga e uma feição complicada entre confusão e dor. O mais velho parecia irritado enquanto encarava o mais novo, ele virou seus olhos para nós e quase podia ler seus pensamentos, formando explicações para estarem aqui e para o que estavam fazendo. Fiquei ao lado de Maya, minha raiva por eles tentarem arrombar a porta da casa da minha mãe se misturando com culpa por ter sufocado eles com meu péssimo controle da obra. 

 

— Quem são vocês e por que estão aqui? — Deixei meu tom calmo. 

 

O mais velho olhou para mim com algum tipo de reconhecimento, sua feição calma. 

 

— Eu sou Augusto e esse idiota é meu irmão mais novo, Antônio — ele puxou a orelha do mais novo, fazendo soltar um grunhido antes de continuar — o senhor Goro nos deixou aqui mais cedo e disse para ficarmos aqui até que ele viesse nos ver.

 

— Meu avô?

 

Augusto pareceu ter sido iluminado. 

 

— Peço desculpas pelo Antônio, ele tende a fazer burrices de diferentes níveis antes de usar a massa cinzenta do cérebro… e também por tentar arrombar a casa, a chuva parece que será forte e seu avô estava demorando.

 

Passei meus olhos pelo mais novo, Antônio, que estava com um bico enquanto o irmão continuava a explicar algumas coisas. Meu avô trabalha com o exorcismo de espíritos malignos quando está longe do aviário. Ele já levou algumas pessoas para casa, em geral, vítimas dos espíritos que precisavam dos remédios que é impossível se obter em um hospital ou farmácia, mas esses dois têm um cheiro diferente das outras vítimas. Me aproximei da porta que ele estava tentando arrombar com um grampo ainda preso à fechadura, observei as nuvens mais próximas enquanto destrancava a porta com minha chave. 

 

Olhei para os irmãos sem antes conter o meu incômodo, algo que eles pareciam ter notado. Essa casa foi onde eu passei toda a infância depois… depois do falecimento do meu pai, o único motivo de termos nos mudado para a casa do meu avô era que minha mãe estava o ajudando no aviário. Ver essa casa traz diversas emoções, mas vê-la como um abrigo para outras pessoas assim como foi para mim é um pouco… difícil. Convidei Maya para entrar primeiro, seguindo-a com os irmãos em minha cola.

 

A porta lateral dava exatamente no grande espaço aberto do interior, onde o hall de entrada se conectava a cozinha com uma ilha, e à sala logo ao lado com uma porta coberta pelas cortinas. O teto e vigas de madeira escura de sustentação eram visíveis pela falta dos forros, também era possível ver os fios de eletricidade se conectando as lâmpadas e entrando nas paredes para se conectar às tomadas. Guiei os gêmeos para o corredor espaçoso ao lado da cozinha que dava nos quatro quartos da casa e um banheiro no final. Abri a porta do último quarto que estava vazio, duas camas de solteiro e outras coisas o preenchiam. 

 

— O banheiro é logo ao lado, deve haver algo na geladeira se meu avô demorar mais. — Virei minhas costas para eles e me direcionei ao corredor. 

 

— É… — A voz do mais velho falhou enquanto me virava para vê-lo.

 

Ele coçou a cabeça com o braço completo antes de falar:

 

— Obrigado e… desculpa de novo pelo que aconteceu. 

 

Apenas acenei com a cabeça, seguindo a presença de Maya para encontrá-la no meu antigo quarto. Antes de entrar, observei meu reflexo em um espelho acima de um armário do corredor, puxei meu cachecol um pouco para ver a forma escura amorfa se movendo em meu pescoço como uma nuvem preta de tinta, novas pequenas escritas das letras estranhas haviam se formado na lateral do meu pescoço também. Deixei o cachecol cobrir meu pescoço novamente e me encarei, em busca de qualquer sinal para as sensações que eu estava sentindo. 

 

Aquele pressentimento frio retornou, uma massa gelada me sondando, mas dessa vez ele ficou extremamente quente de repente. Pelo espelho, vi as coisas ao meu redor se deformarem, como tinta sendo lavada de um quadro deixado na água. Virei-me para trás para ver o mesmo cenário, mas em uma atmosfera completamente diferente de antes. A iluminação do corredor era cinza e parecia sair do próprio ambiente ao invés do amarelo que vinha da lâmpada, um choro vinha do quarto à minha frente e um arrepio me percorreu ao reconhecer… o meu choro. 

 

O que é isso?!

 

Minha mão começou a tremer quanto mais eu me aproximava da maçaneta, mas consegui ter coragem o bastante para abrir a porta. Meu estômago deu um nó em si próprio ao ver minha mãe ajoelhada com uma versão  de mim mais pequena em seus braços chorando, seu rosto era dolorido como nunca havia visto e lágrimas desciam por suas bochechas enquanto tentava me acalmar… minha lembrança, uma das muitas vezes que chorei em seus braços pela dor ou pela saudade do meu pai. Minhas pernas enfraqueceram quanto mais eu me assisti chorar e fazer minha mãe chorar, antes que uma voz viesse de longe. 

 

— Samuel, você está bem? — Pisquei meu olho algumas vezes para ver Maya à minha frente, sua feição preocupada me encarando. 

 

Desci meu olho para ver um quadro em suas mãos, eu, minha mãe e meu pai juntos na foto.

 

— É o meu quarto… esse é o meu pai. — Apontei para ele no quadro que ela tinha nas mãos. 

 

Ela encarou o quadro antes de se afastar para recolocá-lo no criado mudo ao lado da cama e se reaproximou de mim logo depois.

 

— O que está acontecendo? Você está bem?

 

Eu me afastei até ser parado pelo armário do corredor e comecei a descer para me encolher, passei meus dedos pela cabeça tentando massagear a gargalhada maldita que me atormentava. Eu não sei o que está acontecendo, por que eu estou assim? Eu parei de chorar quando percebi que ele nunca ia voltar à vida, eu parei de mostrar tristeza quando percebi que minha mãe ficava mal por me ver triste, então por que tudo isso está voltando? A gargalhada, como um disco arranhado, parou apenas o suficiente para eu ouvir a voz áspera. 

 

Você quer ser um adulto, quer ser forte? Então me diga em uma lista o quão fraco você é, diga para mim o quanto você é um covarde. — Além do deboche, havia um desdém palpável na voz. 

 

— Cala boca, cala boca, cala boca…

 

Maya estava na minha frente, sentada sobre os tornozelos, e podia sentir sua pena. Eu quero ser forte, mas isso quer dizer que tenho que parar de chorar? Parar de sentir falta de quem me foi tirado? Tentar esquecer o meu passado me faz um covarde? Maya colocou a mão sobre a minha cabeça, a energia prata choveu como pequenos flocos brancos sobre mim. Busquei os olhos de Maya, o que pensei ter visto pena neles, era, na verdade, empatia… 

 

— São as vozes, né? Eu também tive esse problema no passado… posso confiar em você? 

 

Acenei com a cabeça, mantendo meu olho no dela. 

 

— Ainda quando eu era mais pequena, eu queria ter mais pessoas ao meu redor além de apenas as criadas ou professoras. O senhor Simão tentou me fazer ter amizades com os outros membros da comunidade ou com as crianças de fora, mas todas eram passageiras. Essa frustração de fracassos fez com que um espírito maldito se alimentasse desse sentimento que vazava de mim. 

 

Ela parou momentaneamente com uma feição triste. 

 

— Eu pensei que poderia ser amigo da manifestação da minha própria frustração, mas tudo que nasce do ódio e tristeza está fadado a levá-los pela vida. Quando tentei me afastar dessa manifestação do meu ressentimento, ela tentou me possuir e quase conseguiu, mas com a ajuda do senhor Simão eu consegui exorcizá-la… Eu gosto de ficar sozinha porque evito decepções, mas eu aprendi a ver quem gosta de estar comigo. 

 

Ela olhou para mim, seus olhos safiras sendo mais lindos do que o brilho fraco esbranquiçado nascendo da pedra pálida do seu colar. 

 

— Eu gostei de conversar com você, te conhecer, e quero saber mais sobre você… quer ser meu amigo? — disse, sorrindo.

 

Algo dentro de mim se remexeu, entre o som estridente da gargalhada, a voz calma brilhou como um guia em minha mente. Observei Maya com atenção em busca dos sinais de pena ou mentira, mas tudo que vi foi uma garota bonita sorrindo para mim. Com esforço, foquei na voz calma e sua luz guia para chegar ao lugar onde meus pensamentos estavam um pouco protegidos do som estridente. Um riso me escapou, é estranho pensar que eu também tinha medo de decepções, mesmo nem tendo experimentado algo como Maya experimentou.

 

— Quer ser amiga do garoto que escuta vozes calmas nos melhores dias e estridentes nos piores? 

 

Seu sorriso ficou mais largo para mostrar seus dentes como pérolas brancas.

 

— Ter um amigo assim tem suas vantagens, principalmente quando eu gosto do tanto de coisas legais que ele sabe, mas mantém guardado. — Ela agarrou meus braços e levantou, também me puxando para cima. — Vamos tomar banho de chuva?

 

Ela me puxou pelo corredor até a cozinha e depois pela mesma porta pela qual entramos para sairmos na varanda que estava sendo bombardeada pelos ventos carregando água da chuva que estava caindo. O temporal escureceu o dia quase como se estivesse anoitecendo, ela me olhou enquanto avançava para fora da proteção do teto da sacada. Mesmo com a voz estridente em minha cabeça, segui=a para fora e fui bombardeado pelas gotas de chuva caindo aos montes. Pulamos nas poças de água  recém formadas e chutamos água um no outro. 

 

Corremos mais entre as árvores antes que o cansaço nos alcançasse, andamos juntos até o píer de madeira em um silêncio confortável, andando até chegar onde ele terminava, ela se sentou na beira dele e eu fiz o mesmo, a superfície do lago tinha inúmeras ondulações da chuva que caiam sem nenhum intervalo, mas já estava mais calma que no início. Ao longe, na parte que era coberta pelas árvores, caía uma cachoeira entre pedras. Observei ao meu redor, os juncos balançavam com os ventos e então olhei para meus pés acima da água. 

 

Quem é você?

 

O reflexo que me olhava de volta nunca se pareceria comigo em nenhum lugar, escuro como se a noite o envolvesse e com os dourados pálidos. Dentro de mim havia mais do que o medo de ver o semblante em meu reflexo na água do lago, como se uma porta se abrisse na beirada da minha mente. Busquei a voz calma que me acolhia e quase podia sentir seu encorajamento. Suspirei trêmulo com meus olhos fechados enquanto  sentia tudo ao meu redor se distorcer, desde as gotas de chuva até a luz e o ambiente se remontava.

 

Eu nunca tive escolha. 

 

Abri meus olhos novamente para ver o seu intrínseco do meu centro espiritual, a neve caía sobre mim enquanto recuperava os sentidos. Levantei-me para olhar ao redor de onde estava, cercado pelas árvores de tronco azul trabalhado e folhas vermelhas, a fogueira na qual eu estava com Minstra estava mais fraca e os três totens permaneciam inalterados. Vasculhei mais ao meu redor buscando qualquer sinal de Minstra, mas tudo que senti foi a presença fria estranha se aproximando. 

 

As sombras ainda o envolviam e sua silhueta era difícil de discernir entre as sombras das árvores que o cercavam e por que estavam se mexendo. Fiquei atrás da fogueira observando a criatura, mas quando ele deixou as sombras, senti meu coração parar, mesmo que por segundos, antes que voltasse a bater tão rapidamente que parecia querer correr por conta própria. A pele pálida e os trapos brancos que ele vestia eram iguais, suas mãos com sangue escorrendo junto aos olhos laranjas, com a carne ao redor dos olhos deformada como rachaduras negras. 

 

Como… 

 

Ele abriu um sorriso e mostrou dentes amarelos em um rosto velho magro com barba desgrenhada. Mesmo que minha mente quisesse correr, meu corpo parecia travado apenas esperando ele se aproximar. Você não é real, está longe daqui, está longe daqui… Algo percorreu meu corpo além do medo, uma presença quente me abraçando e fazendo com que conseguisse sentir minhas pernas. Me virei e corri, o choro preso em minha garganta se libertando quanto mais força eu colocava em minhas pernas para me afastar dele.

 

O bosque de árvores intrínsecas nunca tinha fim, mas isso nem mesmo importava, apenas quer dizer que posso fugir dele para sempre. Uma raiz prendeu meu pé, cair no chão de terra parecia me trazer as lembranças de quando ele entrou na minha casa. A memória que mais tento suprimir dele enfiando a mão na barriga do meu pai voltou como um trovão, apenas queria que parasse, mas a próxima lembrança era ele segurando meu braço com um sorriso amarelo e senti ardência apenas com a lembrança do dia, o dia em que eu perdi tudo de normal.

 

Apenas tive forças o bastante para me arrastar no chão até uma árvore e me encolher em uma parte côncava atrás dela, e tentei ao máximo suprimir o som do meu choro. Chamei por Minstra, implorei para que ela aparecesse, mas nem mesmo conseguia sentir que isso era útil… assim como eu, todos tiveram que me suportar, meus choros e gritos, minhas deficiências e traumas, tudo isso porque eu sou… fraco. Não havia nada que pudesse fazer para ajudar meu pai, mas e se ele estivesse vivo ao invés de mim? 

 

— Então, eu e sua mãe nos mataríamos por termos falhado em te manter vivo. 

 

Senti algo me acolhendo, um abraço quente pela minha lateral. Um braço passava em frente ao meu peito enquanto passava por minhas costas, enquanto o que parecia ser sua cabeça se apoiava acima da minha. O cheiro era quase tão familiar quanto a sensação, eu me inclinei mais, apenas para sentir a sensação de estar em seus braços, mesmo que em alucinação de medo, eu só queria sentir isso novamente. Pai… eu apenas fechei meus olhos apoiados em seu peito. 

 

Eu estou com medo.

 

— Eu sei, minha Brasinha, mas você nunca estará sozinho, mesmo que apenas uma sensação, uma lembrança ou sonho, eu vou estar aqui para você, assim como para sua mãe. Você é pequeno, Sammy, mas mesmo assim é mais forte do que muitos, então  mostre isso para seus pesadelos, grite tudo o que você tem para gritar… essa é a hora de chorar, de errar, então não reprima mais o que você sente, filho. 

 

Você vai ficar aqui? Comigo?

 

— Não se apegue ao agora, teremos o infinito para passarmos juntos, eu, você e sua mãe juntos com todos aqueles que amamos… mas antes você deve viver, quero que você viva da melhor forma possível, que saiba se defender e bater. Viva, Sammy, viva pelo melhor de si e de quem ama, e honre os que já foram apenas se lembrando deles. 

 

Minha visão estava embaçada enquanto deixava minhas lágrimas rolarem, ele cantarolou para mim e sua presença me acolheu. Seu abraço foi perdendo a forma quanto mais os minutos passavam. Eu queria que ele ficasse para sempre, mas, no fundo, sabia que era impossível, os mortos apenas enviam mensagens àqueles que amam… eu também te amo, pai. Como uma despedida, senti seus lábios em minha testa e uma lágrima também caiu sobre mim. 

 

Sua forma desapareceu, mas a aura quente que me cercava continuava me confortando. Levou algum tempo antes que minhas lágrimas diminuíssem, minha tremedeira ainda permanecia, só que menos intensa e debilitante, o frio em minha barriga ainda existia em sua forma resoluta, o medo se destilava com raiva e dúvida olhando ao redor. Eu sou pequeno… mas ainda estou dentro do meu centro espiritual e posso entrar e sair daqui quando quiser. 

 

Não exatamente. — Uma voz familiar veio do meu ombro direito. 

 

Olhei para a direita, em meu ombro havia uma salamandra rosada. Seus olhos pretos e pequenos se fixaram no meu e sua boca grande se abriu no que parecia ser um sorriso banguela fofo. Suas espécies de antenas atrás da cabeça eram da mesma cor rosada, apenas um pouco mais fortes e seu corpo tinha o mesmo formato larval com quatro patas que nem mostra em livros e documentários. Seu sorriso banguela se tornou mais fofo quando ele começou a mexer as pequenas patinhas da frente como uma saudação fofa.

 

— Oi — complementei o pequeno anfíbio rosado, ainda tentando entender de onde ele veio e por que eu acho que a voz veio dele. 

 

Oi, Sammy, eu sou Elmir, e também sou seu familiar… que maneira complicada de nos conhecer. — Ele voltou a cabeça para frente, apenas o observei em silêncio.

 

Familiar?

 

Eu o peguei com cuidado do meu ombro e o segurei com as duas mãos à minha frente. Sua boca se abriu novamente em seu sorriso banguela, reconheci sua voz como aquela que acalmou meus pensamentos quando ainda estava com Maya, a presença que ele tinha era semelhante à de Minstra em alguns pontos, mas de resto era única… calma e confortável como seu corpo macio e mucoso. Me concentrei, tentando lembrar de qualquer coisa relacionada ao nome familiar, mas nada me veio à cabeça além do comum. 

 

— Você pode… me ajudar?

 

Sua cabeça se moveu para cima e para baixo e, de algum modo, eu sabia que era verdade. 

 

Obrigado… 

 



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