Volume 2

Capítulo 20: Como tem passado?

[Sábado, 10 de Setembro de 2412, 01:02 da madrugada]

Glória Merial.

 

O vento sereno entrava pela janela e sacudia as cortinas do quarto. A luz da lua estava ofuscada pelas nuvens de chuva, mas ainda banhava a noite com um pouco do seu brilho. Passei o olho pelo quarto do Sammy para encontrar um lugar quase inteiramente arrumado, com exceção da escrivaninha com livros abertos e jogados em uma pequena bagunça.

 

Quantas vezes… deixa para lá. 

 

Sentada na beira da cama, puxei seu edredom um pouco mais para cima para cobrir seu peito. Seu rosto calmo trazia o desejo de me deitar ao lado dele para dormir, mas infelizmente nessa noite estarei ocupada. Acariciei seus braços enquanto traçava meus dedos por suas cicatrizes. A coloração vermelha levemente rosada nas estremidades, as formas dela eram semelhantes a correntes, traziam flashes de dias bons e ruins. 

 

Logo ele perceberá que essas cicatrizes só o deixam mais bonito. 

 

Deixei o incômodo de lado para focar em seu rosto. Hm… parece que já está acontecendo. O lindo rosto emoldurado por cabelo  vermelho um pouco escurecido, tinha outras cicatrizes no lado direito do rosto, elas cercavam seu e foi o ferimento que tirou sua visão do olho direito… Essas cicatrizes emolduravam seu olho direito e desciam um pouco mais para chegar perto da bochecha.

 

— Parece que ela já está te ensinando sobre a herança… — Passei meus dedos por manchas escuras se movimentando em sua pele. 

 

Observei enquanto as manchas escuras se movimentavam em seu rosto, indo em direção a seu olho cego e cicatrizes. No silêncio da minha mente, notei que surgiu um pico de energia em seu peito, a presença que eu tanto amo ficou ainda mais nítida para mim, a herança apenas melhorou o que já era bom. A presença de Sammy estava com os traços de energia áureo mais evidentes, algo que com certeza foi amplificado pela herança. 

 

— O caminho vai ficar mais difícil, meu bebê, mas eu sempre vou estar aqui para você… Bons sonhos, minha Raposinha. — Beijei sua testa enquanto lutava contra o desejo de ficar. 

 

Levantei-me da cama para arrumar seus livros e, depois de arrumá-los, virei-me para a porta. Antes de sair, voltei meu olhar a ele, mesmo em seu estado mais profundo de inconsciência, posso sentir os vestígios de sua curiosidade. Destilei energia com a Volusia em meu fluxo e dei a ela a forma que estava em minha mente, movendo a forma de poder pelo meu braço, assoprei a palma da minha mão junto a ela para o quarto.

 

A atmosfera do quarto se iluminou com flocos dourados e vermelho, os desenhos de tinta dourada do teto se acenderam fracamente também. O ar carregava o vestígio da minha presença de uma forma mais sutil, mas Sammy saberá que eu estive aqui. Ele começou a resmungar sons sem sentido, o que me fez rir, mas sai do quarto antes que meu desejo de ficar ganhasse.

 

Segui em direção à presença de Marcelo, que estava vindo do primeiro andar da casa. A sensação quente de felicidade perdeu sua intensidade enquanto descia a escada, preparei-me para as notícias que Marcelo contaria e suspirei ao perceber que isso poderá levar a noite inteira. A força Volusia remexeu em minha mente, sua voz como um pensamento lúcido na minha cabeça.

 

As coisas estão ficando caóticas.

 

O pensamento se formou quando cheguei à sala de estar. Gostaria de dizer que as coisas melhoram nesses oito anos, mas o incêndio foi apenas um começo para tudo… Já nem sei mais se dá para consertar as coisas que estão sendo quebradas lá fora, mas meu objetivo é fazer com que Samuel possa ser forte.

 

Forte o suficiente para se defender nesse mundo.

 

E isso significa ensinar mais a ele sobre o sobrenatural… merda.

 

Parei em frente à porta de metal no canto da sala de estar. Nenhum som ou luz escapava das frestas da porta sólida, o metal escuro tinha inúmeros grifos com os símbolos auritas escondidos nos cantos. Coloquei minha mão sobre o metal e sussurrei a chave de entrada para a porta. Houve silêncio antes de os mecanismos internos começarem a ranger, a porta se destrancou e a empurrei com uma mão enquanto pensava em Samuel. 

 

Eu quero ensiná-lo, prepará-lo para o que pode acontecer… mas tudo que é ligado ao paranormal também é ligado à obscuridade. Até um anômalo que escolhe ter uma vida comum também está sujeito a ela, de maneira menos intensa, mas ainda assim sujeito a ela. Tudo que entra em contato com ela é atormentado e aqueles que têm mais cicatrizes sofrem mais. Sei que Samuel será forte, mas imaginá-lo ter que passar por tudo isso é… doloroso.

 

A porta deu em uma escada curta para o subsolo da casa. Enquanto descia, notei as paredes de tijolos ao meu redor com inúmeros desenhos dourados. Enfim, cheguei à entrada do depósito de meu pai, olhei para a porta da entrada para ver que ela se fechou sozinha de modo surpreendentemente silencioso. Logo na entrada, eu conseguia ouvir a voz do meu pai e a do Marcelo, ambos conversando enquanto eu entrava.

 

A sala era grande demais para ser classificada apenas como uma sala. A entrada ficava na parte alta, onde havia uma mesa retangular com cadeiras, tinha prateleiras cheias de livros ao redor e um quadro de escrita. O resto da parte alta era composta por prateleiras de madeira escura que também carregavam centenas de livros e alguns objetos.

 

Meu pai e Marcelo estavam sentados na mesa, um de frente para o outro. Eles se viraram para mim com um convite em seus olhos, olhei para a parte baixa da sala que era dividida por uma escada de dois degraus, havia uma área livre com estandes de armas brancas que usávamos para treinar. Atrás da área de treino havia mais prateleiras, mas elas estavam cheias principalmente de caixas, sendo o real depósito. 

 

Me sentei na cadeira na ponta da mesa, podendo estar perto dos dois ao mesmo tempo. Meu pai pegou minha mão para beijar e Marcelo se recostou na cadeira com um aceno de cabeça. Os revólveres de ambos estavam na mesa junto a outras coisas. Após beijar minha mão, a atenção do meu pai se voltou inteiramente às folhas de um possível relatório à sua frente. 

 

Marcelo parecia alheio a tudo enquanto olhava para o teto. Ele envelheceu pouco, apenas com suas feições ficando mais maduras e começou a treinar mais seu corpo. Os olhos azuis ficaram mais escuros e ganharam o anelete áureo ao redor das pupilas, que fica mais nítido quanto mais ele adentrava e conhece os ensinamentos auritas. Logo, logo, sua íris teria um tornado dourado que a cobriria quase por inteiro. Seu cabelo penteado para trás e barba trabalhada deixava clara sua inspiração no meu pai.

 

Uma pulga surgiu em minha orelha. Ele nunca fica mais do que um dia e só faz isso em datas festivas para passar tempo com Sammy, então por que ele ficaria aqui por tempo indeterminado agora? Eu quis evitar alarde perguntando isso mais cedo, mas agora é um bom momento. Um pressentimento se formou e torci para estar errada, mas sinto que vou me desapontar.

 

— Como estão as coisas lá fora? — Quebrei o silêncio da mesa. 

 

Ele se virou para mim, mas foi meu pai quem respondeu.

 

— As peças estão sendo jogadas, as famílias nobres estão ficando ousadas quanto mais a caçada se aprofunda… aquela seita está causando problemas, por enquanto a maior parte desse jogo está acontecendo no estado de Cedro… mas prevejo que vão se espalhar. — Ele tinha seu olhar focado nas folhas, uma expressão pensativa mascarando seu rosto. 

 

— E é por isso que você vai ficar por “tempo indeterminado para ensinar coisas ao meu sobrinho”, hein? — Me virei para Marcelo com uma sobrancelha arqueada. 

 

Ele remexeu os lábios com uma feição pensativa antes de responder.

 

— Me sinto um tanto ofendido com sua desconfiança… mas é verdade, essa é uma chance que tem tudo para dar certo.

 

Apoiei meus cotovelos na mesa e juntei minhas mãos para escorar minha testa. Fechei os olhos em um longo suspiro enquanto emoções profundas se remexiam dentro de mim, a fagulha do meu pressentimento sendo confirmada apenas com uma palavra gerava uma sensação distorcida de orgulho. A mesa ficou em silêncio completo, na verdade, a sala inteira ficou tão quieta que eu podia ouvir até a eletricidade das lâmpadas.

 

Meu Fluxo constante tremeu com as emoções profundas e deixei isso acontecer. Eu deixei minha vida como mensageira para focar em minha conexão com Volusia e nosso patrono, fiz isso pois sabia que era o melhor para mim e para Sammy e, no final, eu consegui me fortalecer como se fosse um brinde. Marcelo treinou infernalmente nos últimos oito anos, alcançando um grande nível de poder. 

 

A questão são os objetivos que se divergem. O sentimento profundo do meu desejo de vingança pelo que aconteceu com Vincent existe, mas começar isso agora me forçaria a ficar até o final de tudo e tomaria o tempo que eu poderia estar com Sammy. Marcelo caça aquela criatura desde que meu pai lhe permitiu voltar para a ação, foi ele que descobriu a ligação do incêndio com o culto problemático que está crescendo.

 

Isso é uma parte do problema. 

 

Eu tentei simpatizar com essa obsessão, mas eu já percebi que é uma questão de tempo para a criatura se revelar. O ponto que acho o fim da linha é arrastar Armando e Hana com ele. Ver que ele tem a companhia deles me deixa calma quanto à sua segurança, mas ver também que ele os leva consigo para algo tão perigoso faz minha cabeça ferver. Me recompôs enquanto meu fluxo deixava de oscilar e o sentimento profundo adormecia novamente.

 

Apenas respire… se começar uma discussão, levará a madrugada inteira.

 

— Se a criatura está aqui, significa que ele foi enviado como batedor ou líder de um grupo? E quanto aos Guiles? Você disse da última vez que viu um padrão de movimento.

 

Meu pai e Marcelo trocaram um olhar de dúvida antes de falar. 

 

— O padrão de movimento, junto ao que descobri quando… conversei civilizadamente com um membro desse culto, mostrou que os Guiles estavam em todos os lugares onde havia uma concentração dos cultistas, minha suspeita se confirmou no mês passado após encontrar um executor deles em meio aos lunáticos e... eles estão desesperados. — Marcelo passou a mão pela barba rala e se recostou na cadeira ao terminar.

 

— Isso explica como estão vivos, a cúpula deve estar sendo atrasada pelos cultistas e o desespero deve estar os guiando para a sobrevivência… mas como eles já estão se instalando com apenas anos de formação?

 

Meu pai deslizou os papéis que estava lendo em minha direção. Peguei o maço de folhas e passei meus olhos pelas partes destacadas. Grande parte era composta pela caligrafia apressada de Marcelo, alguns pontos tinham uma caligrafia melhor e elegante, o que me levou a acreditar que ele usa Hana ou Armando como escriba. Folheei o relatório absorvendo as palavras em destaque.

 

Uma das folhas era o mapa mais atual do continente e a contagem populacional. Pela guerra de 2067, há uns quatrocentos anos, destruiu grandes potências pelo uso de armas nucleares. Os lugares que mais sofreram foram potências grandes daquela época, o que restou delas se uniu para formar países unificados pelos números muito baixo da população global… até hoje. Grande parte da América do Norte se unificaram nos Novos Estados Unidos…

 

O oriente se dividiu em dois países unificados maiores que também entraram em guerra pelo controle. A Rússia hoje é um país unificado, tendo a China como parceira e inimiga por pequenas divergências. O continente africano foi completamente abandonado por ter sido alvo de cinco bombas e a radiação sendo mortal até os dias de hoje. A América do Sul foi alvo de três bombas, mas elas atingiram as costas sul e norte, que resultaram no Brasil como país unificado. 

 

O mapa do continente mostrava os três estados resultantes da unificação sendo divididos nos hemisférios que sofreram menos com radiação ao longo dos anos. No sul e sudeste fica Cedro e seu estado ocupa onde ficavam outros em um só, no norte fica Nova Salvador, onde ficaria o estado da Bahia e muitos outros unidos em um só, e por fim o centro oeste, onde ficava Mato Grosso , são outros estados e é onde estamos agora, Alturas.

 

O mapa tinha anotações com as letras do Marcelo que indicavam as localizações do culto. Grande parte dos pontos que marcavam locais onde eles residiam era no estado de Cedro, muito ao sul. Esse ponto era conhecido com muitas fábricas e pontos abandonados. Havia poucos pontos em Salvador e menos ainda em Alturas. Por um momento, pensei que isso era apenas no Brasil, mas ao virar a folha que vi mapas dos outros países com pontos.

 

Que merda…

 

— Então eles provavelmente não são originados daqui? Como isso chegou a esse ponto? — Fui incapaz de deixar o tom de reprovação longe da minha voz.

 

Marcelo colocou os cotovelos sobre a mesa. 

 

— Eu pesquisei eles, de forma mais profunda nesses últimos meses… Eles servem a entidade que estávamos caçando há oito anos, eles se proclamam como Filhos da Luz Eterna ou apenas ̈Eternos e, pelo que eu pude entender... — Marcelo parou por um momento.

 

— A entidade que eles cultuam está na realidade e andando livremente pelo mudo, ao menos o Emissário enviado pelo verdadeiro líder. Todos que encontrei possuíam uma marca branca em seus espíritos e uma cicatriz peculiar em seus corpos, um tipo de conexão intrusiva que parece os conectar diretamente a ele. — Meu pai terminou por Marcelo.

 

Um aperto frio surgiu em minha barriga. 

 

— Então é por isso que está tudo tão coordenado… algo com milênios de idade está encantando e depois liderando as pessoas como um pastor lida com as ovelhas, o que podemos fazer? — conclui ainda com a sensação fria em minha barriga. 

 

Meu pai olhou o relógio na parede e começou a recolher suas coisas. Marcelo estava da mesma forma desajeitada em sua cadeira enquanto meu pai se levantava, meu pai se aproximou para beijar minha testa e depois olhou para mim e Marcelo. Seus olhos caramelos iguais aos meus possuíam um anelete áureo muito mais intenso e vivo ao redor das pupilas. Ele limpou a garganta antes de falar.

 

— Se  realmente há uma entidade diretamente ligada a um deus exterior andando pelo mundo e começando a se fortificar, há pouco o que se fazer no momento além de se preparar… nós temos que pensar antes de fazer qualquer coisa, afinal esse não é nosso objetivo. — Ele deu um olhar para Marcelo, que virou o rosto em resposta. 

 

Meu pai acariciou minha cabeça antes de ir em direção à saída. Segui sua presença até a porta de metal sólida que dava na sala de estar, depois que ele já estava um pouco longe, foquei em outra coisa em minha mente. Marcelo ainda estava olhando para o lado, sua expressão sendo a feição de alguém que está perdido em sua própria vida.

 

Busquei memórias dos últimos anos pelos momentos em que eu, ele e Samuel brincávamos juntos como uma família normal. Suspirei, olhando para a mesa, tudo está ficando tão complicado ultimamente. Eu sempre torci para os problemas serem levados embora, como a água que arrasta o entulho pelo rio, mas infelizmente pedras pesadas são mais difíceis de arrastar. 

 

Lembrei-me do momento em que entrei em sintonia com a força Volusia. Quando a energia maliciosa da criatura foi lavada pela herança, eu podia sentir ela me estudando, sondando meus pensamentos e vontades para saber quem sou. Nos primeiros meses, houve silêncio, mas depois de um tempo ela me revelou seu nome e a conexão permanente forjada naquele dia de dor apenas aumenta com o tempo.

 

Força purificadora, é o nome pelo qual a maioria das poucas pessoas que a conhecem a chamam, mas apenas pessoas conectadas a ela sabem que seu nome é Volusia. Minha atenção vagou entre a sensação constante do meu fluxo ativo e as memórias de quando estava aprendendo a manusear a “Autoridade de Volusia”. A conexão da minha alma com Volusia por si só é algo que diverge meus pensamentos, se a alma é o que somos e ela está ligada a mim por ela... onde ela começa e eu termino? 

 

Sua presença energética surgiu em minha mente como um riso alegre. Isso trouxe minha atenção de volta à realidade, houve um tempo em que eu buscava uma explicação para conexão, mas depois de tantas formas de filosofia e pesquisa, eu apenas aceitei… eu sou eu e ela é ela, se estamos unidas pela eternidade, é uma coisa a parte. Sua presença surgiu novamente com a mesma risada, mas dessa vez uma sensação de diversão correu pelo meu corpo. 

 

As coisas são realmente complicadas.

 

— Eu sei o que você vai dizer… — A voz de Marcelo me tirou dos pensamentos com um pequeno susto. 

 

— O quê? — Tentei lembrar se ele disse mais alguma coisa enquanto estava distraída.

 

Ele formou um olhar sério antes de continuar.

 

— Eu não vim aqui só para perseguir aquela coisa, eu também quero passar tempo com Samuel… — Ele parou como se tropeçasse nas palavras.

 

Minha mente ligou os pontos com algum êxito e isso me trouxe a realidade.

 

— Mas você quer matar aquela coisa primeiro? Quantas vezes tivemos essa conversa nesses últimos oito anos? Você sabe que eu entendo você, mas temos que definir as prioridades, Marce… o Sam gosta de estar com você, eu sei que você também gosta de estar com ele, mas você não pode prometer sua presença a ele se tem outras prioridades na cabeça. — Meu tom saiu mais melancólico do que eu queria.

 

Sua expressão séria perdeu a rigidez e deixou sua tristeza aparecer. Ele abaixou a cabeça para olhar as próprias mãos na mesa, deixei o meu silêncio adicionar mais peso às minhas palavras enquanto planejava o que fazer no resto da noite. Me levantei da mesa para ir em direção à área de treino, ouvi o som de sua cadeira arrastando e logo depois seus passos atrás de mim. 

 

O chão do retângulo de treino era escuro e possuía grifos em seu contorno, todos esculpidos no chão. Tirei meus sapatos para sentir o chão, um leve arrepio correu do frio da sola dos meus pés para minha espinha e nuca. Andei até o meio do retângulo, o estande de armar tinha principalmente armas sem fio ou de madeira, mas o treino dos Éditos não precisa obrigatoriamente delas.

 

Relaxei minha mente em busca de uma orientação para ajudar Marcelo, mas tudo que eu tinha que falar já foi dito hoje e nos últimos anos. Eu sei que ele ama Samuel, mas também sei o quanto ele amava seu irmão porque eu amava Vincent com a mesma intensidade. Talvez eu tenha falhado em fazer companhia para ele, ou talvez isso seja algo que ele precisa para seguir em frente…

 

Eu segui em frente?

 

A pergunta fez diferentes emoções surgirem, mas no final tudo se esclareceu. Uma onda forte correu pela minha garganta, uma sequência de tosses roubou minha concentração e me fez colocar a mão na boca. Marcelo apareceu tão rápido do meu lado que parecia um vulto cabeludo, seu olhar de preocupação misturado com uma espécie de culpa manchava sua expressão relaxada.

 

Talvez sim…

 

Olhando a palma da minha mão, gotas de sangue se aglomeraram em meio a ela. Marcelo me deu um lenço e com ele limpei minha mão e, ao redor da minha boca, uma estranha sensação de alívio por isso acontecer aqui e não em frente à Sam preencheu minha mente. Eu consigo sentir quando essas tosses vão aparecer, mas evitá-la é uma história complicada.

 

Olhei para Marcelo, que ainda me avaliava com sua expressão preocupada. Sua presença trazia para mim uma sensação de nostalgia, seu rosto se parecia muito levemente com o de Vincent, apenas menos bonito. Eu fico confusa sobre como o vejo, às vezes ele se parece com um irmão mais velho imprudente e outras vezes com um melhor amigo descuidado, mas no final só o tempo dirá... 

 

Quanto tempo eu tenho?

 

O pensamento fez um pequeno sorriso se formar em mim. A ironia de ter uma força tão poderosa ligada à minha alma é que meu corpo é incapaz de suportar o poder que agora eu tenho, uma caminhada lenta em direção a uma morte pacífica e indolor… mesmo que pareça tentador, eu preciso focar. Ainda há coisas que preciso fazer, darei a Sammy todo meu tempo restante e viverei por algo além de mim neste tempo.

 

E no final poderei reencontrá-los… 

 

Toquei meu colar abaixo da camisa enquanto moldava meus pensamentos. O broche que era da minha mãe agora é o pingente do meu colar junto à aliança do Vincent. Deixei que o fluxo aumentasse gradualmente, ainda me concentrando em retirar energia Fie do pingente no colar. Marcelo estava a cinco passos à minha frente e ainda tinha um olhar misto em seu rosto, a preocupação em suas sobrancelhas só era menor que a tristeza dos seus olhos.

 

— Você já definiu sua prioridade… ou ainda precisa de mais tempo? — Quantos anos mais? Décadas talvez?

 

Ele ficou em silêncio e apenas olhou para mim com uma expressão um tanto perturbada.

 

— Eu… — Seus olhos vacilaram e ele abaixou a cabeça. 

 

Deixe Fie inundar a sala, criando o ecossistema do treino. Limpei os pensamentos em minha mente apenas o suficiente para ser uma boa professora, deixei a herança aumentar seu volume e comecei o processo de absorção de energia Fie pura para impregnar ela com minha própria energia. A cabeça de Marcelo se ergueu para mim, um sentimento gravado em seus olhos enquanto me observava.

 

Espero que encontre logo o que quer. 

 

— Vamos começar…

 



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