Volume 1
Capítulo 9: Migalhas
[Segunda-Feira 12 de fevereiro de 2404, 07:10 da manhã]
Glória Merial
O sol entrava pela janela da cozinha. Na bancada, Vincent, enchia sua xícara com café enquanto esvaziava a minha. Ele puxou uma cadeira e se sentou comigo, olhando pela janela, a luz do sol logo iria ser coberta pelas nuvens como de costume.
E logo terei que ir, odeio segundas-feiras.
Partir sempre é doloroso. Sammy dorme até tarde e me sinto melhor por apenas dar um beijo de despedida no meu dorminhoco. Vincent, por outro lado, me fazia companhia até o momento em que saía de casa. Estou a um passo mais próxima de uma vida menos anormal.
Percebi que Vince me encarava. Seus olhos carregavam a preocupação de todas as manhãs, mas hoje estava mais intrínseco. A chama em meu peito ressoava com a dele, era como se estivéssemos abraçados e ele dissesse o quanto odeia me ver partir. Preciso me acostumar com isso.
— É… você ainda é bem inexperiente. — Um sorriso se abriu em seu rosto e o ressoar ficou mais animado.
— Você consegue ver meus pensamentos?
— Apenas fragmentos… quando eu faço um esforço. — Seu sorriso ficou tímido.
Dei a ele um olhar reprovador. Recostando-me na cadeira, mergulhei no fluxo de pensamentos até chegar a luz do Pôr do Sol, esse elo entre mim e a entidade que fez contato comigo no galpão estava… tímida, por assim dizer. Ontem tentei novamente acessar a mente por trás disso, mas ela sabia se esconder.
A minha busca deu algum resultado. Enquanto vasculhava esse elo, percebi que posso saber precisamente onde e como Vince e Sam estão quando me concentro. Como se fosse uma bússola e eles os pontos marcados para mim. Além deles, uma outra pessoa muito distante apareceu nessa bússola, que provavelmente era meu pai.
Por pensar nele…
— Você pode ligar para meu pai? Precisamos discutir isso com ele e Marcelo.
Vincent engasgou com o café e teve que limpar o que derramou. Essa reação com certeza está longe de ser relacionada a meu pai, o que mais você está escondendo? Trazendo o Pôr do Sol para meu fluxo, sondei Vince na bússola e fragmentos de pensamentos desesperados vazaram da sua mente.
— Você não contou para seu irmão. — Um latejar correu pelo meu cérebro após deixar o fluxo.
— Era mais divertido quando só eu sabia fazer isso… — Ele fez biquinho. — Eu só quero que outro fale pra ele, vai ser mais fácil dele aceitar e posso evitar a repreensão dele sobre o assunto.
Uma dor pulsou em minha cabeça. Usar algo que nunca usei tão levianamente, que idiotice. Ele se levantou e me trouxe um copo com água junto a um comprimido, o gosto amargo inundou minha boca, mas logo a dor diminuiu. Seus olhos preocupados se suavizaram e ele cutucou meu nariz.
— Seu pai ficou pior depois que fez isso comigo, provavelmente porque ele abusou demais na duração, mas depois de um tempo a dor fica menor.
Levantando-me da cadeira, conferi o relógio. A hora era preocupante.
Marcelo, logo iria chegar para irmos em um local indicado por Leonardo. Vincent pegou minha bolsa e fomos juntos até a porta, o sentimento de deixar minha casa sempre vai ser igual. Mas, ao menos, estou perto da saída para tudo isso.
Meu jardim terminava no muro da casa. Grama aparada com alguns gnomos para enfeitar, essa parte foi ideia de Vince, mas, até aí, só achei bobo. As nuvens pouco a pouco tentavam cobrir a luz do sol, mas ela escapava por suas frestas agraciando essa manhã.
Andei até o portão acompanhada. Vince parecia mais calmo, na verdade, ele estava mais calmo. Vi isso em nossa conexão, quase como se isso o deixasse confiante com minha partida. Virando-me para trás, dei-lhe um beijo antes de seguir para fora de casa.
Um carro parou em frente ao portão. Vincent entregou minha bolsa e me abraçou antes de deixar eu ir. O carro de Marcelo, já estava com a porta do passageiro aberta para mim, uma silhueta estava no banco de trás, provavelmente sendo seu aprendiz. Antes de entrar no carro, olhei para Vince.
— Eu vou voltar. — Sempre voltarei.
— E eu esperar.
Sentei-me no banco e fechei a porta. O carro tinha alguns copos de café, uns dentro de outros. Marcelo estava com suas olheiras um pouco mais aprofundadas que o normal. Olhando pelo espelho de centro, seu noviço estava com uma toalha sobre o rosto e uma caixa com mais alguns copos ao seu lado.
— Você dormiu? Ou melhor, você deixou o garoto dormir?
— Duas horas e meia de sono é o bastante, né garoto? — Marcelo começou o trajeto, seguindo pela estrada e o garoto soltou um grunhido em concordância.
Puta que o pariu.
— Eu deixei os arquivos que Leonardo nos deu aí no porta luvas, agora evita de me encher o saco.
Revirando os olhos, abri o porta luvas. Uma pilha de papéis presos por um grampo se destacou dos outros, pegando-a, manchas de café estavam ali, junto ao odor de cigarros. Relevando isso, comecei a folhear os papéis e entre eles haviam anotações do Leonardo. Uma delas chamou muito minha atenção.
"Fiz telefonemas, revirei papéis e quase desmaiei de sono a uma hora, mas até que valeu a pena quando descobri que os Guiles estão cedendo muitos trabalhos ultimamente."
Os Guiles cedendo serviços? Outras notas destacavam o quanto Leo está incomodado com isso. Outras destacavam que há uma criatura lá dentro e para tomar cuidado e se for um serviçal dessa entidade que procuramos, será uma grande vitória.
Quanto aos Guiles…
Cresci entre os autodenominados nobres. Eles criam suas próprias forças de serviço, isso evita que sujem as mãos entre outras coisas. O fato é que, os nobres nunca recusam um trabalho, por menor que fosse. Eles acumulam mais e mais, isso trás para eles mais renda e mérito, sendo basicamente seu sustento para ego e estilo de vida.
Seja qual for o motivo dessa fuga de serviços, com certeza coisa boa está longe de ser. A avenida principal de Cedro era movimentada, mas, quando a deixamos para trás, apenas casas e comércios menores apareciam. Uma estação de tratamento de esgoto é um lugar incrível de se procurar algo.
Pelo menos está fora de serviço… agh.
Recostando-me no assento, suspirei. Marcelo parecia envolto pelas próprias vozes enquanto dirigia e, nesse momento, me pergunto como Vince vai falar sobre a árvore para ele. Ele é cético, mas acho que com certeza ele vai aceitar a ideia… espero.
A presença do seu noviço estava causando dúvidas para mim. Noviços é como se é chamado um aprendiz direto, as vezes quando veem alguém que se destaca de alguma forma no paranormal, mandam pra alguém com experiência para orientá-los. Sempre tento manter a minha distante do campo, mas por que ele está trazendo o dele?
Bom, ambos são esquilos, então… hm.
O elo estava me afetando menos do que pensei. Posso interagir com ele e ver ele dentro de mim, metaforicamente falando, mas o que me agradava era o fato que ele apenas existia em mim, como um pensamento que eu posso aceitar ou recusar. Sem falar que posso ver através da bússola, onde Vince e Sam estão.
Apenas gostaria de saber mais sobre aquela mulher. O que ela quis dizer com tão poucas palavras? Hm. Marcelo parou o carro em um estacionamento em frente a um muro, nele havia pichações e mato escalando até o topo, mas, abaixo disso tudo, dava pra ler o título do lugar.
Boa Vida.
Saí do carro junto aos outros dois. Olhando ao redor, o estacionamento tinha rachaduras em toda sua extensão e plantas cresciam entre elas. Ambas as partes do muro de tijolos se conectava com um portão. Demais prédios pequenos podiam ser vistos de fora e a maioria estava selada com tábuas e correntes nas portas e janelas.
Aproximei-me do portão. A corrente que o mantém fechado era nova demais para combinar com o resto da estrutura. Marcelo, passou por mim com uma chave em mãos, ele abriu o cadeado e desenrolou a corrente do portão. O ranger de ambos os lados se abrindo correu pelo lugar antes de voltar ao silêncio.
— Vamos precisar ver o lugar inteiro? São muitos prédios! — reclamou Armando.
— As anotações só constam que houve problemas no prédio principal, dá pra ver que eles colocaram as coisas no lugar do jeito que estavam depois de sair dos demais. — Marcelo parecia aliviado com isso.
Avançamos para dentro da instalação. Os prédios ao nosso redor pareciam esconder mais do que mostravam, um cheiro acre pairava no ar, semelhante à água sanitária. O lugar era feito por estradas entre prédios do tamanha de casas, grades percorriam todos os caminhos e sob ela inúmeros dutos se ramificaram para as casas.
O prédio principal era o maior de todos. Tinha dois andares e janelas indústriais encobertas por musgo e tinta, sua porta era a única sem correntes ou tábuas e, infelizmente, já tínhamos uma ideia do porquê. Parando em frente as portas, respirei fundo colocando minhas mãos sobre elas e mergulhei no fluxo.
O mundo caricato se formou à minha volta. Mas dessa vez tinha algo diferente, veios de luz dourada se formavam à minha volta enquanto partículas carmesins vazavam da porta à minha frente. Os veios afastavam as partículas e mesmo quando elas persistiam, eram completamente subjugadas pela luz.
Deixei o fluxo em meio a visão. O calor em meu peito percorreu meu corpo antes de se acomodar em minha cabeça. A sensação de medo se tornou uma precipitação, era óbvio que tinha algo aqui, mas o que seria isso? A nova sensação era clara em sua diretriz, fugir, correr para o mais longe possível.
Mas… estou tão perto.
— Você está bem? — Marcelo apareceu ao meu lado.
Preciso continuar.
— Tem algo aqui, precisamos tomar cuidado. — Muito cuidado.
Abri as portas para encontrar um cenário vindo do inferno. Corpos… eles estavam levitando pelo interior do prédio, o segundo andar composto por andaimes era onde eles estavam mais aglomerados. O piso de metal era uma mistura de vermelho e ferrugem e o odor acre se uniu à podridão, transformando-se em dor de cabeça.
Que porra é essa…
Meu estômago se revirou muitas vezes. Busquei qualquer lugar para olhar, mas todos tinham um cadáver levitando com os braços e pernas abertas, formando um X com seus corpos e sem o topo de suas cabeças. Armando vomitou ao meu lado e Marcelo parecia querer fazer o mesmo.
— Visitantes… espera… você tem um cheiro familiar. — Uma voz ecoou nos andaimes, uma figura apareceu em meio aos cadáveres.
O pôr do sol ardeu em meu peito com a visão daquele homem. Ele usava um terno negro que descia até seus joelhos, cabelo acastanhado junto de olhos negros que parecia reluzir em sangue. O homem usou um dos corpos como uma plataforma para descer flutuando até o chão.
Seus olhos estavam fixos em mim. O pôr do Sol se agitou em mim, implorava para que eu corresse dali o mais rápido possível. Marcelo, tirou seu livro do casaco e Armando, estava com um machado em mãos. O homem estava a metros de nós, sua postura era elegante apesar de tudo.
— Vocês, dois dos meus companheiros já os encontraram, parece que estávamos destinados a nos encontrar… Interessante, vejo algo familiar se remexer dentro de você. — Seu olhar parecia me dissecar.
— Quem… é você? — As palavras tiveram menos impacto do que pensei.
Seu olhar perfurante se aguçou. Se curvando levemente, colocou uma mão sobre a barriga em uma reverência.
— Meu nome? Bartolomeu Vós, o último de meu sangue… — Seu olhos encontraram os meus. — Meu propósito? Bom… está a alguns metros de distância.
A genuína vontade de fugir se espalhou por mim. A alguns metros? Junte as peças, ele não está falando de mim diretamente… Pôr do Sol, é isso que ele quer? A resposta veio a mim como uma confirmação mental, o calor em meu peito desfilou por meu corpo até alcançar meu cérebro.
O que… agh!
O calor se tornou mais intenso a cada segundo. Palavras distantes se formaram em meu cérebro, embaçadas, mas de alguma forma eram claras. Minha conexão vai levá-lo até a árvore, na verdade, até Vince e Sam. Como um caminho de migalhas indo até o baú do tesouro, ele vai nos matar.
O homem continuava a me observar. Mas algo mudou em seus olhos, como se pudesse ler meus pensamentos e ouvir o que eu ouvi. Sua feição se tornou gentil e ele estendeu a mão em minha direção, mas mesmo por trás da máscara, uma presença fria ainda escoltava seu olhar.
— Venha para luz, Glória, rendasse para que possa desfrutar da eternidade. — Suas palavras eram banhadas em mel, mas tudo que senti foi repulsa
Saquei minha arma e Marcelo abriu seu livro. Armando, parecia hesitante, mas estava pronto para avançar. Bartolomeu estava com um olhar decepcionado enquanto recuava sua mão, sua postura confiante permaneceu inabalável enquanto caminhava até nós.
— A Eternidade ainda poderá te perdoar por sua ignorância, mas antes de tudo, devo realizar meu objetivo.
O calor do pôr do sol encheu meus músculos enquanto minha mente mergulhava ainda mais no fluxo. Se ele alcançar a árvore, o que acontece? Por que ele quer ela? Não importa!
Não importa!
Preciso manter ele longe de Vincent e Samuel e apenas isso é relevante. Sacando minha espada, deixei que o fluxo corresse sem restrições.
— Se cuide, Glória. — A voz distante apareceu em minha mente.
Bartolomeu manteve sua expressão impassível enquanto se aproximava. Marcelo começou a sussurrar cânticos e Armando, parecia pronto para avançar. Prepara-se, esteja pronta… e avance. Posicionando meus pés, a presença quente encheu meu peito enquanto preparava meu ataque.
Eu vou vencer… preciso vencer!