Volume 2
Capítulo 30: Cerimônia
[Domingo, 11 de setembro de 2412, 08:22 da manhã]
A luz das velas oscilava quando o senhor Simão estendeu o pano, que estava dobrado em suas mãos, ao redor de Maya. O pano cobriu o corpo de Maya de um modo que apenas sua cabeça e pés eram visíveis. Eu me virei de costas para ela para dar privacidade enquanto eu mesmo tirava minha camisa por pedido da minha mãe e Maya precisava fazer o mesmo. Aquela tinta do líquido jade era para escrever na nossa pele, esses sigilos parecem ser uma parte importante do ritual.
Minha mãe começou a escrever em minhas costas, o pincel com tinta fria se movendo em padrões únicos por minha coluna. Quando minhas costas estavam cobertas pela escrita, ela se moveu para minha frente, continuando a escrever na minha barriga, costela, pescoço e até minha cabeça e braços, a letras eram estranhas para mim, mas, ao mesmo tempo, pareciam familiares. As letras pequenas no meu corpo, algumas são idênticas a esses sigilos e outras muito diferentes.
Quando minha mãe terminou de escrever os sigilos, ela acariciou a minha cabeça e foi em direção à Maya atrás de mim. O senhor Simão apareceu ao meu lado com o rosto também virado para a parede, seus olhos leitosos se moveram para mim e um sorriso pequeno surgiu em seu rosto. De alguma forma, eu sentia que ele conseguia olhar para mim mesmo parecendo ser cego. Se ele tiver que se virar para dar privacidade para May, talvez apenas seus olhos sejam brancos.
— O senhor… consegue me ver?
Seu sorriso aumentou e ele soltou uma risada.
— É claro, não se deixe enganar por meus olhos, consigo ver muito bem… não tanto quanto vocês, mas muito perto.
— Então, por que seus olhos são assim?
Ele fez um bico pensativo por alguns segundos antes de responder.
— Você sabe o que acontece quando entramos em contato com os seres do outro lado do Véu?
Pensei por um momento, lembrei-me da minha própria situação com as marcas negras por meu corpo e a descoloração dourada em meus olhos. Se conectar com algo do outro lado do Véu faz com que mudanças aconteçam com o que ou quem o faz. Se para mim foram as letras estranhas e a cor dourada nos meus olhos, para ele seriam os olhos brancos? Pensei um pouco mais, lembrando que todos os Lunaris que eu conheci tinham mechas grisalhas como a Maya.
— Ocorrem… mudanças com base no que nos conectamos? — Pensei em voz alta.
— Exato, a conexão com nossa Senhora deixa nossos cabelos brancos ou até nossos olhos, a conexão para vocês deixa o Mural e olhos com o anelete dourado, fora as outras coisas que a conexão com um patrono causa a um Adepto.
— Adepto? Pera, o que é o Mural?
O senhor Simão puxou a manga de sua camisa, a pele morena era marcada por inúmeros símbolos negros de formas complexas. Ao contrário de mim, que tinha as letras pequenas em todo lugar, os símbolos de seu braço eram reclusos e pequenas letras só ficavam ao redor do símbolo maior como cercas. Encostei meu dedo no símbolo e o contornei com a ponta do dedo. Comparei as letras de seu braço com as que havia de forma ordenada pelo meu corpo, algumas eram semelhantes, outras iguais e o resto era diferente.
— O Mural é um presente único para os Áureos, aprender uma Obra da Irrealidade é absorvê-la e, com isso, a marca dela se forma nos corpos de quem as absorve. Para se criar uma, é um processo longo chamado de Ritual de Construção. É como se todas as marcas e letras pelo seu corpo facilitassem de aprender ou criar qualquer ritual ou obra, desde que saibam o que estão fazendo e como fazer.
Ele fez uma pausa.
— Quanto a palavra Adepto, bom, é o que somos, qualquer um que siga uma entidade e tenha uma conexão com ela é um Adepto, por exemplo: eu sou um Adepto da Dama Lunaria, você um Adepto do Senhor Gnosis e nós todos aqui dentro desta sala somos Adeptos das Cinco Grandes Famílias e os Eminentes que nos guardam.
Eu conversei muito pouco com minha mãe sobre essa nova parte da minha vida, sinto que há coisas que eu já deveria saber sobre… Gnosis. Ao menos eu me contento em saber que as entidades do outro lado existem em variedade, tão grande que são catalogadas por títulos nos livros que li, vão desde Ecos sendo espíritos residuais nascidos de energia transitória até os Celestes que são seres fora da curva e sem muita explicação. É como se a vida, mesmo no anormal, tivesse espécies diferentes de entidades… isso é legal.
Deixei meus pensamentos de curiosidade me levar para quando meu avô me disse que essas marcas… o Mural, é uma espécie de registro da nossa história. Observei as pequenas letras que ontem pareciam estar mais bagunçadas e hoje estavam mais ordenadas, movimentei meu fluxo interno para cutucar algumas letras com o meu Sine, cada pequena letra era feita da Radiância da herança. Essa energia respondia a meus comandos, parecia deixar meu Sine mais forte de alguma forma.
Na verdade, parece que meu Sine está mais forte.
Antes que eu pudesse observar mais minhas dúvidas, notei o senhor Simão se virando enquanto escutava minha mãe colocando a tigela de tinta na mesa. Me virando, a primeira coisa que vi foi Maya em pé com a manta cobrindo seu corpo com exceção de sua cabeça e pés, seu suéter de duas cores e camisa estava no canto da mesa ao lado meu, suas bochechas e testa tinham sigilos iguais aos meus desenhados na tinta jade escurecida. Minha mãe deu uma das esferas de cristais para May e a outra para mim.
— Primeiro será a Maya, mas isso vale para os dois, deixem sua energia fluir para a esfera e apenas para a esfera enquanto estiverem no meio do ritual, entenderam? — Minha mãe explicou.
Eu e Maya concordamos com a cabeça, o senhor Simão acariciou a cabeça da Maya antes dela ir ao centro do ritual e se sentar sobre os calcanhares. Observei com atenção a esfera em sua mão recebendo sua energia. Por algum motivo, eu fiquei incapaz de sentir a energia no corpo da May e desconfio que seja por conta dos sigilos que minha mãe escreveu, mas quando ela começou a colocar energia na esfera, eu senti. Minha mãe começou a soar um cântico e o senhor Simão também.
Incrível…
As velas de cor branca e fogo normal mudaram lentamente para uma cera de cor roxa e seu fogo ficou roxo também. Observei como havia uma energia invisível aos olhos saindo das linhas do chão e de cada glifo ou sigilo, essa energia era uniforme e ficava apenas dentro do círculo grande onde todas as outras formas estavam. Observei como a energia da Maya estava deixando a esfera para seguir as linhas por todo o círculo. O que parecia ter sido alguns minutos de hipnose se acabou quando um fogo roxo surgiu em duas tigelas.
Uma tigela das três que estavam uma em cada ponta de um triângulo dentro do círculo do centro se acendeu com o fogo roxo. A tigela com a esfera negra que parecia um céu estrelado e o líquido cor de jade foi a que se acendeu perto dela. A outra tigela que se acendeu foi uma das seis que estavam nas pontas do Hexágono, ela sendo a que havia uma tesoura e um pedaço de pano. O fogo roxo tinha uma tonalidade espectral e logo se apagou quando minha mãe e o senhor Simão pararam de recitar o cântico em língua estranha.
Maya se levantou e caminhou até o senhor Simão, que a abraçou. Ela se virou para mim e notei que seus olhos iam para minhas cicatrizes antes de mudar de direção muito rápido. No passado, até o fato de estar sem minhas bandagens seria mais aterrorizante. Dei um sorriso apaziguador para ela, seus olhos pareciam muito mais curiosos do que enojados, mas o meu foi atraído para outra coisa nela. A esfera em suas mãos, que antes tinha cores amorfas mudando constantemente, agora era apenas uma esfera transparente opaca do tamanho de uma palma.
Maya seguiu meu olhar e soltou um suspiro ao ver sua esfera sem movimento ou cor, apenas uma bola de vidro opaco. Observei a minha com certa preocupação, que se dissolveu ao ver que ela ainda tinha as cores amorfas se movendo dentro dela. O senhor Simão soltou um riso que chamou a minha atenção e a de Maya. Ele parecia estar se divertindo com nossas confusões e demorou um pouco antes de explicar.
— Não se preocupe, a esfera funciona como uma forma de conexão e para isso ela dá a energia contida dentro dela misturada com a da pessoa que irá fazer o ritual para que a energia da pessoa não seja drenada. Quando a esfera é drenada, leva alguns dias para ela se recuperar.
Senti a mão da minha mãe em meu ombro e ela sinalizou com a cabeça para o círculo. Concordei com a cabeça, olhando uma última vez para Maya antes de seguir. Caminhando até o centro, onde havia os três pratos centrais, a lembrança do que Minstra havia me dito na noite em que reivindiquei minha herança veio até mim. As Três Visões são os três elementos primordiais do astral dos quais todos os outros se ramificam. Me sentei no meio do triângulo dentro do círculo central do ritual, observei as três tigelas mais próximas à minha volta.
Essência, Cosmo e Real, as Três Visões.
A tigela à minha frente tinha os ossos do meu tataravô e pedaços de folhas com um cheiro de erva medicinal flutuando em algo vermelho… sangue? Movendo minha cabeça para o lado, observei a tigela da esquerda que tinha uma pedra mineral com terra e cristais brancos do que julguei ser sal, e na minha direita tira a esfera preta como o céu noturno com o líquido verde jade que se acendeu em roxo para Maya. Os três elementos reagem com formas diretas com conexão, minerais para o Real, ossos, sangue e ervas para a Essência e para o Cosmo, tudo que pode ser maior do que aparenta.
Soltei um suspiro, deixando minha atenção cair na esfera em minhas mãos, movi a energia do meu fluxo interno para minhas mãos para acolher a esfera. Desde que minha mãe colocou esses sigilos no meu corpo, é como se minha energia estivesse presa em uma garrafa e minhas mãos fossem o bico, por isso eu fui incapaz de sentir a energia dentro da Maya e só senti quando ela colocou para fora na esfera. Comecei a colocar energia dentro da esfera para ver o mesmo processo que aconteceu com Maya.
Os sigilos impedem que sejamos drenados.
Vendo como a energia estava começando a surgir dentro do círculo enquanto os cânticos começam, essa mesma energia vinha até mim como um ímã. Colocar energia dentro da esfera foi mais fácil do que quando aprendi o truque da moeda com minha mãe, a absorve nossa energia que só sai pelas mãos e os sigilos impedem que a nossa energia saia de outra forma. Observei como a energia em minha volta tentava se aproximar e como ela era repelida quando encostava em mim, mas não quando encostava na esfera.
Notei a energia da esfera de cristal ser drenada junto à minha que coloquei lá, suas formas amorfas perdendo a intensidade até começar a ficar opaca como a de Maya estava. A energia invisível que me rodeava começou a se dispersar pelas linhas do grande ritual e me senti quase em transe, observando como isso acontecia. Quando a energia se dispersou pelas nove tigelas, núcleos de energia se formaram e vieram até mim. Dentre todos, dois se destacavam e todos pararam na esfera, como se esperassem que eu abrisse a porta.
Fiz como minha mãe me ensinou há muito tempo, absorvendo a energia de dentro da esfera e movendo-a para meu fluxo. Ainda com meus olhos fechados, senti que esses núcleos liberaram fios de energia que se moveram por meu fluxo interno após adentrarem meu peito. Cada fio levava a uma ponta e tinham seis no total, com um sendo mais forte que os demais. Abri meus olhos para ver algo interessante, da mesma forma que duas tigelas se acenderam em um fogo espectral para Maya, também se acenderam para mim.
As tigelas acesas eram diferentes, assim como a cor do fogo que estava queimando dentro delas. Muitas velas mudaram para pretas como chama verde e outras tinham a cera branca com a chama negra e estavam entre as velas roxas. A tigela com os ossos do meu tataravô estava com uma chama verde intensa com uma luz negra no centro, as cores dançando pelo fogo espectral. A segunda tigela estava com um boneco de porcelana que também tinha o mesmo fogo saindo da tigela. Quando os cânticos pararam, a energia invisível desapareceu junto ao fogo dentro das linhas e sigilos no chão.
Meu corpo ficou estranhamente mais leve enquanto me levantava do chão, virei para caminhar em direção à minha mãe que me esperava. Seu sorriso era dividido entre orgulho e preocupação, mas apenas a abracei ainda tentando entender o que aconteceu. A liberando do abraço, vi Maya me observando com curiosidade e um sorriso. Seus olhos se movimentavam pelo meu corpo e fiz o mesmo para ver as pequenas letras se movendo pela minha pele. Encarei minha mãe, que apenas observava com seu sorriso discreto.
— Isso é normal, o mural está registrando as disciplinas absorvidas, só precisamos tirar os sigilos agora. — Ela acariciou meu rosto.
O senhor Simão se aproximou com Maya ao seu lado.
— Bom… agora os meninos vão sair para dar privacidade para as meninas, certo? — O senhor Simão perguntou com um toque de provocação.
Acenei com a cabeça antes de pegar uma toalha que minha mãe me ofereceu, também pegando minha camisa e suéter antes de seguir o senhor Simão para a escada caracol. Olhando uma última vez para Maya e minha mãe, segui Simão até a área restrita da biblioteca, o cheiro de livros velhos e energia fazia o ar parecer mais fresco para mim. Seguindo até a parte com a mesa e cadeiras de madeira, me sentei para começar a limpar a tinta da minha pele. O senhor Simão me ajudou limpando minhas costas e a toalha, antes uma cor rosada, agora tinha inúmeras manchas de cor jade escurecida.
Colocando de volta minha camisa e suéter, demorou pouco até a sensação incômoda de limitação desaparecer completamente. Aproveitei o momento para olhar a área restrita com mais atenção, as estantes que rodeavam o único espaço livre ao redor da mesa cheiravam a energia dentro dos livros, a madeira escura estava desde a mesa e cadeiras em que eu e o senhor Simão estávamos até o piso e teto e também as estantes. Estou aqui dentro… o que será que esses livros têm para me ensinar.
Investiguei meu fluxo interno com a mesma curiosidade com que observei as estantes, notando os seis fios que saíam do meu fluxo. Estudei cada um antes de cutucá-los com minha energia. A princípio, nada acontecia, mas quando cutuquei o fio mais intenso, foi como se minha energia inteira tremesse e minha mente parecia estar sendo puxada pelo fio até um símbolo estranho que apareceu antes de sumir quase no mesmo instante, junto à sensação que durou apenas um pouco mais. Sacudia a cabeça, piscando ambos os olhos, isso fez Simão rir.
— Está investigando essa nova sensação? É um pouco confuso no início, mas logo você vai se acostumar.
Encarei o homem de olhar sereno.
— Eu pensei que você fosse uma pessoa comum com uma Patrona muito boa.
— Uma pequena mentira, se não machuca, ofende ou magoa ninguém, não faz mal, né? — ele disse com um sorriso.
Sondei mais o homem, o normal é que eu consiga sentir a energia da pessoa como um sonar. Normalmente, todas as pessoas têm uma presença feita de energia residual que vaza do fluxo, até mesmo os comuns têm essa presença, apenas é mais fraca. Sondar o senhor Simão era como se eu estivesse sondando um comum, a energia em seu corpo era tão fina que realmente eu o confundiria com um comum, mas procurei um pouco mais. Dentro dos cinco princípios do controle de energia, existe uma forma de controlar a presença.
Omissão, reter toda a energia dentro do fluxo e fechar a saída de energia.
Procurar a saída de energia é simples, já que a energia vem do fluxo e a porta de entrada e saída fica no coração, o problema é que, se a porta está fechada, é impossível ver o ponto de convergência. Por um momento, fiquei com inveja, a capacidade de fechar a saída de energia para o fluxo interno é algo que sou incapaz de fazer, apenas posso reduzir a saída, mas isso ainda me deixa com uma presença muito perceptível. A energia vem do fluxo e ela entra em nossos corpos pelo coração, esse é o ponto de convergência, tudo que eu teria que fazer é fechar.
— Como o Senhor faz isso?
Sua feição oscilou em curiosidade.
— Fechar a saída do fluxo para o fluxo interno, como o Senhor consegue? — perguntei de novo.
— Tenho certeza de que você já deve conhecer o pequeno poema nada musical: A água vem da chuva que nunca termina, a água se represa e uma nascente que forma o riacho que desce a floresta. O Fluxo é a chuva que nunca termina, energia constante descendo de nossos espíritos que desce até o ponto de Convergência e depois desce até nossos corpos, misturada com nosso sangue saído do coração.
— Sim, mas…
Ele ergueu um dedo ainda com uma feição tranquila e minha boca se fechou.
— O fluxo é a conexão de nossos corpos com nossa alma e isso é impossível de se fechar, a convergência é onde os dois pontos se unem e o fluxo interno é um derivado dessa união. Você está olhando o fluxo de forma errônea, o fluxo é a conexão, mas o ponto de acesso é a convergência, tente… e verá.
Fazendo o que ele disse, fechei meus olhos e deixei a energia em meu corpo me guiar até meu fluxo… a minha conexão. Indo mais fundo em minha concentração, usei a energia que saía dessa conexão como um rio no qual eu estava remando em uma completa escuridão, guiado por meus instintos e pressentimentos. A paisagem mudou como quando entrei em meu centro espiritual. De novo, um chão sob meus pés, constelações infinitas acima da minha cabeça e um bosque de árvores sombrio ao meu redor com uma névoa incolor cobrindo meus pés.
A esfera no centro da pequena clareira formada pelas árvores e escuridão que nos cercavam continuava a mesma, braço e preto dançando sem formas com o dourado no meio. Deixei meus sentidos se elevarem, sondando a esfera que sussurrava para mim palavras sem formas e tons incoerentes… é um reflexo, uma passagem por onde a energia entra, pensei ter visto a convergência antes, mas na verdade era isso. Os sussurros sem formas que chegavam até mim eram minha própria voz, meus próprios pensamentos.
A energia no ar apenas precisava da minha orientação, toda a névoa estava sob meu controle e tudo que eu precisava fazer era querer. Como se tudo se desfizesse lentamente, voltei ao mesmo estado de antes, porém sentir meu peito e a energia que saía dele era diferente… mais íntimo e claro, como se uma passagem existisse em meu coração. Eu desejei que a saída aumentasse e assim aconteceu, meu coração liberando mais energia em meu sangue a cada bombeada. Então desejei que esta energia retornasse para dentro, observei sem perder um único segundo.
Domínio Mental, princípio do controle da energia através da mente, é o primeiro princípio a ser aprendido.
A energia em meu sangue, Sine e Fie, sob meu domínio, obedeceu e corria por minhas veias e músculos até chegar ao coração. Uma parte da passagem imaginária se abria para receber a energia em meu corpo enquanto outra deixa um fino fio de energia fluir para meu corpo, alimentando o fluxo interno. Nunca foi sobre fechar completamente a passagem, era na verdade para achar o ponto exato do controle de entrada e saída. Mesmo que a grande quantidade de energia querendo fluir para meu corpo fosse cansativa de segurar, eu estava entusiasmado demais para deixar isso ser um incômodo.
Ainda é difícil conter tanta energia, mas já é algo!
Deixando todo o controle mental que estava exercendo na passagem, me senti satisfeito, tendo aprendido mais sobre os princípios iniciais. Abri meus olhos para ver o senhor Simão com um sorriso de orgulho me encarando, notei também minhas mãos trêmulas pelo esforço em controlar tão precisamente minha energia e conter a avalanche que constantemente queria sair, mas no final valeu de algo… algo muito bom. Visualizar uma passagem em meu peito deixava as coisas mais fáceis, diferenciar o fluxo como sendo algo que vem dessa passagem deixava minha mente mais leve.
— Parece que os meninos estão se divertindo. — Minha mãe estava se aproximando, com Maya a seguindo logo atrás dela.
O senhor Simão se levantou da cadeira, passando a mão pelo meu cabelo antes de se afastar um pouco da mesa em direção à Maya.
— É sempre uma sensação completamente inexplicável de felicidade quando vejo as crianças aprendendo, mas infelizmente o deve tende a nos chamar… Maya, te confio nas mãos capazes da senhora Glória, a obedeça e se divirta com seu novo amigo. — Ele virou a cabeça para mim. — Quanto a você, vá a comunidade algum dia, nossos templos sempre estão de portas abertas para te ensinar.
Ele fez uma referência para minha mãe e, quando ela fez a mesma coisa, ele se virou para ir embora em direção a escada caracol.
— Obrigado! — Minha voz o alcançou, mas ele apenas deu um aceno de mão, continuando seu caminho para a escada.
Maya se sentou ao meu lado, onde o senhor Simão estava, e minha mãe se sentou do outro lado da mesa, de frente para nós. Voltei minha atenção para ela, me ajeitando na cadeira. Maya pegou minha mão enquanto eu tentava bisbilhotar o livro que minha mãe tinha aberto a sua frente. Virei-me para Maya e ela estava olhando as costas e depois a palma da minha mão. Depois que viu ambos os lados, ela fixou seus olhos na minha outra mão. Suas mãos agarram o meu braço em uma velocidade incrível, ela fez a mesma inspeção que fez com minha outra mão, mas dessa vez ela soltou um som fofo de comemoração.
Ela é fofa.
Eu estava admirando seu rosto e ela ainda estava encarando as costas da minha mão direita. Quando ela virou sua cabeça para mim, nossos olhares se cruzaram. Suas bochechas ficaram um pouco avermelhadas e ela me mostrou sua língua. Mostrei a minha abrindo meu olho direito para pegá-la de surpresa e funcionou… de uma forma diferente. Antes que eu pudesse fechá-lo, ela se aproximou mais para vê-lo, o que fez o calor no meu rosto aumentar.
— Eu pensei que você tinha perdido seu olho, ele é bonito, por que você o deixa fechado? — perguntou, voltando para a própria cadeira.
Me recompus antes de responder.
— É como se… eu estivesse olhando duas coisas ao mesmo tempo quando ele está aberto, então eu deixo um aberto e fecho o outro.
Ela parecia pensativa antes de fixar os olhos em mim.
— Antes eu tinha problema em controlar a energia da herança, mas eu aprendi como sintonizar ela com a minha e transformar ambas em uma só… talvez você só precise sintonizar sua visão.
Minha mandíbula afrouxou enquanto eu absorvia o que Maya acabara de falar, sua ideia simplesmente brilhante que eu provavelmente nunca teria tão facilmente assim. Quando eu abro ambos os olhos, a visão do olho esquerdo se sobrepõe à do direito porque eu gosto de ver as cores e formas além do branco e preto do olho direito, então, quando ambos estão abertos, eu escolho o esquerdo e o direito tenta se sobrepor também. Talvez a ideia de Maya seja apenas uma esperança, mas se eu conseguisse sintonizar as informações dos dois olhos… talvez.
— A expressão que ele faz quando está pensando é fofinha, né? — Minha mãe comentou.
— Uhum.
Maya e minha mãe estavam me encarando com seus sorrisos semelhantes, ambas me olhando como um urso de pelúcia. Desviei minha atenção para minhas mãos até notar o que May estava encarando antes, isso com certeza não estava aqui. Trazendo minha mão direita para mais perto, inspecionando o símbolo complexo marcado nas costas da minha mão. Olhei para Maya, que levantou a mão esquerda e mostrou as costas dela para mim. Havia um símbolo igual e diferente com a mesma complexidade que havia na minha mão.
Ambos encaramos minha mãe, que estava com um sorriso nos observando. Ela tirou duas folhas de papel em branco do meio das páginas de seu livro. Com uma caneta de um dos copos da mesa, minha mãe começou a desenhar em uma folha e, quando terminou, começou a desenhar na outra folha. Esperei para ver que ela havia feito dois símbolos diferentes em cada folha, os dois lembravam os símbolos na minha mão e na de Maya. Ela deixou a caneta de lado e colocou as duas folhas, uma na minha frente e outra na frente de Maya.
— Seria mais fácil se ambos tivessem a maior conexão com o mesmo elemento, mas rituais gêmeos são mais fáceis de lidar e explicar.
Observei o símbolo no papel e fiquei comparando com o que tinha em minha mão.
— Rituais gêmeos, o que isso significa? — Maya perguntou.
— O Ritual de Cerimônia, ou luz guia, mostra a maior afinidade da pessoa com a leitura do fluxo, os elementos são: Cosmo, maior conexão com o que vem do astral e sua imensidão, Real, maior conexão com a instabilidade de tudo que existe, e a Essência, maior conexão com tudo que tem vida e encontrará a morte. Cada humano com dom místico, nós, tem conexão com esses três elementos, mas a sempre uma conexão que se sobressai por ser mais forte que as demais, criando uma escada que começa com a conexão mais forte e termina na conexão mais "fraca", por assim dizer.
— Então a cerimônia foi para descobrir quais elementos nós temos maior conexão, mas ainda não explicamos a parte dos gêmeos? — A pergunta de Maya fez um sorriso astuto nascer na minha mãe.
Ela gostou dela… acho que isso é ruim.
— Gêmeos por um motivo simples, usamos os mesmos círculos e matérias para fazer a cerimônia de ambos, os ossos do avô do Sammy, meu sangue e as ervas favoritas, uma esfera de cristal que Simão disse que você gostava de brincar, fora outras pequenas coisas. O ritual é feito, normalmente, para a cerimônia de apenas uma pessoa, mas quando se misturam as matérias do jeito certo, dá para cerimoniar duas pessoas a quem os materiais estão conectados, logo…
— Gêmeos — Eu e Maya terminamos de falar.
Deixei de observar o símbolo em minha folha para olhar o da folha da Maya, da mesma forma complexa ele estava desenhado, mas a cor era diferente. Lembrei-me do símbolo das Três Visões, tinha um olho de cada cor que Minstra me mostrou, um é preto e verde, outro é roxo e o último é laranja, cada cor representando um elemento diferente e sendo desenhados como um olho estranho e cheio de símbolos. Esses símbolos no centro são os elementos, o meu é de tinta preta e verde, Essência, o da Maya é roxo, Cosmo!
— Minha maior conexão é a Essência e a da Maya é o Cosmo, né?
Maya olhou para mim, surpresa.
— Como você sabe?
— Minha professora me mostrou…
Minha mãe parecia alheia quanto mais Maya fazia perguntas sobre minha outra professora, que ela acreditava ser minha mãe a única. Na verdade, minha, em meio a meus olhares de pedido de ajuda, estava desenhando mais um símbolo em outra folha de papel e notei que ela estava com um sorriso no rosto, provavelmente me deixando ser indagado inúmeras vezes pela própria diversão… cruel. Ela finalmente ergueu a cabeça, com o novo símbolo desenhado em uma outra folha de papel.
Ela colocou o símbolo no meio da mesa, da mesma forma que os nossos, ele lembrava um olho feito de cor laranja com inscrições negras. Eu e Maya observamos em silêncio ela entoar algo em outra língua, a luz de onde estávamos oscilou e uma sensação fria abraçou meu corpo enquanto assistia marcas negras aparecerem em seu pescoço e mãos, subindo e se espalhando como era comigo. O mural dela… é tão bonito, as marcas formadas pelas pequenas letras se estabeleceram em sua pele.
— Vocês têm o mesmo símbolo na mão… e na testa. — Maya comentou, apontando para a própria cabeça.
Minha mãe estava me olhando, parecendo um pouco envergonhada, subi meu olhar para ver o símbolo que Maya disse. Em sua testa estava uma marca difícil de explicar e bonita de se ver, algo que se parecia uma letra rúnica dentro de um círculo incompleto. Tateei minha testa mesmo sabendo que era incapaz de sentir o símbolo com as mãos. Eu sorri e minha mãe também sorriu para mim, tentei sentir seus pensamentos, mas estavam fechados.
— A marca está aí, mas agora precisamos focar — disse.
Concordei com a cabeça.
— Os três elementos existem dentro de nós como uma forma de conexão, a conexão com nossa alma nos dá a Essência, a conexão com o outro lado nos dá o Cosmo e a conexão com a realidade nos dá o Real. Essas três conexões existem dentro de nós e são partes do que somos, mas como já disse, existe uma mais forte que a outra que só se torna relevante quando tentamos usá-las externamente, sendo chamados de: Ponto maior, Ponto médio e Ponto menor, eles variam de pessoa para pessoa, mas suas posições nunca mudam.
— Samuel tem em seu ponto maior na essência, os outros dois são: ponto médio, o cosmo e o ponto menor, o real. Já Maya, tem seu ponto maior no cosmo, ponto médio na essência e ponto menor no real. Esses pontos nos dão a luz para sabermos o que devemos ou não tentar focar em nosso crescimento para uutilizá-os na energia com base nesses pontos, e antes que perguntem, sim, esses pontos podem variar de pessoa a pessoa, como eu tenho meu ponto maior na essência e o menor no cosmo.
Eu e Maya apenas a encaramos e usei sua pausa para pensar. Meu ponto maior é com a essência e o menor no real, o que isso tem a ver com a tigela do boneco que se ascendeu? Mantive essa pergunta presa por provavelmente minha mãe ainda estar chegando nessa parte da explicação, observei minha mão mais uma vez com mais uma dúvida surgindo, essa marca é apenas para saber qual minha maior conexão ou para ajudar a ampliar ela? As letras inscritas me lembram runas de passagem que eu vi em um livro.
— Para ensinar a você sobre os elementos, preciso ensinar a vocês como podem se conectar com eles. Foquem no papel à frente de vocês, façam com que o fluxo interno se infle com energia e entoem: Hic sentio, hic auspicio, hic facio.
Foquei meu olho nos três desenhos, meus sussurros e os de Maya se misturando enquanto entoava o cântico que minha mãe disse. No primeiro minuto, deixei que a passagem de energia em meu peito se abrisse mais e mais energia caminhasse por meu corpo. Parecia estar dando errado quando senti algo diferente, focando mais minha mente no símbolo da Essência, meu Sine parecia estar se agitando. Em um momento, meu Sine estava diferente de antes, pensar e fazer se tornaram a mesma coisa, meu corpo começou a tremer levemente.
Normalmente, os pensamentos são o que premeditam uma ação e, se premeditam, quer dizer que ocorreram antes, mas até mesmo pensar ficou mais simples. Era como se minha mente estivesse em harmonia com meu corpo, minha capacidade de escutar os pensamentos das pessoas ficando mais intensa, ouvindo a voz da consciência de Maya e até mesmo da minha mãe com mais clareza do que jamais fui capaz de ouvir. Fechei meu olho para controlar o volume dessas vozes, me recordando dessa sensação de harmonia na forma do símbolo.
Os símbolos do esotérico guardam muito poder, eles são divididos em sigilos, runas, glifos e muitos outros. Pelo meu entendimento, as runas são ótimas para conduzir energia como cobre é ótimo para conduzir eletricidade, sigilos são ótimos para armar uma conexão e glifos são bons para arquitetar a energia, todos eles são o que compõe rituais e essas coisas, mas quando um já está formado e carrega algo para ser absorvido, é chamado de Regalias. A obra simples que usei para paralisar o menino, eu tive que absorvê-la para poder usá-la.
Quando reabri meu olho, no que parecia apenas segundos para mim, me vi olhando para baixo e com uma sensação quente na mão. Observei a mesma mão agora com a marca que eu estava encarando antes gravada nas costas dela e todas as outras marcas do mural brilhando levemente em branco e preto. As letras estavam se reorganizando ao redor do símbolo da essência brilhando em verde. Ao lado dela estava o símbolo do cosmo brilhando levemente em roxo e ao lado dele o símbolo do real brilhando também levemente em laranja. Os símbolos ampliam os elementos no meu Sine, é por isso que precisava absorvê-los.
Me sinto estranho.
Olhei para o lado ainda um pouco cansado para ver Maya encarando as costas de sua mão, os símbolos dela brilhavam em roxo. Quando eles pararam de brilhar e voltaram à cor negra, ela olhou ao redor como se saísse de uma hipnose e nossos olhos se encontraram. Sorri para ela, mostrando as costas de minha mão, e ela fez o mesmo para mim. O símbolo do cosmo estava na ponta, o da essência na ponta direita e o do real na ponta esquerda na sua mão. Ambos olhamos para minha mãe, que estava em silêncio com seu sorriso de sempre.
— Agora posso me aprofundar mais nos elementos até chegarmos às disciplinas… vamos continuar então.