Volume 2
Capítulo 25: Tudo ou Nada
Quarta-Feira, 01 de setembro de 2412, 15:00 da tarde. Uma semana e meia antes do capítulo anterior]
Eithor Guile.
As cortinas cobriam todas as janelas, impedindo que qualquer luz ou brecha para fora fosse vista ou sequer deixava que existissem. Deixei meus olhos passearem pela minha sala de descanso, as paredes pintadas em preto possuíam o brasão de minha família gravado em bronze junto a outras formas, o preto terminava em um teto com arcos de pedras vermelhas onde estava preso meu lustre de diamantes. O piso era de jaspe, sua cor como ferrugem complementava as demais cores, ele as enalteceu de certa forma.
Me confortei na cadeira enquanto colocava um livro aberto à minha frente, a madeira preta como carvão estava abaixo de uma película de vidro e ambos abaixo de uma capa vermelha com as extremidades contornadas em cobre. Olhei de relance as estantes atrás de mim que me cercavam, confirmando se o livro à minha frente era o livro certo. A capa de couro marrom desgastada era desprovida de qualquer marcação que ajudasse sua identificação… talvez por isso foi tão caro.
Artigos relacionados ao oculto e ao misticismo costumam em sua maioria ser falsos, porém existem mercados certos para buscá-los e eu sei onde estão. Os últimos oito anos da minha vida têm sido uma brincadeira de pega a pega, onde, se eu for pego, a morte seria o melhor cenário possível para meu fim. Um arrepio percorreu minha coluna como uma unha afiada, subindo da base das minhas costas até a nuca, onde coloquei minha mão. A mesma doeu levemente quando a forcei um pouco.
Aquele maldito enganador…
Minha mão direita costuma ser a mão que eu usava para realizar encantamentos, porém meu último encontro com Leonardo me deixou incapaz disso. Minha pele clara estava marcada por uma cicatriz que formava um glifo que descobri ser um selamento, a cicatriz ia das costas da minha mão até meus músculos e causava uma dor incalculável se eu tentasse mover energia pelo meu braço. Os supervisores deveriam ser apenas estrategistas, por que ele tinha que ser diferente? Porque… Aquele desgraçado conseguiu me enganar mais de uma vez.
Recostei-me na cadeira enquanto massageava minha palma, afastando a imagem daquele confronto. Apesar de estar marcado para morrer pela cúpula e sob ameaça de morte por um celeste, estou me saindo inacreditavelmente bem… preciso viver sob os princípios da evacuação e me tornei dependente dos recursos vindos daquela coi… do Mestre. A estrela de sete pontas em meu braço esquerdo ardeu como uma punição. Mesmo tendo construído uma forma de pensar longe dessa restrição, às vezes me deixo levar.
Fato é… eu posso sobreviver.
Naquela noite, vi o que poucos foram capazes de ver, uma entidade poderosa andando livremente pela terra e também cometi o meu erro ao me submeter a ela. A seita é composta quase que majoritariamente por Cruciros e os poucos humanos são em sua maioria retardatários sem talento para o místico, eles apenas selecionam humanos com dons místicos para os trabalhos e isso reduz muito mais a escala de pessoas úteis. Aqueles com talento que se submeteram a ele neste continente, dá para contar nos dedos das mãos, e unindo tudo, ainda é pouco.
Isso tem tudo para dar errado.
Pensei que ao aceitar isso estaria me salvando de um massacre, mas no final isso se provou ser uma decisão mal pensada onde o ser mais poderoso em tudo isso é a própria entidade. Quando peço por poder, eles dizem que ainda não concluíram a tarefa que me foi dada e que tenho que me provar digno… eu fiz quase tudo, liderei e planejei, mas aquela criança ainda é minha tarefa. Ao invés de arder, olhei com desdém para a marca em meu braço, eu tive que dividir minha mente por causa dessa merda, com um lado eu penso o que é como ele quer que eu pense e no outro posso ser livre.
Tudo que eu preciso, é me livrar do meu braço.
A marca infelizmente vai mais fundo do que apenas a carne, mas enquanto eu me manter individual a ela, posso me livrar do controle arrancando a área contaminada. Ainda sou apenas um portador da marca, o poder que vem dela não se espalha e se mistura ao meu espírito enquanto me mantenho individual e longe dela, mas se eu tivesse usado mais e fosse um completo devoto, seria impossível me livrar disso mesmo arrancando a área em que ela está. Olhei um pouco mais abaixo da marca, onde havia uma cicatriz da mesma cor do lodo, era na forma de um risco.
De certa forma, tenho que te agradecer.
Após aquela noite, comecei a pesquisar sem fim pelo passado em busca daquele nome, Aurora. Olhei ao redor na sala como após um arrepio na nuca como olhos me observando, a sala iluminada pelo lustre estava vazia, com exceção das estantes e livros nela atrás de mim e mesa e cadeiras à minha frente que estavam vazias. Já estou ficando ainda mais paranoico? Foquei meus olhos nos livros que custaram extremamente mais do que normalmente eu pagaria por um, mas minha fonte privada me garantiu que teria tudo de que eu preciso.
Já o li muitas vezes em busca de detalhes que posso ter perdido em desatenção ou mesmo escondidos que preciso de contexto para fazer sentido. Após o primeiro ano, eu já havia entendido os motivos do nome ser sem sentido ou relevância, mas agora eu entendo ainda mais, a Família da Aurora é formada por cinco Lares que servem a seres que se passam como meros patronos e matronas. Eles são entidades que passaram a ser chamadas de Eminentes, um tipo raro que apenas forma vínculos com pessoas que as buscam e atendem seus termos de ética ou personalidades, ao menos é o que o livro mais raso e pouco informativo diz.
Fora que esse tipo é um pouco mais desconhecido.
Enquanto muitos divulgam aqueles que eles acreditam serem seus deuses e focam nas divindades mais conhecidas para servir, esses Eminentes se mantiveram no esquecimento por sua própria escolha e são bons nisso. Parte do livro descreve a visão de um homem que buscou essas famílias para registrá-las em sua anotação sobre os Eminentes, mas tudo que ele descobriu foi como eles querem se manter ocultos. No livro, isso consta de forma óbvia e o autor deixa sua dúvida óbvia quanto ao motivo disso.
Normalmente, as entidades, obviamente nem todas, gostam de ser tratadas como divindades e exaltadas pelo máximo possível de seres, isso as fortalece. Então, quando se descobriu os Eminentes e a forma como eles fugiram desse comum, ele decidiu pesquisar e buscar os segredos desse tipo de entidade. Com o passar das muitas páginas, ele conseguiu saber apenas sobre cinco entidades "Eminentes" que preferiam uma abordagem mais discreta e pessoas seletas ao invés de todos, mas os Eminentes são seres mais diferentes do que apenas esse desejo de se manterem ocultos. Por conta dessa ação de selecionar pessoas específicas, o autor os deu o apelido de Ominis, algo referente ao que cada Eminente dos cinco que ele descobriu representava aos seus seguidores.
Os primeiros que ele conheceu foram os Filhos da Coragem, seguidores do Ominis da Bravura. Eles os descreveram como o próprio título, corajosos e muito fortes. Os próximos foram os Elipses, seguidores da Ominis do Eclipse. Ele os descreve como seres incomuns, abrindo margem para que houvesse mais do que apenas os humanos que os seguiam. Os Lunaris foram um dos únicos que reconheci por serem parecidos com os Lunitas, acabei confirmando que se trata do mesmo grupo em questão. Depois deles vieram os Filhos da Mãe Terra, que também reconheci como os principais habitantes da Amazônia e demais florestas e se intitulam seus guardiões.
Lembro que no começo foram tratados como piada por todos… mas agora ninguém mais entra lá sem avisá-los.
Por fim, aqueles que ele ficou com medo de ir mais a fundo e os descrevia apenas como estranhos, os Áureos, Seguidores do Ominis da Sabedoria. Sempre que leio essa parte, sinto uma enorme insatisfação na quantidade de informações contidas, uma única página apenas para descrever o quanto a presença de um o deixou com pelos arrepiados? Ele os chamava principalmente de feiticeiros ou magos eruditos, o que pra época fazia sentido, mas agora abre margem para muita coisa.
“Aqueles que carregam o sol nos olhos”
Mesmo que as informações sejam antigas e as palavras usadas para descrever também sejam, tenho certeza de que Goro é um Áureo pela descrição dos olhos, mas por que Vanilo me mandaria pesquisar sobre? O ódio que ele sente por Goro é algo que eu já sei, mas o que eu saber mais sobre a pessoa que ele odeia mudaria para mim ou para ele? Sinceramente, não acredito que ele fez isso apenas para me ensinar sobre o passado, mas além de mim, eu saber essa informação está longe de ajudá-lo em qualquer sentido.
Mas pelo menos… algumas coisas ficaram mais claras depois disso.
Eu preciso alcançar o garoto que está nas terras protegidas pela Eminente dos Lunaris, o garoto é neto do Goro e possivelmente um áureo. Além das outras complicações e problemas, seria mais fácil eu apenas cortar meu braço esquerdo e me livrar da estrela, mas se eu fizer isso ficarei preso a um braço selado em meio a tantas coisas que me querem morto… minha fuga precisa de mais tempo e mais recursos do que atualmente tenho acumulado. Enquanto o selo estiver no meu braço, tenho que parecer estar planejando uma forma de pegar o garoto e a ameaça final será feita hoje.
O problema é que as desculpas acabaram.
Se eu atacar, vou ter mais cinco grandes problemas atrás de mim… quão fundo vai esse fosso de merda? Fechei o livro, deixando minha vontade de simplesmente desaparecer sair como um suspiro. Já estou cansado de tanto me mudar, os observadores da cúpula sempre me acham e mandam seus Sem Rostos atrás de mim. Este lugar até que está durando mais que o normal, mas minha mudança já está programada. Foquei no livro à minha frente, deixando minha impaciência preencher a parte livre da minha mente como uma distração.
Quanta demora.
Articulei meus dedos, me preparando para uma reunião que resultará em uma possível chance de subir um pouco para respirar. Antigamente, era eu quem deixava as pessoas esperando, eu até mesmo desenvolvi um estilo único para fazer com que eles ficassem estressados ou desanimados, estou decaindo cada vez mais… que merda de decisão. Apertei logo acima da estrela, apertei até que a dor que sempre sinto em meu braço direito lavasse meu ódio e limpasse minha mente.
Toques na ponta me trouxeram a realidade, respirei fundo antes de construir minha feição que criei para lidar com esse tipo de situação. Esperei até que a maçaneta girou e com ela a porta se abriu. A primeira visão que tive foi um homem alto e robusto vestindo negro como um segurança. Ele foi em direção às cortinas e passou por cada janela verificando a entrada de luz. Sua pele pálida como um cadáver já deixava claro o que ele era, mas a teoria que estava fermentando em minha mente estaria certa?
A próxima a entrar foi uma mulher morena, que mesmo com a pele escura possuía uma película cinzenta e seus olhos eram desprovidos de qualquer cor além de branco. Ela passou seu olhar fantasmagórico pela sala antes de fixá-los em mim, senti um arrepio, mas foi de algo diferente, podia sentir uma respiração quente tremendo em minha nuca e fez com que eu quisesse tremer. Eu sabia! Thereza, sua garota… Antes que eu pudesse sequer processar a informação, fios loiros e pele doente de cadáver entram em minha visão quando Penélope Marvolo adentrou a sala.
Eu estava realmente certo… que merda.
Seus olhos escuros eram os mesmos daquela noite, porém um brilho carmesim habitava o fundo deles e me dissecava de baixo a cima. Fique quieta, nem mesmo respire. Apenas podia torcer para que minha filha escondida atrás da minha cadeira ouvisse minhas súplicas. Se a conheço e conheço bem, ela assaltou meu estoque de poção camaleão… mas por que hoje, filha? Mantive minha expressão calma, retive qualquer sinal de preocupação selado em minha mente.
Penélope se sentou enquanto o grandalhão careca ficou atrás de sua cadeira e a mulher de olhos fantasmagóricos se sentou a seu lado direito. Ela vestia um vestido negro sem decote e mangas compridas, a gola subia para cobrir seu pescoço enquanto linhas de de púrpura dançavam pelo vestido em um tom fraco. Seu rosto continuava quase tão lindo quanto a última vez que a vi, mas a pele quase cinza retirava sua humanidade. Seu cabelo caía sobre os ombros como rios de ouro pálido, mas foquei minha atenção em sua boca.
— Olá, Eithor, o deixei esperando muito? — Sua voz madura vinha até mim como uma distração, mas no final eu vi o que queria ver.
Caralho, eu estava certo mesmo.
— Então é verdade… você foi amaldiçoada com a maldição vampírica — falei sem pensar muito.
Seus olhos adquiriram uma natureza predatória quando um sorriso de canto se formou, as presas que vi enquanto ela falava estavam lá também. A maldição vampírica é tratada como uma forma de conexão com a obscuridade, já que é fruto dela. Mesmo que um vampiro da Estrela de Sangue quisesse transformar alguém, tenho certeza de que nem viva ela estaria e nem seria a primeira opção deles para isso, então como? Encarei seus olhos predadores e seu rosto em busca de uma marca, mas a falta dela apenas confirma minha tese.
A estrela de sangue cuida principalmente de vampiros que tentam se integrar de volta à sociedade, uma espécie de estrela vermelha de dez pontas marca o corpo deles. Mesmo que um transformasse alguém, eles selecionam a pessoa através de um processo próprio, pensam que podem ser humanos novamente apenas se resistirem a sede por sangue… dou um certo crédito, eles parecem ser mais vivos do que esses. Um vampiro obscuro transformou você, então isso significa que você é uma subordinada de alguém.
— Vamos tirar o elefante da sala? Pode perguntar, eu sei o quanto isso parece tentador. — Sua expressão ficou provocativa, clara diversão passando por seus olhos enquanto me encarava.
— Quem foi? Tenho certeza de que Vanilo passou longe de concordar com isso, né? — Mantive o tom baixo para evitar uma resposta a sua provocação.
Sua postura ficou relaxada ao falar.
— O pobre vampiro iludido está morto por definitivo, mas provavelmente você o conhecia como um dos príncipes vermelhos do sul. Quanto ao meu pai… bom, um velho com a mente pequena realmente iria contra isso, mas a coleira de controle que ele tinha sobre mim foi desfeita.
Mordi minha língua, desejando ir mais fundo sobre isso.
— Mas estou aqui por outros assuntos, você tem algo que eu quero e eu tenho algo que você quer, já podemos ir a negociação? — Por um instante, vi sua insatisfação passar por seu rosto.
Cravei minha unha na palma como um alívio, a dor limitava meus pensamentos e mantém minha mente em órbita. Se ela iludiu um príncipe do obscuro vermelho para transformá-la e o matou em seguida, significa que ela é mais poderosa ou no mínimo astuta. Ser uma humana comum a colocava sob as rédeas do Vanilo, ter tanta confiança assim para desafiar um homem que já ordenou a morte de uma filha por menos… Isso é arrogância ou confiança sobre seu próprio poder?
O poder de um vampiro é algo tentador, mas as limitações impostas pela maldição deixam a ideia salgada. Observei com atenção os pensamentos que estavam nascendo para evitar decisões estúpidas. Seria possível cortar ambos os meus braços e apenas teria que esperá-los crescerem de novo, mas ainda teria que fugir por traição e se a Estrela de Sangue descobrir, eu os teria atrás de mim também. Os prós e contras batem de cabeça, mas ainda assim eu teria uma margem maior para pensar.
Levantei-me para ir à minha escrivaninha em frente às prateleiras, senti o aperto discreto de minha filha em minha mão enquanto me seguia, meu coração pulou batidas por preocupação e estresse. Ao chegar na escrivaninha, afastei a cadeira e observei os olhos dos três vampiros me seguindo a cada movimento. Com um movimento discreto acobertado por outra ação, empurrei minha filha invisível para baixo da escrivaninha onde se colocam as pernas. Coloquei a cadeira na frente antes de me virar para as prateleiras.
Depois conversaremos…
Suspirei olhando uma divisão onde duas prateleiras se encontravam, murmurei o encanto de abertura para ver ambas se afastando. A abertura resultante do afastamento dava acesso ao meu cofre pessoal. Com a chave que peguei na mesa e usei para distrair minhas adoráveis visitas, acariciei a superfície do metal escuro antes de colocar a chave na tranca saltada na superfície no meio dela. Um risco se formou no meio da porta de metal, abrindo ambos os lados. Eu quase pude sentir os olhos de Penélope em minhas costas.
Um embrulho de pano velho estava sozinho na caixa de metal, seu interior enferrujado por causa do item que o pano continha. Peguei o embrulho e me afastei do cofre, quase tendo um infarto ao me virar e ver Penélope sentada em frente à escrivaninha, o careca estava levantando atrás dela e sua assistente estava levantada ao seu lado direito com as mãos unidas à frente do corpo. Meus olhos escorregaram para baixo antes que eu me recompusesse e me aproximasse da escrivaninha.
Abri com cuidado o embrulho de pano marrom esfarrapado para ver o livro que minha família passa de geração em geração para guardá-lo. Couro vermelho desbotado fazia sua capa, em suas bordas o couro ficava grosso e escamoso, fazendo parecer que chifres vermelhos emolduravam suas bordas. Um símbolo usado na demonologia estava gravado na testa da face horrorizada na capa frontal do livro. A maldição da minha família… Os Lamentos de Bordô.
Talvez tenham um bom uso para isso… se é que é possível.
Esse livro foi passado de patriarca a matriarca de geração em geração como um objeto que deve ser guardado a todo custo. O fato de ter sido usado por um antigo demonologista que se tornou um servo de um dos príncipes do inferno o tornou uma passagem para maldições e rituais de invocações demoníacas e esse livro carrega grande parte desse conhecimento maldito. Minha família nunca foi um exemplo de pessoas éticas, porém sabemos o risco de até mesmo abrir esse livro.
Olhei de canto para ver o rosto de Penélope completamente encantado, seus olhos pareciam estar vendo um diamante à sua frente. Mantive o livro apenas ao meu alcance, forcei uma limpada de garganta para que Penélope saísse de seu estupor, ela piscou uma vez antes que sua feição voltasse para a máscara de indiferença. Em um caso normal, vender o livro seria impossível, já que não tem valor para se colocar nele, mas ele será mais útil para mim como moeda do que tentar aprender os poderes amaldiçoados que ele contém e acabar como meu avô.
Louco e morto.
— Dê seu lance, instigue-me.
Ela olhou para mim antes de estalar os dedos, seu guarda-costas se moveu para ficar a sua direita e se ajoelhou ao seu lado. Com seus olhos fixos em mim, ela balbuciou algo em um idioma estranho e moveu suas mãos até a cabeça do careca. Os olhos pretos do guarda costa ficaram inteiramente vermelhos e sangue começou a sair de todos os lugares possíveis. A cabeça branca do homem começou a ficar roxa em alguns pontos, a carne começava a se inflar e seus olhos saltaram das órbitas com um som de rolha seguido por sangue.
Meu pensamento mais rápido veio até mim como o desejo de me agachar atrás da mesa. Quando meus joelhos tocaram o chão, um som molhado violou meus ouvidos, dando-me arrepios. Olhei para baixo da escrivaninha, onde a poção já estava em seu fim. Os contornos da minha filha colocando as mãos sobre a boca fizeram o arrepio se intensificar, mas por sorte seus olhos ainda estavam invisíveis. Gesticulei para que ela continuasse em silêncio antes de me levantar lentamente para olhar Penélope.
Saindo da proteção da escrivaninha, a primeira coisa que vi foi sangue e pedaços de carne sobre tudo que estava em cima da mesa. Os miolos e sangue também estavam no chão ao redor da mesa e em Penélope e sua assistente. Olhei para o vampiro morto e sem sua cabeça, apenas a parte de baixo de sua mandíbula restava com alguns poucos dentes com suas presas entre eles e sua língua dando visão para a sua garganta. Observei em silêncio o corpo ainda ajoelhado pendendo para o lado antes de cair de vez.
Ainda bem que não almocei… puta merda.
Contive sem esforço a coceira na minha garganta que estava subindo, mas foquei meus olhos para o que estava nas mãos da assistente. Um jarro com líquido esverdeado estava em uma mão e a tampa na outra. Passei meus olhos para Penélope, que estava com algo em suas mãos. Ela passou o que estava segurando com uma mão enquanto a outra tirava o pote das mãos da assistente. Eu sabia que ela queria o livro, mas isso é mais que insano… é de explodir a cabeça.
— Criaturas incríveis essas que vêm da Penumbra, tanto poder contido em algo tão pequeno, precisei temperá-los com meu novo poder… mas agora, as restrições de um corpo humano comum são incapazes de me prender. — Ela segurou entre o indicador e o polegar uma larva do tamanho de um dedo, a criatura que estava banhada em sangue se mexia de um lado para outro enquanto Penélope a colocava no jarro.
— É isso… que você oferece? — Não consegui deixar a decepção longe da minha voz.
Ela apenas sorriu enquanto fechava o jarro, seu rosto com gotas de sangue a deixava mais ameaçadora de alguma forma. Ela colocou o jarro com o verme sobre a mesa antes de estender seu braço para o lado e puxar sua manga até o antebraço. A pele pálida doente deixava claras suas veias como uma vitrine. Ela passou seu dedo sobre o pulso, o único porém foi sua unha abrindo um corte nele. Observei o sangue fluindo da ferida parar lentamente e o corte se reconectando.
— Eu te ofereço isso… imortalidade, a capacidade de se regenerar sem nenhum tipo de energia ou poção e poder viver muito mais tempo que qualquer homem vive.
— E quanto ao desejo sombrio? Sem um vampiro, nunca representaria ser invencível. Outros vampiros podem vir me caçar em busca de um servo ou até mesmo os vampiros da estrela de sangue? Isso só vai complicar ainda mais minha vida e nem mesmo comecei a me aprofundar nessa lista.
Ela ajeitou a manga com um olhar vazio.
— O que vou te dar é a capacidade de alcançar a criança e cair nas graças do celeste. O parasita foi modificado para ser minha arma pessoal para diferentes usos, um deles é o uso do controle, como você pode ver ao meu lado. — Ela gesticulou para a assistente.
As peças de um quebra-cabeça começaram a se formar na minha consciência. Estalei meus dedos algumas vezes em frente ao rosto da mulher vampira de olhos fantasmagóricos, mas nem mesmo um leve contrair de nariz ou sinal de descontentamento surgiu. Peguei o jarro, vendo a criatura enrolada flutuando no líquido esverdeado em uma espécie de hibernação. Coloquei o jarro sobre a mesa e fixei meus olhos no cadáver do outro vampiro, seu corpo estava tornando muito lentamente pequenas cinzas saindo para o ar.
— Ainda dentro dessa forma de uso, posso ordenar que ele mate o hospedeiro e se mate ou apenas mate o hospedeiro e saia do corpo, mesmo que ele viva pouco sem um hospedeiro. — Ela deu um olhar sem amor para o cadáver.
— E quanto aos outros usos?
Ela sorriu.
— Ele cumpriu uma ordem específica, sem limitações ou restrições biológicas e éticas… Uma criatura sem razão que apenas serve para cumprir uma única ordem e depois morrer. Isso tornaria possível você pegar o garoto de uma terra protegida por uma entidade e ainda se manter sigiloso mesmo se falhasse… um agente suicida que nunca revelará nada.
Os pensamentos começaram a se conectar em uma rede de ideias. O principal problema é a retaliação, mesmo que eu conseguisse colocar as mãos no moleque, teria que haver uma forma de fuga extremamente rápida que é impossível de se realizar debaixo de uma barreira. Colocar uma pessoa lá deu errado de muitas formas e quase fui pego quando uma abriu a boca, mas colocar um qualquer infectado com um parasita que recebe ordens telepáticas… eu só precisaria de uma única oportunidade para ativar o segundo uso.
Quanto à maldição…
Me tornar um vampiro tem seus prós e contras, sei mais que o suficiente para conhecer muitas das consequências que ser um vampiro propõe. Entre elas está a conexão com o obscuro. Enquanto um humano pode resistir e se blindar contra isso, ser o vampiro vai abrir uma rota direta para a obscuridade e terei que fazer a blindagem sob o ataque constante do obscuro. Ser um vampiro é uma balança, eu teria que me equilibrar antes de aprender como transformar a balança em uma muralha.
Um peso grande caiu em minha cabeça como uma faca serrilhada, abrindo meu crânio. Minha filha está vendo tudo isso. Eu desisti de ser um bom pai para ser apenas um pai, Alefe infelizmente é igual a seu avô e... eu, sem vontade própria, sou um capacho daquilo que o domina, mas Thereza sempre foi diferente, igual à mãe dela… talvez por isso ela seja melhor. Afastei meus pensamentos do sentimentalismo e deixei uma fachada inexpressiva sair para esconder essa fraqueza.
Está na hora de uma jogada pensada.
Manter Thereza segura se tornou minha meta a muito tempo e, para minha sorte, eu garanti que ela não tivesse uma estrela. Colocar o parasita em alguém e comandá-lo a pegar o garoto vai dar em dois finais prováveis, o primeiro é o fracasso com a criatura sendo abatida e o outro é a chave para eu conseguir pegar o garoto. O problema é que pegar e ficar com ele são duas coisas muito diferentes. Incluir Goro, Marcelo, Glória e Leonardo nessa equação e garantir que serei descoberto em pouco tempo.
No melhor final, cairei nas graças da entidade ou, no mais lógico, vou ser apenas parabenizado, isso já me garantiria ainda mais tempo e recursos. É muito melhor me preparar para caso dê errado, já que nesta noite um representante da entidade vira até aqui para dar o xeque-mate, fato é que eles precisam que alguém faça e, se eu não parecer estar disposto… serei descartado junto a Alefe, e Thereza vai receber a punição como dano colateral. Se eu fracassar na tentativa, posso usar um dos meus planos de distração para escapar.
— E então… temos nossa finalização? — A impaciência era clara em sua voz.
Ela se levantou para me encarar, suas mãos à frente do corpo como um costume, e reparei que a assistente a estava imitando por estar sob seu controle.
— Sim… um acordo de boa fé, eu te darei o livro e você vai usar seu parasita. Se o plano der certo, você me dará mais cinco deles, mas se o plano der errado, você me transformará em um vampiro e abrigará minha filha em segurança, até que ela encontre a neta de Vanilo e também sua sobrinha… Glória. — Estendi minha mão em direção a ela. — Você concorda com os termos?
Seu rosto ficou amargo, mas nenhuma palavra foi dita. Observei diferentes estágios da raiva passarem por seus olhos e o conflito em que sua mente se encontrava era quase tão visível quanto seu descontentamento. Ameacei afastar minha mão, mas seus dedos se agarraram fortemente ao meu pulso em um aperto forte. Ouvi um suspiro sair de seus lábios, antes que ela levantasse a cabeça com uma expressão complicada.
— Eu concordo com os termos, com uma condição… — Ela puxou meu pulso em sua direção, me levando até ela, que aproximou sua cabeça do meu ouvido.
Suas palavras saíram como ceda carregadas por sua voz até meus ouvidos, o veneno sutil começou a se espalhar pela minha mente como um vírus. Mordi o interior do meu lábio enquanto me preparava para ceder, muitos cenários se abriram, mas o melhor deles era a concordância.
— Eu… aceito a sua condição.
Ela liberou meu pulso de seu aperto e me afastei da escrivaninha. Suas mãos desceram sobre o livro com leveza e o embrulhou no pano antes de virar as costas com sua assistente que pegou o jarro. Ela caminhou até a porta, olhando para o embrulho pela maior parte do caminho, antes de colocá-lo debaixo do braço. Ela parou em frente à porta, sua assistente a abrindo para ela enquanto ela virava a cabeça em minha direção.
— Entrarei em contato quando as coisas estiverem prontas, e também já prepararei um quarto para sua filha abaixo da mesa… Boa sorte para você nesta noite, tolo dos Guiles — ela disse com uma elegância tão profunda que escondia o tom áspero de sua voz.
A porta se fechou e, com ela, minha máscara de confiança caiu. Me agachei para ver Thereza me olhando com seus olhos como castanhas claras, o medo que estava gravado neles estava se tornando desconfiança enquanto eu a encarava. Tentei ficar bravo, tentei de todas as formas me irritar com ela por ter feito o que fez, mas em vista dela, eu sou o culpado aqui.
Estendi minha mão para ela e, após alguns segundos, ela aceitou. Saí debaixo da mesa e a virei de costas para manter sua visão longe do cadáver que estava se desintegrando. Seus cabelos, como molas ruivas alaranjadas, desciam até mais abaixo de seus ombros, seu rosto sardento estava passando da confusão para demonstrar que estava irritada. Ela começou a estapear meu peito e barriga, seus cachos balançavam em meio aos tapas e grunhidos.
Envolvi-a em meus braços em um abraço enquanto ela ainda se debatia, carreguei-a recebendo mordidas e beliscões até a porta. Quando a coloquei no chão, a segurei pelos ombros, fixando meus olhos nos dela. O castanho-claro de seus olhos estava marejado e suas bochechas cheias de sardas estavam vermelhas. O cabelo ruivo claro com cachos caia sobre sua parte de seu rosto enquanto ela me olhava com um olhar enfurecido. Uma leoa, tudo que eu conseguia transparecer era satisfação de vê-la assim.
— Eu tenho um…
— Plano?! Qual é o dessa vez? Vai começar a enumerá-los ao invés de dar uma letra a eles? Você vai me mandar ficar com a mãe da pessoa que você quer sequestrar, e ainda vai me deixar com uma vampira obscura antes disso?! Você enlouqueceu! — Sua voz, mesmo que ela tentasse soar madura, ainda era a de uma criança.
— Um acordo de boa-fé é algo que nenhum ser pode quebrar se quiser continuar vivo. Quanto à Glória… ela nunca saberá que fui eu, e mesmo que soubesse, ela nunca faria mal a você como retaliação…
— AA, você a conhece tão bem! Com certeza, ela nunca faria mal ao cara que quer pegar o filho dela e dar ele para uma entidade fazer sabe se lá o que com ele! A gente pode fugir, temos recursos suficientes para sobreviver!
— Chega, Thereza! Só por um instante, seja que nem o Alefe e vá para seu quarto. — Abri a porta com mais força que o necessário.
Ela começou a remexer seus lábios e quase podia ouvir seus dentes serrando uns nos outros e suas ofensas sendo destiladas entre eles. Ela começou a andar em direção à porta, mas não sem antes se virar para mim com seu melhor olhar de desaprovação. Por favor, facilite para mim.
— Eu nunca vou ser que nem aquele robô, capacho sem vontade própria e você sabe disso, seu… paspalho! — Ela saiu pisando forte pelo corredor antes de cruzar os braços.
É… por isso você é minha favorita.
Suspirei, olhando uma última vez para a sala antes de sair e ficar escorado contra a porta. As palavras de Penélope começaram a se movimentar em minha cabeça como uma agulha em meio a bexigas, mesmo que eu quisesse ter medo pela minha vida, uma única pitada de amor próprio, infelizmente eu era incapaz de ter isso após tantas cagadas consecutivas. Limpei os pensamentos retardatários para formular cada ação após a visita de hoje à noite, eu apenas precisava de uma distração… e eu tenho a ideia perfeita para isso.
Tudo ou tudo… está na hora de sair das sombras.