Volume 2
Capítulo 17: Um momento para pensar
[Sexta-feira, 09 de setembro de 2412, 21:35 da noite]
Samuel Merial.
O jardim de casa era grande, com o chão coberto de folhas secas caídas. Um trilho começava do portão e levava até a porta da casa, ele passava por debaixo de uma estrutura para guardar os carros, uma casinha sem paredes que servia como garagem. Um sorriso se abriu em mim ao ver o carro do meu avô estacionado na garagem.
Ele está aqui!
Minha caminhada acelerou em direção à casa. No caminho, dei uma boa olhada no carro, um esportivo muito antigo, a cor verde e aros pretos com calotas combinavam muito e tinha algumas listras que percorriam a lataria. O capô ainda estava quente, andei para o lado do motorista para ver minha parte preferida.
Um emblema que lembrava a cabeça de um tigre estava gravado no metal da porta e no capô. Enquanto admirava o emblema, o vidro do motorista emitiu uma leve cor azul e o carro se destrancou para mim. Esse leitor de biometria é legal, mas pensei que precisava colocar minha mão no vidro para o carro abrir.
Tecnologia é bem legal. Lembro-me do vovô mostrando como o carro de se abria, ele apenas colocava a mão na janela e a porta se destrancou para ele e mais quem estivesse registrado no sistema do carro. Eu sempre tinha que sentar no colo da mamãe para ficar na janela, mas os passeios eram divertidos de qualquer forma.
Uma sensação familiar me trouxe de volta à realidade. Meus olhos seguiram um fino rastro de energia que saia do carro em direção à minha casa. A energia se parece na maioria do tempo como uma névoa incolor, mas quando a energia vem de alguém ou algo, deixa um traço característico. Fechei a porta do carro para seguir o rastro em direção a casa.
Essa energia é do tio Marcelo, ele está aqui!
Fui até a porta de casa e olhei ao redor antes de entrar. A outra parte do quintal era composta por pequenas casinhas alinhadas para as aves que meu avô treinava. De longe, vi a coloração de Emi entre as demais corujas que se agitavam ao anoitecer. As demais aves noturnas estavam bloqueadas da minha linha de visão, mas seus cantos já estavam brotando da noite.
Quase me esqueci!
Alcancei a jarra em minha cintura e a chacoalhei para atrair a atenção das aves. Como mariposas indo em direção à luz, elas se empoleiravam onde podiam, com a maioria ficando no chão. As dezenas de aves com as mais diversas cores em suas penas pintavam uma linda imagem à minha frente.
Abri a jarra e me sentei na escada da entrada. Um a um, joguei os pobres insetos em direção às aves e isso virou um jogo do bico mais rápido para poder pegar os insetos. As mais corajosas se aproximavam de mim e eu lhes dava um inseto direto no bico. As demais esperavam a distância pelos insetos arremessados.
Uma ave em particular pousou ao meu lado. Você anda sumida! Um corvo um pouco maior que Jack saltitava em minha direção, suas penas escuras tinham um brilho avermelhado na luz e em sua cabeça suas penas formavam um pequeno topete de penas com as pontas avermelhadas.
Após pegar três insetos com seu bico, ela abaixou levemente a cabeça antes de voar para o telhado da casa. Quando os insetos acabaram, fechei a jarra novamente e levantei. As aves aos pouco voaram ao perceber que a refeição fácil acabou. Deixei a jarra ao lado da porta e tirei um momento para apreciar minha casa.
A grande casa rústica de pedra negra e madeira escura, com transparênciae elegância vintage. Havia duas arandelas ao lado da porta, elas banhavam a área ao redor da casa com sua luz branca. As janelas deixavam escapar a luz do interior do primeiro e segundo andar, mas as cortinas fechadas impediam minha visão para dentro.
Respirei fundo e abri a porta para ser recebido por um calor confortável. O grande cômodo de entrada tinha uma escada no canto direito que levava ao segundo andar e uma porta dupla levava à sala de estar logo à frente. As paredes de madeira escura casavam em harmonia com o piso azul marinho que tinha algumas figuras que se completavam.
Havia uma porta abaixo da escada que levava ao porão. As paredes contavam muitas histórias com suas imagens gravadas na madeira e pedra, a tinta dourada ressaltava e contornava as ilustrações, dando vida a elas. A ilustração mostrava humanos caminhando atrás de dois outros humanos, provavelmente seus líderes, pois havia uma espécie de roda acima de suas cabeças.
Meu avô disse que nossos antepassados viviam pelo cuidado e estudo. Admirei a pintura enquanto uma fantasia se formava em minha mente, essas duas pessoas que lideram o resto na pintura sempre me deixavam com uma dúvida sobre quem são. O descontentamento amargou minhas fantasias ao lembrar que meu avô ainda terá que me contar.
Essa aura… ele trouxe a namorada?
Foquei nos rastros de energia no chão e eles se aglomeram em direção à sala. Reconhecer presenças de pessoas com quem eu já convivo é tão normal quanto reconhecer o cheiro deles. Meu tio só aparece algumas vezes e normalmente ele volta para a estrada em um dia ou menos. O cara com quem ele trabalha é divertido e tem uma mulher que tenho quase certeza de que meu tio gosta.
Poucos passos me levaram até a grande sala que hoje estava tendo mais pessoas que o normal. Uma mesa grande de madeira e bancos ocupavam uma parte da sala, enquanto a outra tinha um sofá com uma TV de frente para ele, ela era tão fina que parecia invisível de certo ângulo. Em um canto afastado, tinha um piano com cauda e alguns outros instrumentos.
Mesmo com todos os outros móveis adicionais de decoração, a sala ainda parecia vazia. Três grandes janelas davam vista para a mata e mais alguns aviários. Havia alguns pilares ao redor da sala que serviam para sustentar a parte de cima. No canto de tudo, onde os pilares e a parede formavam um corredor, havia uma porta de metal negro que levava ao armazém pessoal da nossa família.
Entrei discretamente na sala e me mantive escondido atrás de um dos pilares para observar os visitantes. Olhando a mesa, meus lábios se curvaram em um sorriso. Os parceiros do meu tio estavam conversando com minha babá. Olhei em direção ao sofá e encontrei meu avô e meu tio conversando encostados em uma janela próxima.
Onde ela está…
Olhei mais detalhadamente os dois aglomerados de pessoas em busca de alguém em específico. Minha mãe é uma mestre em manipular a própria energia, mesmo que sejam poucas as coisas que realmente consigam se esconder de mim pela presença, ela consegue fazer isso com muita facilidade. Uma sensação familiar finalmente brotou em meu senso astral.
Olhei para a porta enquanto me escondia o melhor que conseguia. A presença dela ficava mais clara e nítida à medida que se aproximava da porta, a inquietação de surpreendê-la crescia à medida que segundos pareciam minutos. Minha mandíbula afrouxou e caiu quando outra pessoa passou pela porta, a presença era dela, mas agora estava diferente.
— Te peguei, Raposinha. — A voz calma e sedosa veio de trás de mim, ela passou os dedos no meu cabelo e sua presença real finalmente surgiu para mim.
A moça que entrou pela porta sorriu e acenou para mim antes de seguir caminho pela sala. Virei-me para minha mãe, seus olhos eram caramelos com a mesma marca que eu tenho na pupila, seu cabelo com uma parte presa atrás da orelha era preto e brilhava levemente em azul na luz certa. Suas feições gentis e elegantes sempre estão com um sorriso discreto no rosto enquanto estava comigo.
A abracei e afundei meu rosto em sua barriga para sentir sua aura. Sua energia ressoava com a minha como uma música em perfeita sintonia, ela me acariciava com uma mão enquanto me abraçava com a outra. Notei que havia crescido um pouco ao ver que meu rosto estava um pouco mais acima que o comum em sua barriga, serei alto igual a ela no futuro!
Afastei meu rosto de sua barriga e ela fez um bico descontente enquanto acariciava meu cabelo. Seu sobretudo preto com costura dourada e outros detalhes da mesma cor tinham buracos bordados que deixavam seus ombros expostos, mas sempre que ela o usava, ela vestia um suéter ou camisa para cobrir seus ombros. Ela ajeitou meu cabelo e deu um beijo em minha bochecha antes de pegar minha mão.
— Vamos comprimeitar as pessoas… né, Sammy? — Algo em seu tom fez um arrepio percorrer minha coluna, a vergonha foi subjugada pelo medo de contestá-la.
— Mamãe, eu fiz uma amiga.
— Eu fiquei sabendo, já vou ter que me preocupar com as namoradinhas? — Ela se virou para pegar minha bochecha, mesmo com sua brincadeira, eu vi o orgulho nos olhos dela.
— Eu acho que mereço um livro da biblioteca do vovô… né?
Seu olhar ficou desconcertado. O sentimento de culpa martelou em minha cabeça e abaixei minha cabeça, ela odeia conversar sobre o paranormal comigo, eu deveria ter ao menos esperado até mais tarde. Sua mão levantou levemente minha cabeça baixa pelo queixo, seu olhar de ternura parecia me acolher como um cobertor enquanto sorria.
— Mais tarde nós falamos sobre isso, tá? — Ela esticou o mindinho para mim.
— Uhum… — Peguei seu mindinho com o meu.
Ela ajeitou as costas e começou a me puxar em direção à mesa. A moça que eu confundi com a aura da minha mãe estava sentada ao lado no canto da mesa sem falar com ninguém, ela, na verdade, é a aprendiz da minha mãe. Emma, ela conversa comigo quando está em suas pausas e também me ensina algumas coisas.
Seu longo cabelo preto emoldurava seu lindo rosto. A pele parda estava mais escura abaixo dos olhos, formando pequenas bolsas, algo que sem dúvida é culpa da minha mãe e dos treinos dela. O detalhe que mais me encantava eram seus olhos verdes como cristais, olhar para eles trazia uma estranha sensação de nostalgia.
Enquanto me aproximava, notei que o parceiro do meu tio olhava discretamente em direção à Emma. Armando, o homem tinha um corpo atlético, seu cabelo loiro, olhos castanho claro e sardas lhe renderam o apelido de Princeso pelo meu tio, ele era alguém bem divertido de se conversar. Seu olhar em direção à Emma parecia encantado, mas podia ver algo semelhante à dúvida nele.
Minha mãe contornou a mesa para ficar perto de sua noviça. Minha babá sorriu para mim, a senhora morena tinha cabelos encaracolados e um olhar feroz mesmo quando estava calma. A senhora Helen conseguia calar qualquer um quando quisesse e mesmo quando estava visivelmente irritada, ela ainda era graciosa.
Notei que ela estava abraçando algo em seu colo. Chegamos mais perto e vi sua neta dormindo no colo da senhora Helen, ela a trazia para casa enquanto cuidava de mim e notei cedo que a garotinha tinha energia demais. Milena, ela me chama de Tio e às vezes levo-a para ver as aves no quintal em troca de poder ler sem interrupções em seus picos de energia.
Minha mãe se sentou ao lado da Emma e fiquei em pé ao seu lado. Minha mãe e Helen trocaram uma saudação silenciosa, Armando e a acompanhante de mamãe seguiram seu exemplo. A mulher que também trabalhava com meu tio tinha traços asiáticos como meu avô, mas ela tinha um lindo cabelo ondulado aparado, indo um pouco abaixo dos ombros.
O nome dela… está na ponta da língua… Hana!
Minha mãe esticou a mão para cutucar o nariz de Milena. Dona Helen apenas deu uma risada baixa e voltou a conversar com a Hana, Armando ainda olhava discretamente para Emma enquanto Emma começava a mexer no meu cabelo. Minha mãe parou de cutucar Milena para me olhar, ela deu um sorriso antes de falar algo.
— Já pode ir ver seu tio, não doeu, né?
— Uhum… — Impedi o meu bico de se formar enquanto saía.
— Até mais, Raposinha. — A voz de Emma era um sussurro doce, ela acariciou meu cabelo uma última vez e cutuquei seu nariz em resposta.
Enquanto ia em direção à janela onde meu tio e avó estavam, alguns pensamentos me vieram à mente. A forma como Armando olhava para Emma é bem sugestiva mesmo para mim, eu já os vi conversando mais de uma vez, será que eles se gostam? Aliás, eu queria saber mais sobre Hana, mas estou com dúvida sobre como falar com ela ou do que falar.
A forma como minha mãe e Helen parecem sempre estar na mesma página é algo que queria poder fazer. Helen tem a mesma marca nos olhos que minha família tem, mas ela não é minha parente. O que essa marca é? O que ela significa? Queria poder entrar na parte privada da biblioteca e descobrir tudo, mas sei que amanhã, quando eu completar doze anos, ainda vai haver segredos para mim.
Aproximando-me do meu tio, uma certa ansiedade crescia dentro de mim. Ele sempre me conta como foram suas viagens, mesmo algumas partes sombrias sobre as aberrações que ele enfrenta e como as derrotava. Enfrentar essas criaturas que vi nos livros para proteger as pessoas comuns parece tão injusto… afinal, também somos taxados de aberrações.
Meu avô me viu primeiro enquanto me aproximava deles. Ambos estavam vestidos quase da mesma forma, o sobretudo do meu avô era mais curto e de couro marrom, enquanto o do tio Marcelo era longo e de um tecido cor azul marinho. Meu tio tinha uma barba trabalhada com um estilo semelhante ao do meu avô, só que muito menos volumosa.
O cabelo preto do meu tio ia um pouco abaixo das orelhas e era penteado para trás. Seus olhos como safiras escuras brilharam ao olhar para mim, senti minha marca pulsando ao mesmo tempo que a sua antes de um sorriso se formar para mim. Meu avô observou em silêncio com um sorriso, mesmo com sua idade, ele ainda transparecia a mesma jovialidade que meu tio.
— Olha só… como esse rapaz está crescendo, isso é muito preocupante… porque… — Suas mãos passaram por debaixo dos meus braços e ele me ergueu como um bebê, após isso ele esfregou sua barba contra meu rosto.
Isso pinica!
— Está ficando pesado também! — Ele me devolveu ao chão e bagunçou meu cabelo.
Seu sorriso ainda permanecia enquanto ele se recostava no batente da janela. Meu avô andou até mim para ajeitar meu cabelo e pediu licença antes de nos deixarmos. Ele foi em direção à minha mãe, que parecia já estar o esperando. Meu olho se voltou para meu tio, fiquei ao seu lado com meus braços escorados na janela e a brisa fresca vinda da floresta me acariciando.
— Você vai ficar até amanhã, né? Como foi sua viagem? O que encontrou desta vez?
Ele se virou para mim com seu sorriso ainda no rosto.
— Foi uma viagem apenas para sondagem, nada de muito interessante aconteceu lá… Vou aproveitar esses dias… talvez até um mês para te ensinar algumas coisas, se quiser — explicou com seu tom calmo de sempre.
Senti a felicidade correndo por meu peito como água descendo uma colina e logo se espalhou para meu corpo. Um mês! E ele vai me ensinar algumas coisas! Ter meu tio por perto significava que meu avô também estaria por perto, com ambos aqui, minha mãe parecia mais confortável com as coisas. Além disso, eles também me ensinavam coisas muito legais sobre o fluxo.
— Você vai me ensinar a controlar meu fluxo sem o supressor?
Suas sobrancelhas se levantaram com minhas palavras. O supressor é a venda que constantemente uso no olho direito, ela cobre uma pequena parte ao redor do olho direito, bochecha e um pouco da minha testa. Meu fluxo está sempre em atividade constante, misturando Sine e Fie e amplificando meus sentidos ainda mais do que já são naturalmente altos.
Isso era muito irritante quando eu era mais pequeno, a um nível insuportável. Meu senso astral captava cada pequeno sinal de energia de animais, pessoas em diferentes distâncias e a intensidade só aumentava com o passar do tempo. A ideia do meu avô de transformar minha venda em um supressor para minha energia é bem engenhosa e útil, mas aos poucos sinto que está se tornando ineficaz.
Aprender mais sobre como manusear a energia em constante crescimento será definitivo. Sua expressão estava distante de uma meditação, ele parecia ponderar os pontos negativos e positivos da coisa enquanto olhava o grande quintal coberto de folhas e cercado por árvores. Os segundos passavam no silêncio e a ansiedade já estava me corroendo.
— Meu corvinho já está deixando o tio com dores de cabeça? — Minha mãe de alguma forma já estava atrás de mim, seus dedos remexendo meu cabelo e a alça da minha venda.
— É um menino na idade curiosa, quando crescer vai ser mais difícil tirá-lo da biblioteca do que já agora. — Ele riu e minha mãe guardou uma risada para si.
Mamãe ficou cutucando meu nariz enquanto trocava algumas palavras com o tio Marcelo. Suas perguntas sobre a viagem eram precisas, eles usavam palavras difíceis e suspeito que façam isso de propósito para que eu seja incapaz de entender. Após um tempo, eles trouxeram o assunto até mim, com o tio Marcelo repetindo para ela minha pergunta.
— O selo deve estar ficando fraco — argumentei enquanto ambos estavam em silêncio.
Ambos tinham uma expressão que eu conhecia muito bem. A preocupação silenciosa se formava em ambos quase ao mesmo tempo, eles eram bons em esconder suas emoções das suas auras porque sabiam que sou bom e detectá-las, mas já aprendi muito apenas lendo suas expressões e olhares. Minha mãe suspirou após algum tempo e começou a me acariciar de novo.
— Amanhã vamos almoçar juntos, vou fazer sua torta de frango preferida e à tarde você poderá encontrar sua nova amiguinha… De noite veremos isso melhor — disse minha mãe com uma expressão relaxada.
Como ela já sabe do encontro?!
— Então, você já fez uma amiguinha? Garoto bom… — Tio Marcel fez uma expressão de orgulho, mas sua zombaria estava evidente.
Antes que eu pudesse responder, minha mãe colocou a mão sobre minha boca. Ela tinha um sorriso bobo e podia ler suas provocações infantis em seus olhos, após um tempo ela apenas olhou em direção ao relógio e tirou sua mão da minha boca. Ainda está cedo… onze e meia da noite nem é meia noite!
— Hora de ir dormir e sem leitura noturna… entendeu? — O mesmo tom frio deixava sua expressão relaxada estranhamente ameaçadora.
— Sim, mamãe e… — As palavras ficaram presas na minha garganta.
Sua expressão ficou curiosa junto a meu tio. O momento em que falei sobre a biblioteca do meu avô ainda estava remoendo dentro de mim, eu devia ter contratado o desejo de falar sobre isso logo na véspera do meu aniversário… principalmente porque ela não gosta de falar sobre essas coisas comigo. Estou confuso sobre o quão errado eu estou, mas quero cuidar disso logo.
— Desculpa por falar sobre a biblioteca… eu apenas queria… — Ela colocou seu indicador no meu nariz.
— Está tudo bem, meu neném. — Sua expressão e sorriso afastou o peso que havia sobre minha consciência.
Ela me deu um beijo na bochecha e meu tio bagunçou meu cabelo. Desejei-lhes boa noite e segui em direção à escada na entrada. Enquanto passava, acenei para os demais antes de continuar. Chegando na sala da entrada, subi a escada para encontrar três caminhos que levavam a direções diferentes.
Essas três direções com certeza foram os lugares em que mais andei na vida. O corredor da direita levava à sala de estudo e outros três cômodos e ele tinha uma janela no final. O da esquerda levava a uma sala onde apenas minha mãe e os outros podiam entrar e também terminava em uma janela. O do meio levava aos quartos e terminava com a mesma janela que os demais.
Uma forma semelhante à metade de um círculo conectava as três direções. Essa sala tinha os mesmos desenhos que ilustravam uma parte de uma história que a sala de entrada, nessa os desenhos estavam divididos entre as duas paredes que eram divididas pelos corredores. Cada parede retratava uma parte da história, sendo algo bem mais interessante que o anterior.
Me pergunto qual é o significado dessa história em específico. A pintura mostrava centenas de humanos ao redor de seres gigantes de forma um tanto animalesca, eles pareciam andar lado a lado com as criaturas em direção ao pôr do sol. As criaturas foram ilustradas com a mistura da tinta dourada e verde, diferente dos humanos que eram apenas com a dourada.
A segunda pintura tinha uma ideia de continuidade com a primeira. As mesmas figuras da pintura da sala de entrada estavam ao redor de uma espécie de fogueira com vários humanos ao seu redor. Essa pintura se passava de noite pelas estrelas e luas pintadas em prata no mural. As criaturas estavam entre os humanos observando a luz, suas formas como titãs bestiais contornados com tinta verde.
Olhei os murais mais um pouco enquanto tentava buscar um significado. Andando até o banheiro, várias ideias de mensagens me vieram à mente, mas tudo parecia muito surreal, até mesmo para o que estava sendo retratado. Durante meu banho, desisti de tentar entendê-la mais profundamente do que estava sendo mostrado.
Vesti minha calça e camisa largas que uso para dormir e parti para meu quarto. O incômodo mental de colocar minhas bandagens de volta começou levemente, mas me distrai o suficiente ao chegar no quarto. O teto tinha várias estrelas esculpidas na madeira escura, contornadas pela mesma tinta dourada dos murais.
Minha cama estava no canto ao lado da janela. A escrivaninha com uma cadeira de rodinha ainda tinha alguns livros abertos que estava lendo antes de sair, o guarda roupa ficava ao lado da porta de entrada e ocupava pouco espaço no quarto. A área livre era grande e eu usava para praticar ou meditar, eu gosto de praticar estilos de lutas marciais… quando estou sozinho.
Quando fechei a porta, um suspiro de alívio me escapou. Andei até minha cama para me deitar, meu edredom estava no ponto confortavelmente frio e ajeitei meu travesseiro para o ritual sagrado da soneca. Quando achei a posição mais confortável, pensamentos moribundos começaram a aparecer em minha mente.
Foi estranho a forma como a Maya agiu. Ela me parecia feliz ao mesmo tempo que parecia querer fugir, estou ansioso pela tarde do amanhã, o lugar que vou levá-la com certeza vai deixá-la impressionada. Espero que possamos nos conhecer melhor, ela parece ser alguém legal de se ter por perto.
Conhecer melhor…
Levantei meu braço acima do cobertor. A manga da minha camisa deixava escapar um pouco das minhas cicatrizes, a puxei lentamente para meu braço ficar à mostra. O sentimento de escondê-la era menor quanto mais o tempo passava, mas ainda existia e era um incômodo enorme com outras pessoas no geral, com algumas poucas exceções.
As cicatrizes desciam das costas e palma da minha mão até meu ombro em ambos os braços. A coloração avermelhada contra minha pele dava um aspecto um tanto rosado em algumas partes, elas cobriam quase inteiramente minha pele em algumas partes e a textura me lembrava de alguma forma uma corrente. As lembranças por trás delas enviavam calafrios pelo meu corpo.
Aos poucos elas começam a se tornar mais nítidas e isso me assusta. Sempre que durmo, ouço alguém falar comigo, me orientar e até mesmo me proteger. Meus sonhos são sempre uma caminhada na qual sou afastado da linha de chegada, mas me sinto atraído a sempre continuar e tentar descobrir o final.
Soltei um suspiro trêmulo enquanto abaixava meu braço e fechava os olhos. Essas lembranças devem me falar mais… mais sobre meu pai, aprendi cedo o tipo de dor e desconforto que perguntas sobre ele causam na minha mãe e tio. Lembro de sua imagem, do rosto, cheiro e… da aura dele, eu sei que ele se foi, mas apenas queria saber mais do porquê.
Deixei meus pensamentos se aprofundarem enquanto tirava minha venda. A torrente de energia ficou mais clara, a sensação de estar restringido deixou meu corpo e mente enquanto meu fluxo crescia dentro de mim. Preparei minha mente para uma nova caminhada, uma sensação quente percorreu meu corpo antes de mergulhar em um universo infinito.
Preciso ir mais fundo!