Volume 2
Capítulo 26: Validade
[Sábado, 10 de setembro de 2412, 15:35 da tarde]
Glória Merial.
Recostei-me na cadeira, observando o livro aberto na escrivaninha à minha frente, as páginas com ilustrações e palavras se misturavam para mostrar o conhecimento contido nelas. Olhei um pouco acima da escrivaninha que ficava de frente para a janela, as nuvens cinzas já começavam a cobrir o céu e os raios solares tinham que escapar entre suas brechas. Fechei meus olhos para sentir o calor do sol antes que desaparecesse, aproveitei o momento apenas para respirar.
O mundo está ficando cada vez mais frio, mesmo que haja cientistas tentando explicar isso, é óbvio que é um evento ligado ao místico. O Brasil, antes tropical, agora em parte dos anos é chuva e ventos gelados por praticamente o ano inteiro, com alguns dias de sol uma vez ou outra… Abri meus olhos para ver que o sol que me abraçava já havia sido coberto pelas nuvens escuras, voltei minha atenção para o livro na escrivaninha, ocupando minha mente pelo maior tempo possível.
Ensinar a Samuel como usar a herança será quase terapêutico, mesmo com meu medo do lado obscuro do místico. Depois daquele momento na biblioteca, foi mais um desabafo de mim para mim. Eu quero que ele seja forte e eu sei que ele será, porque eu vou ensinar a ele tudo que puder ser ensinado, tudo que o ajudará… então, que outro tipo de preocupação me assola além do padrão? Eu estou me limitando e, se eu me limitar, também estarei limitando Samuel.
Tenho que ensiná-lo o melhor possível, sobre o bom e o preço do ruim.
Folheei o livro, registrando tudo que seria necessário para ensiná-lo sobre as forças dentro dele. Volusia é uma das forças que está dentro de Samuel, na verdade, que faz parte de Sammy assim como faz parte de mim, mas enquanto eu tenho apenas uma em fusão com meu espírito, ele tem duas, Volusia e uma de suas irmãs, Ousia. Minha pesquisa dentro da parte restrita da biblioteca do meu pai deu muitos frutos, sobre as forças e como suas conexões afetam o receptáculo.
Forças são corpos de energia celestes, Deuses Exteriores, diferente de entidades que possuem uma alma. Forças são uma imensidão de energia consciente, são almas tão grandes que nem mesmo precisam de corpos. É quase seguro afirmar que o pouco que se sabe sobre elas está em grande parte incorreto, mas nem tudo é descartável. O livro à minha frente foi escrito por um receptáculo de uma das forças e ele descreve o que viu em sua conexão com ela. No total, ele descreve que existem cinco corpos celestes conscientes conhecidos como Deuses Exteriores que interagiram com a humanidade em algum momento da história, mas ele apenas descreve bem aquele que o escolheu.
Confortei-me na cadeira enquanto memórias me vinham à cabeça, as forças são energias com autoridades que afetam o plano terreno. Volusia é a força da purificação, ela pode destruir qualquer forma de vida baseada no obscuro ou até mesmo coisas mais profundas que apenas essas, Ousia é dita como a força cósmica, sendo descrita como capaz de afetar o espaço ou o tempo em certo nível. Essas duas são meu foco principalmente porque são parte do Sammy, o problema está em ensinar algo que nem mesmo conheço.
Foquei em meu fluxo interno, fiz meu Sine se deslocar pelo meu corpo carregando os traços de Volusia em seu interior. Acumulei essa energia e amplifiquei os traços de Volusia com Fie, observei em minha mão as partículas vermelhas formarem uma pequena névoa amorfa em minha palma que se movia conforme minha vontade, moldei mais profundamente uma ideia e estruturei a energia dentro dela. Uma esfera vermelha brilhante levitava em minha mão, partículas menores a rodeavam como um anel em volta de um planeta.
Tanto poder… ainda bem que poucos podem usá-las.
Memórias desagradáveis também surgiram com o pensamento, deixei que a esfera se desfizesse e a energia retornasse ao meu fluxo interno. Aquela entidade que atacou minha casa a oito anos estava usando Volusia através de um ritual de servidão, retirando e separando da fonte certas quantidades de energia e colocando essa energia separada sob o comando dele através de um longo ritual obscuro. Os traços de Volusia em meu interior se aqueceram com clara raiva antes de se silenciarem.
Olhos no prêmio…
Esperei que as memórias se desfizessem, pouco a pouco perdendo seus sentidos e retornando a meu subconsciente como artigos passados. Aprender a controlar o poder de uma força é muito mais do que estar em sincronia com ela, como quando aprendemos a ler. Quanto mais nós lemos e usamos essa habilidade aprendida, melhor ficamos em efetuá-la e isso nos permite ver mil cenários em um único texto. Entrar em sintonia pode ser mais rápido do que aprender a ler e escrever, as forças têm consciência, elas nos leem e permitem que possamos lê-las, é quase um relacionamento.
Aprender a usá-las para reforçar nossas próprias habilidades é o meio mais simples, usar suas autoridades é estranho apenas no começo. Antes de tudo, preciso fazer Sammy entender sua própria energia, mesmo que ele seja avançado demais para a idade. Entender seu Sine vai fazer com que ele possa melhorar ainda mais seu fluxo. Ensinar a ele a usar a Radiância vai fazer com que ele entre em um contato profundo com o próprio espírito, e conhecendo meu filho, ele entenderá a lição com o devido tempo.
As disciplinas são profundas e terei tempo para explicar a ele a diferença entre elas. Fato inegável que ele aprendeu rápido a disciplina regular de extensão da aura, Território, mas ainda terei que fazer o teste da esfera de cristal para saber com qual primária ele é compatível. Essa compatibilidade existe com todos os anômalos, o teste vai mostrar qual disciplina Samuel consegue fazer com mais facilidade através da leitura do fluxo. Meus olhos foram para o canto da escrivaninha onde tinha uma caixa de madeira trabalhada, movi meu braço para trazê-la para mais perto.
Até que isso me traz boas memórias.
A caixa tinha inúmeros entalhes que se conectavam, as bordas tinham enfeites de metal dourado escovado e uma tranca simples no meio. Liberando a tranca com um baixo click, abri a caixa com cuidado para ver o que me guardava em seu interior. Uma esfera cristalina um pouco maior que a minha palma descansava no interior aveludado da caixa. Diversas cores se moviam como uma massa amorfa dentro da esfera de cristal e sua superfície tinha sulcos que se conectavam em formas aleatórias.
Lembro de quando fiz a minha leitura.
A leitura de fluxo serve para medir as capacidades e propensão da energia, existem capacidades únicas por diversos fatores, mas o princípio é para medir qual disciplina primária você deve focar. Dentro das disciplinas existem as seis disciplinas primárias, elas são aquelas em que se deve haver o conhecimento para ser bom nos usos avançados da energia por meio autônomo, mas sempre existe uma que se encaixa mais com uma pessoa por diversos motivos. Quando alguém faz a leitura de fluxo, ele descobre qual é sua disciplina primária e é nela que se deve focar.
Resisti à vontade de usar a esfera para ver o efeito que ela teria, fechei a caixa e a recoloquei no canto da mesa para evitar que o desejo crescesse. As esferas são feitas de um material único da fauna e flora oculta, juntando isso a um encantamento complicado e um ritual milenar. Elas são usadas principalmente por famílias nobres para ler o fluxo das crianças. Ela lê um fluxo de cada vez, então, se eu lesse o meu agora, teria que esperar muito tempo para ler o de Samuel. Suspirei, percebendo que já estava ficando sem o que pensar para ocupar minha cabeça.
Marcelo e sua maldita obsessão.
Mesmo tentando afastar os pensamentos a respeito dele e dizendo que não o protegeria dessa vez, de qualquer forma isso vai afetar Sam. Tentei mais uma vez forçar minha cabeça a pensar em outra coisa, desde o resfriamento mundial que se intensifica a cada ano e até mesmo sobre o acolhimento de Armando, mas no final, a raiva que estava dentro de mim conseguia se sobressair deles. Uma única semana… era apenas isso que eu esperava, principalmente na semana do aniversário do Sammy.
Eu estou cansada.
Já fiz mais do que eu podia para ajudá-lo, até mesmo com um espírito guia ele é incapaz de ver o que tem ao invés de ficar se lembrando do que perdemos. Pensei que quando ele começou a se relacionar com Hana isso o ajudaria, mas nem isso… quando ele vai acordar e perceber o que já conseguimos recuperar? Até lá, eu apenas posso esperar que ele perceba suas idiotices e caia para a realidade, sem mim.
Nem tudo foi ruim, lembrar que Armando foi aceito no Lar Áureo faz com que um sorriso nasça em meus lábios. Os cinco Lares possuem uma descrição louvável que define nossos meios de ado, mas entre os cinco, nós somos os que mais tentam passar despercebidos dentre eles, isso faz com que sejamos a que menos acolhe pessoas, tanto por isso estar longe do nosso foco, tanto porque os Áureos são os mais exigentes. Confesso que talvez um pouco demais, mas Armando atendia à principal exigência.
Ele é um bom garoto, um pouco avoado, mas um bom rapaz.
A lembrança que veio em minha mente fez com que um riso me escapasse, algo do dia em que conheci a árvore e reivindiquei a herança sem saber e a chamei de Pôr do Sol. A herança é a conexão com o Eminente Gnosis e tudo ligado a ele ou aos cinco lares, cada lar tem sua própria herança e dentro disso os presentes que elas carregam. Meu pai me manteve no escuro por grande parte da minha vida e se disfarçou como um seguidor da lua para manter a herança áurea nas sombras. Entendo que ele queria de alguma forma me preparar, só queria que tivesse sido mais rápido em me apresentar essa parte para mim e para Vince… e falar mais da minha mãe.
Os pensamentos foram interrompidos por toques na janela que roubaram minha atenção. Levantei-me da cadeira para abrir uma fresta na janela e deixar minha visitante entrar na sala. Um vulto escuro passou pela fresta quase na mesma hora em que eu a abri. Após sua passagem, fechei novamente a janela para evitar o vento frio que estava entrando e sacudindo as cortinas. A ave preta, preta como o céu noturno, voava sem rumo pela sala, passando pelas estantes da esquerda e da direita antes de pousar na mesa de centro.
A mesa vazia com apenas um pano para enfeitar e uma escultura com muitas ramificações, como uma árvore de muitos galhos. O corvo escuro tinha uma descoloração vermelha e escurecida como sangue em sua cabeça que formava um topete de penas pouco discreto, seus olhos pretos com um toque sutil de castanho se fixaram em mim antes que eu estendesse meu antebraço direito para ela. Com alguns bateres de asas, ela se lançou no ar em minha direção e se empoleirou em meu antebraço, acariciei seu bico e topete de penas enquanto a admirava.
— Tempestade… chegando! — A voz que ela emitia tinha um aspecto único, deixando claro que ela não estava imitando o tom de voz de uma pessoa, mesmo que um pouco rouca e ainda falha.
— Você está pronta para conhecer seu companheiro de aventuras, Felicia? — perguntei ainda acariciando seu bico.
— Sam! Samuel! — Sua voz rouca tinha uma animação discreta.
Sentei-me na mesa para acariciá-la, era terapêutico ensinar aves e outros animais com meu pai. Os filhos da mãe Terra possuem ensinamentos únicos sobre os animais. Minha aprendiz, Emma, disse que ela pode sentir o que os animais sentem, influenciá-los e até mesmo compartilhar seus sentidos com eles. Para eles, os animais são parte do mundo e das coisas boas que nascem dele. Os animais para os Áureos carregam um significado mais único, meu pai me ensinou a fazer com que eles desenvolvam pensamentos com a radiância e se tornem ainda mais inteligentes.
Cada família tem sua energia que vem do seu Eminente e cada energia tem suas propriedades únicas. Ensinar Sam a usar as propriedades da radiância é minha função. A energia que vem da minha herança é capaz de melhorar meus pensamentos de uma forma que nem o fluxo pode fazer, envolver nossos cérebros com radiância faz com que pensamentos que levariam horas se formem em segundos, além de outras propriedades únicas. A radiância é uma parte importante para que nós possamos usar uma de nossas melhores criações, os familiares. Suspirei com uma lembrança distante, de quando ainda vivia com meu avô.
Lumela…
Os familiares existem em muitas variedades diferentes, que vão desde espíritos que nos escolhem e usam nossos corpos como portais para a realidade, até a conexão espontânea de um ser vivo amado. É uma tradição dar um filhote para uma criança áurea, ambos crescem juntos e desenvolvem um vínculo único muito mais do que especial, o animal desenvolve pensamentos e uma consciência muito mais clara pela exposição constante à radiação e, no final, nasce um companheiro para a vida toda. Queria que minha companheira estivesse viva… mas aquele asqueroso a matou.
Meu passado se tornou mais leve de se digerir durante esses anos, tanto que, por algum motivo, ele está aparecendo com mais constância em meus pensamentos. Eu já sei o que sinto pelo meu avô e tios… mas minha tia foi a única que me tratou como um ser humano. Gostaria de ter visto os sinais que ela deixava mais cedo, talvez Lumela estivesse viva e minha tia eu e Lumela conseguiríamos fugir com meu pai, mas no final, foi tarde demais. Meu filhote foi morto da maneira mais cruel que ele tinha de fazer e minha tia teve que ficar para trás.
— Será que ela me perdoaria? — Encarei Felicia, seus olhos escuros pareciam saber o que se passava em minha cabeça.
— Você… o… merece?
Fechei meus olhos em busca de uma resposta, mas tudo que tinha era o silêncio.
— Sinceramente… eu não sei. — Deixei minhas palavras serem levadas de volta ao silêncio.
Eu poderia ter voltado à casa dele após me tornar uma mensageira e colocado aquele lugar abaixo, por tudo que ele fez. No final, eu escolhi deixar para lá a verdade sobre a morte da minha mãe, perdida entre um pai com o coração quebrado e um velho com tendências diabólicas e seus dois filhos malditos. Minha tia também tentou ser que nem minha mãe e se rebelar, sendo uma mãe para mim, mas e se depois de tudo… ela apenas desistiu? Algo frio apertou meu coração, mas me senti perdida se foi a culpa ou a tristeza.
Tentei uma vez mais me lembrar dela, minha mãe com seu cabelo loiro trigo e olhos escuros cheios de vida, mas a memória do dia em que eu a perdi também aparecia de forma fragmentada. A memória do dia foi apagada, ou ao menos Vanilo tentou apagar. Com os fragmentos, eu a reconstruí com o que tinha para descobrir que meu avô e tios a mataram e me sequestraram… o motivo? Se casou com um fraco que precisa seguir um Eminente. A lâmpada da sala começou a piscar enquanto minha raiva transbordante dentro de mim vazava.
Respirei fundo, soltando o ar e deixando que a raiva se diluísse para que eu pudesse ver a razão. Essa rachadura em minha vida nunca havia me incomodado tanto como nesses últimos anos, talvez porque eu tenha descoberto que os Marvolos estavam envolvidos no ataque a minha casa de alguma forma, ou talvez meu subconsciente esteja cansado de guardar algo assim apenas para si. Uma segunda vontade dentro de mim se remexeu como se estivesse se espreguiçando, mas meu familiar logo voltou ao silêncio do fluxo.
Preciso espairecer.
Comecei a cantarolar como Vincent cantarolava para mim e depois para Sammy, meus pensamentos tensos pouco a pouco foram se suavizando. A memória do lindo homem de cabelo ruivo avermelhado e olhos verde musgo me abraçando enquanto fazia carinho em Sammy apareceu em minha visão, suas feições um pouco efeminadas, transparência, sua gentileza e seu corpo quente era confortável como um travesseiro. Deixei-me aproveitar essa memória o máximo que podia, apenas lembrar dos momentos em que nós três estávamos juntos era um dos meus céus.
A sensação quente em meu peito se espalhou pelo meu corpo, a tensão havia quase desaparecido, exceto a preparação. Com meu senso astral, senti quatro presenças que eu conhecia bem se aproximando pela escada da biblioteca que dava na porta à esquerda da sala. Uma estava se aproximando devagar pela escadaria do segundo andar, andando tranquilamente comparado com as quatro que já estavam na porta que vinha da biblioteca abaixo. A porta se abriu para revelar primeiro Hana e a pessoa que ela estava puxando pelo braço, Leonardo.
Ela fixou seus olhos castanhos âmbar em mim com preocupação e raiva escrita em suas feições. Leonardo, por outro lado, estava com uma expressão complicada, tentando livrar seu braço do aperto de Hana. Eles ficaram de costas para a porta que dava no corredor do segundo andar, onde a quinta presença parecia esperar. Pela porta da biblioteca, Armando e Emma também apareceram e passaram os olhos por Hana antes de fixá-los em mim. Foi mais rápido do que previ… merda.
Ergui meu antebraço direito para Felícia subir em meu ombro em um único salto, após isso me virei para encarar Leonardo. O rosto do homem moreno robusto estava marcado com uma cicatriz grande na bochecha direita e por um habitual olhar duro, com culpa nos olhos, quando estava aqui… mesmo que ele se culpe por ter autorizado a investigação, meu pensamento lógico me faz crer que provavelmente teria acabado em um final semelhante, mesmo se ele negasse. Respirei fundo, discretamente, para lidar com a raiva naturalmente explosiva de Hana.
— Antes que pergunte, eu não sei onde ele está dessa vez e realmente nem quero saber… — iniciei a discussão, movendo meus olhos entre Hana e Léo. — E vocês dois podem esperar lá fora, se quiserem.
Armando deu um passo discreto em direção a porta, mas Emma o segurou.
— Você deixou ele ir?! Aquele… — ela começou a ofendê-lo das mais diversas formas e, pela expressão de Leonardo, parecia que ela estava apertando mais forte seu braço — Esse outro idiota se recusa a falar onde ele foi, Goro também, você tem que me dizer! Use aquela habilidade de rastrear outros com a herança que vocês têm ou ao menos faça esse idiota falar.
Você é boa demais para ele, Hana.
Olhei de canto para ver Armando com uma feição de preocupação um tanto oculta pela de vergonha. Usar a bússola revela onde ele está para mim como um farol que só preciso seguir, mas Marcelo é inteligente o bastante para saber quando alguém faz isso para descobrir onde ele está. Seria a mesma coisa de avisar que você vai caçar o rato antes de ir caçá-lo, ele vai se esconder e deixar as coisas difíceis para quem está procurando. Passei meu olhar para Leonardo, com um gesto sutil e preciso no significado, Hana entendeu que era para soltá-lo.
— A quanto tempo, Léo, ouvi dizer que você recebeu uma promoção na Ordem… parabéns.
Ele massageou o braço que estava sob o aperto de Hana, seus olhos passaram pelos meus, mas nunca faziam contato direto.
— Estou me esforçando… já senti o gosto de falhar uma vez, nunca mais quero sentir isso de novo. — Sua feição endureceu e cada palavra tinha um peso que eu conseguia sentir.
— E quanto a Marcelo? Foi um acordo de boa fé ou uma chantagem? — Mantive meu tom calmo de sempre para levar a conversa.
Ele olhou de canto para Hana antes de fixar os olhos em mim.
— Um acerto de contas, mas obviamente mandei alguém para auxiliá-lo e ele também obviamente ainda desconhece isso ainda… essa entidade é uma residente e já houve outros encontros com ela, as especulações é que seja um espírito humano de um tempo antigo, o que fiz foi passar o caso para ele como um contratado. E sim, ele me fez fazer um acordo de boa fé para manter tudo no sigilo… até agora. — Ele cruzou seus braços à frente do peito enquanto terminava.
Hana começou a perguntar mais sobre as coisas e tentar tirar uma localização, mas Leonardo apenas dava respostas vagas. Um acordo de boa fé é um jeito eficaz de garantir as coisas, quando as duas partes entram em consenso sobre um assunto e se dispõem a realizar esse pacto a mercê das consequências vindas de fora se quebrá-lo, o acordo é fechado e velado, sem chance de voltar atrás… ao menos, ninguém é tão burro de tentar quanto um homem da Grécia que fez isso. Observei minhas memórias, vendo que minhas suspeitas estavam certas, a princípio.
— Já chega de tanto mistério, qual era a condição para finalizar o acordo? — Puxei uma cadeira para me sentar na ponta da mesa de centro.
Ele me observou com incerteza, se aproximando devagar da mesa para puxar uma cadeira e se sentar também enquanto Hana o dissecava com os olhos.
— Glória, terá que permitir… que eu fale.
Meus pensamentos pararam por um momento, um segundo único de completo silêncio em minha cabeça que parecia se estender por todo o corpo. A raiva que antes borbulhava perdeu o sentido nesse único momento e se tornou enfadonha diante a tudo. Meu ressentimento por sua decisão de sair logo após o aniversário do Sammy se transformou em meras cinzas, esses sentimentos se desfaziam devagar para também se tornar poeira. Meus lábios, involuntariamente, se arquearam para os lados nesse momento de silêncio.
Seu desgraçado.
Houve um momento nesses oito anos em que a vingança deixou de fazer sentido para mim, nos meus melhores dias posso sentir a presença de Vincent em momentos diferentes dos dias. Eu e Marcelo fomos ao cemitério das cinco famílias nas terras do meu pai, guardado por nossos encantos e entidades. Em frente ao seu túmulo, podia ouvir um mero sussurro que me chamava pelo apelido que apenas ele, Sammy e minha tia conhecem, mas Marcelo apenas tinha o silêncio. Nesse dia, eu desisti dessa… Entidade Residente, o ódio apenas se desfez para abrigar algo mais importante.
Mesmo após tudo, tantos sinais e conselhos, eu pensei que ele estivesse fazendo isso por desocupação ou um mero desejo vindo do ódio. Ele realmente pensa que isso é necessário, essa mera condição mostra que ele quer que eu participe disso de alguma forma, mesmo que apenas um breve sim ou não, talvez queira se sentir aprovado ou queira meu voto. A morte dessa criatura talvez traga algo de bom, mas a questão é se realmente vale a pena esse esforço… me abstenho totalmente das suas escolhas, mas dessa vez vou te dar esse voto.
— Você tem certeza de que dessa vez é ele? — Meu sorriso ainda permeava sutilmente meus lábios.
Leonardo apenas acenou com a cabeça, sua feição apenas colocava mais credibilidade no gesto.
— Conte. — Por quem ou pelo que ele vai tentar matar essa coisa, é escolha unicamente dele.
A porta do corredor se abriu atrás de Hana, mas sua atenção estava totalmente em Leonardo. Meu pai apareceu ajeitando as mangas para cobrir meus braços cobertos por marcas com uma expressão tranquila no rosto, Armando e Emma notaram sua presença e Leonardo também o reparou pouco depois. Seus olhos caramelos se fixaram em mim e quase podia sentir ele lendo meus pensamentos apenas por minha expressão. Meu pai entrou na sala para ficar escorado ao lado da porta, seus braços cruzados de maneira despojada enquanto assistia às coisas.
— Cidade de Cairiti, já consertei os pneus do seu carro e pedi para Helen abastecer seus equipamentos, agora vá impedir o idiota de se matar — meu pai disse com seus olhos nas costas de Hana, ele ergueu a mão com a chave do carro dela no indicador.
Ela se virou com surpresa, antes de pegar a chave e começar a andar em direção à porta, até parou de repente no caminho. Eu podia ler um fino véu de energia residual que saía de seu corpo por suas emoções. Dentre a raiva e tristeza estava a decepção. Ela é uma mulher forte em todos os sentidos da palavra, mas Marcelo com certeza está testando essa força com sua obsessão. Ela se virou apenas para me olhar, o âmbar de seus olhos castanhos deixando sua indignação vazar.
— Você vai apenas ficar aqui? Ele… quero dizer, ele pode morrer. — Sua voz tremeu no final enquanto Armando ia até seu lado.
— Se ele for esperto, vai sobreviver, até porque se esse Residente conseguir matá-lo ou capturar ele e isso colocar o Sammy em perigo, ele vai desejar estar morto. — Meu tom saiu mais sombrio do que eu realmente queria, mas no final não mudaria a mensagem.
Seus olhos pareciam entender, mas ainda havia reprovação em sua feição. Ela saiu com Armando saindo após uma abaixada de cabeça e Emma após uma saudação para mim. Senti o peso das minhas palavras quando na sala só estavam eu, Léo e meu pai, e podia sentir Hana, Armando e Emma já do lado de fora da casa. Levei minhas mãos ao rosto, tentando de alguma forma torcer para que tudo desse certo e isso mudasse a realidade de alguma forma enquanto esfregava meus olhos, com certeza a uma forma boa disso terminar.
Se Marcelo morrer, Sammy perde o tio e eu vou perder um irmão. Tudo que posso fazer é esperar, esperar que todos os dias em que eu o fiz sangrar, chorar e implorar em minhas lições o tenham tornado capaz de enfrentar uma entidade residente, e isso é tudo que irei fazer, esperar que ele volte para casa, mesmo que sem um braço ou uma perna, mas que volte com vida. Soltei um suspiro acariciando Felícia em meu ombro, deixei que os pensamentos se silenciassem da mesma forma em que meu pai e Léo estavam silenciados.
Observei meu pai, que estava com um olhar pensativo distante, eu já sabia o porquê de ele ter subido até aqui e ainda estar aqui. Seus problemas com Vanilo Marvolo só vão terminar quando o velho asqueroso estiver com uma de suas balas na cabeça. Enquanto Marcelo é indisciplinado em saber equilibrar seu ódio com o que realmente importa, meu pai é uma história diferente, ele está apenas esperando o momento certo. Ajudei meu pai nessa empreitada por também dividir esse desejo, mas tudo tem seu tempo.
Talvez eu seja hipócrita, mas, sinceramente, me sinto bem com isso.
No mínimo, eu gostaria que Marcelo amadurecesse como meu pai quando percebi que ele nunca largaria o osso da ideia, mas isso também foi escolha dele. Ele queria meu voto para sair nesse dia do ano sabendo o que teria hoje e o quanto significa para mim. Eu dei a ele, qualquer culpa por também estar ajudando meu pai com nossa vingança contra aquele velho asqueroso. Foi quando eu dei meu voto para ele há alguns minutos. Mesmo tentando, minha raiva se recusava a se reacender para dar lugar à preocupação.
Que merdinha mais teimoso.
Os pensamentos sobre os Marvolo me levaram a passar a noite acordada conversando com meu pai sobre isso, era algo simples e que realmente nem tomava meu tempo. A última notícia que descobrimos foi de que minha tia havia desaparecido e ainda está desaparecida. Essa notícia faz algo dentro de mim, além da culpa, se contorcer, como pegar um filme pela metade e mesmo assim saber o final que ele tem. Na melhor das hipóteses, ela fugiu e, no pior e mais provável, está morta.
Meu pai se aproximou da mesa e puxou uma cadeira para se sentar. Os dois se entreolharam com certo reconhecimento ou respeito. Leonardo virou a cabeça para mim, sua apreensão visível mesmo na sua expressão dura habitual. Ele colocou a mão no bolso interno do casaco para tirar um envelope de cor clara. Ele encarou o envelope por um momento e olhei de canto meu pai, olhando para o mesmo com curiosidade igual a mim.
— Eu recebi isso a dois dias, mas o nome de quem deve receber diz claramente Glória ao invés do meu, enviei para o seção de leitura para ver se havia alguma maldição ou praga, mas está completamente limpo… Estou apenas supondo, mas acho que alguém queria que eu te entregasse isso. — Ele estendeu o envelope para mim.
Peguei o envelope claro feito de um papel sedoso ao toque e o virei para ver sua frente. Assim como Léo havia dito, meu nome estava escrito em tinta vermelha logo abaixo de um selo de cera de mesma cor. Observei o selo com mais atenção, uma borboleta estava estampada no selo vermelho, nenhuma inicial ou marca distinta como um brasão, apenas uma borboleta ocupava o círculo de cera vermelha. Tentei sentir qualquer traço de energia oculto nas fibras do papel, mas apenas havia uma energia residual de Léo.
Abri com cuidado para que o selo ficasse intacto para analisar mais tarde. Dentro do envelope havia um único pedaço de papel perfeitamente dobrado. Troquei um olhar com meu pai, sua curiosidade estampada em seu rosto de uma forma quase cômica, e o mesmo podia ser dito do Leonardo. Abri o papel para ver um texto envolto em ilustrações vermelhas, mais borboletas e seus caminhos eram pequenos pontos vermelhos no papel, foquei nas palavras, quase absorvida por elas.
“ Meu jardim, um dia, foi claro antes que eu conhecesse uma sombra verde que trazia consigo o tormento.
Muitos dias passei nas sombras antes que algo adentrasse o, agora, amaldiçoado jardim, uma linda Raposa que trazia consigo um raio de sol.
A Raposinha e eu brincamos, pulamos e confiamos nossos segredos uma a outra, mas o jardim era o último lugar onde a Raposa deveria estar.
O Guardião da Raposa apareceu, um tigre de pelo negro e listras douradas, ele era feroz e trazia consigo o próprio sol ardente em seus olhos e presas. A Raposa tentou me tirar do jardim junto ao Guardião, mas das sombras, a esperança foi sentida.
Um morcego que carregava a maldade como sua aliada emergiu das sombras. A luta do Guardião e do Morcego fez com que mais duas crias do obscuro também deixassem a escuridão maliciosa que nos cercava.
O Tigre saiu glorioso, mas se reteve para dar sua atenção a Raposa. Me senti feliz em vê-los partir… e vazia em me ver novamente sozinha com as crias do obscuro.
Tentei de alguma forma impedir que a Raposinha e seu Raposo fossem atormentados, mas minha voz foi silenciada e tudo que me restou foi o fracasso.
Minhas asas murcharam, mas, em meio ao meu silêncio melancólico, algo diferente adentrou o jardim. Uma criatura que carregava consigo as sombras livres do veneno e malícia, o nobre Cervo, fez com que eu renascesse. Minhas asas, antes murchas, eram maiores e mais lindas do que jamais foram.
Uma mera borboleta eu sou, mas do jardim me libertei e quero tudo o que me foi tirado. Hábito as sombras livres da malícia, mas uma máscara me acompanha quando estou longe do meu novo lar.
Raposinha, a distância entre nós me machuca a tanto, tanto tempo. Prometi a mim mesma nunca levar a tempestade que me segue em sua direção, mas a uma muito grande a seguindo para que eu me permita ficar nas sombras, então preciso agir.
Para minha linda Raposa, Sininho… de sua Borboleta, M.A.VL.”
Observei a carta com a boca levemente aberta, meus olhos estavam levemente pesados enquanto eu tentava assimilar a informação. Meu apelido… Observei os desenhos se movendo no papel em meio ao choque, os desenhos das borboletas batiam suas asas e se movimentavam pela folha seguindo os pequenos riscos. Esta carta só podia ter vindo de uma pessoa. Me deixei sorrir, vendo que, o final menos esperançoso foi possível.
Meu pai estava ao meu lado, Felícia havia deixado meu ombro para ficar a minha frente na mesa. O rosto de meu pai era uma estampa de preocupação pura enquanto esperava eu falar, o observei mais, os traços mistos de seu rosto vazando preocupação, o Tigre da história não podia ser nenhum outro homem, feroz que carregava o sol nos olhos e nas presas. Ao pouco me recompus, a animação dentro de mim se tornava curiosidade e dúvida quanto mais pensava nas palavras do texto.
— É… da minha tia… eu tenho certeza — falei após mais algum tempo.
Os olhos do meu pai se arregalaram ao mesmo tempo em que suas sobrancelhas quase se encostaram em clara dúvida. Lhe ofereci o papel enquanto começava a pensar mais na letra, Leonardo seguiu com os olhos meu pai que estava lendo em silêncio andando pela sala, deixei isso para focar. Se ela está viva, então o desaparecimento foi planejado? Retrata animais de um modo que os Áureos fazem, então quem é o cervo?
Mais perguntas se formaram à medida que eu me aprofundava nas letras, mas no fim eu sabia que fazer isso agora era inútil. As partes mais importantes são deixadas bem claras pela intensidade da tinta, a tempestade atrás de nós é grande o suficiente para ela começar a agir de algum modo. Eu já sabia que havia pessoas atrás de nós e já lidamos com algumas, mas minha barriga fica gelada ao pensar que meu medo pode estar certo. O que enviou aquele residente… o Celeste que estava investigando antes de tudo.
Olhei para Leonardo, seus olhos fixos no meu pai enquanto estavam conversando. Existem poucos motivos que me vêm à cabeça para aquele Celeste querer algo conosco, o primeiro e mais provável que vejo é terminar o que começou, uma espécie de ação que combina com seres orgulhosos. Um também provável é porque seguimos uma entidade que pode ter conflitos com ele, mas nem meu pai sabe responder essa pergunta. Dentro dessas terras, a barreira envia sinais dizendo o que é e se representa perigo, sendo barrado o máximo possível pela mesma.
— Você pode descobrir o que aconteceu? Recebeu outras cartas antes dessa? — falei, encarando Leonardo.
Ele se virou para mim com dúvida.
— Eu tenho muito pouco no que trabalhar, as mensagens são vagas intencionalmente e, se realmente ela fez isso, foi apenas para você entender… A cúpula vive em um caso de ameaça constante contra os Marvolos, eles estão temperando os Marvolo, enviando ameaça escrita nos cadáveres de seus agentes. Se esse desaparecimento foi planejado por ela, então certamente a cúpula estava envolvida e aí poderei estar comprometendo uma missão de execução — a explicação deixava clara suas dúvidas e medos, mas colocando dessa forma faz sentido.
A Cúpula é um círculo alto da ordem dos mensageiros e diferente por um detalhe, eles apenas se envolvem quando o assunto lida principalmente com humanos, uma elite ainda mais secreta, por assim dizer. Todas as informações que Leonardo dava sobre os Marvolos eram precisas e vinham de um único informante infiltrado desconhecido. Eu pensava que esse informante tinha medo de vazarem seu nome ou codinome, mas agora tudo faz mais sentido. Ela estava com a cúpula, seu desaparecimento a quatro anos foi orquestrado.
Pense racionalmente.
Mesmo que meu lado racional perguntasse coisas que nem faziam sentido, com a cúpula envolvida, até mesmo o Velho saberia dos riscos. Comecei a destrinchar cada pensamento em silêncio, podia ouvir meu pai e Léo debatendo, mas me voltei para dentro. A minha certeza de que ela nunca falaria meu apelido para Vanilo era imbatível por diversos motivos, a caligrafia e forma como ela usava os animais para nos representar… ela está viva. Uma informação menos óbvia era: se ela sabe que Leonardo dava acesso a mim, então ela sabe onde me encontrar.
— Ela vai aparecer, é apenas uma questão de tempo e isso significa que a tempestade também nos encontrou… O enviado da Eternidade vai perder seu medo, temos 2 ou 3 anos no mínimo se confiarmos na barreira e, para preservá-la, precisamos nos afastar daqui, filha. — A voz do meu pai carregava preocupação, observando o papel.
Meu coração pulou uma batida e a informação foi rapidamente digerida, sem tempo para meios ou jeitos de contornar isso… afinal, entidades são quase imortais. Deixei meus pensamentos vagarem por instantes, a notícia era boa e também carregava sua bagagem de problemas, mas no final, 2 a 3 anos é tempo o suficiente para preparar Samuel para esse mundo. Meu coração ficou suprimido entre a raiva, tristeza e o que eu tinha que fazer, não posso fraquejar…
— Temos tempo, Samuel vai ser no mínimo um classe dois no místico, apenas quero que ele aproveite o máximo o tempo aqui… tenho coisas a preparar e queria pensar um pouco.
Ambos entenderam a mensagem, Leonardo se levantou para sair primeiro e esperar do lado de fora enquanto meu pai vinha até mim dar um beijo em minha testa e me entregou o papel. Após meu pai fechar a porta que dava no corredor, sobraram apenas eu e Felícia a minha frente na mesa, seus olhos escuros me observando, comecei a acariciá-la com minha mente vazia, apenas trocando olhares com a bela corvo. Por um momento, um vento frio parecia soprar em minha nuca com a ideia de ambos lidando com tudo que habita o obscuro.
— Você tem certeza de que quer isso, Felícia? — Acariciei seu bico.
Seus olhos escuros ficaram mais castanhos antes de sua resposta.
— Ele me traz… besouros gostosos, não joga pedras em mim… Samuel, amigo, eu cuidar de amigos.
Um riso, talvez alívio ou graça, escapou de mim enquanto a acariciava.
— Obrigado, Felícia.
Se minha tia está preocupada com a tempestade que nos segue, qualquer tipo de aliado é útil até que se prove o contrário. Talvez Felícia e Sammy começarem a se conectar seja o sinal de que tudo vai mudar, a infância dele acabou e, mesmo que eu queira me enganar, a adolescência dele se quer existir antes de precisar se tornar um adulto. Sondei tudo ao meu redor, buscando qualquer presença antes de deixar minhas lágrimas descerem para aliviar meu peito.
Obrigado por querer o bem dele também.