Volume 1
Capítulo 10: Socorro
[Segunda-Feira 12 de fevereiro de 2404, 08:27 da manhã]
Deixei que o fluxo corresse por meu corpo. Bartolomeu continuava sua caminhada lenta em nossa direção. Armando foi o primeiro a avançar contra o homem com seu machado, mas ele errou sua investida. Apesar de seus golpes serem desajeitados, movia-se com eficácia em ataques e contra ataques.
Marcelo entoava um cântico com o livro em mãos. O ar que arranhava minhas narinas se tornava mais denso enquanto um hexágono negro englobava o interior do complexo. Bartolomeu parecia incomodado, mas demonstrou apenas um relapso do descontentamento enquanto trocava golpes com Armando.
Saquei minha espada e avancei na direção de Bartolomeu, o chão de metal ecoava o som dos meus passos apressados até ele. Meu primeiro corte foi desviado com um movimento para o lado, isso abriu uma brecha que Armando aproveitou para dar uma ombrada nas costas.
Bartolomeu se desorientou por um momento. Movendo minha espada por baixo, coloquei a lâmina entre suas pernas e realizei um corte na lateral do seu joelho.
Seus grunhidos de dor foram interrompidos quando Armando tentou atacar. O machado passou raspando, dando brecha para Bartolomeu pegar o garoto pelo pescoço.
Merda!
Avancei, pronta para cortar o braço estendido que o segurava. Em meio a corrida, o pressentimento ardente de perigo queimou em meu peito. Deixei que o sentimento tomasse conta do meu corpo e, em instantes, movi-me para o lado e um dos corpos se chocou contra o chão onde eu deveria estar.
— Você tem potencial, mas nem mesmo está perto daquilo que busco. — Bartolomeu arremessou o garoto em direção a Marcelo.
Armando voou para seu professor. Marcelo esticou os braços para tentar minimizar o impacto da queda e ambos caíram no chão encoberto por ferrugem. Armando estava inconsciente acima do Marcelo, que estava com uma feição dolorida enquanto colocava o garoto de lado para levantar.
— Você é incapaz de ver? Tudo isso pode ser evitado! Deixe-me encostar em você e tudo isso vai acabar. — Bartolomeu tinha um olhar voraz em seu rosto, olhando para mim como um predador contemplando a presa.
Só preciso te eliminar, aí sim, tudo acaba.
Entrei em posição e ele estalou seus dedos. O pressentimento ardeu novamente, como se eu tivesse olhos ao meu redor e soubesse de onde o próximo corpo iria vir. Ele pode controlar esses corpos com uma espécie de telecinese, estalar os dedos é o gatilho de ativação? Supondo que ele está apenas os movendo, talvez esteja escondendo mais de sua obra.
O brilho do hexágono negro se intensificou.
Marcelo estava com suas mãos no chão e seus olhos fixos em Bartolomeu enquanto entoava seus cânticos. Desviando do corpo arremessado contra mim, outro apareceu e, então, outros. Os corpos caiam como chuva do teto em que estavam, com isso me encolhi para evitar maiores danos.
A chuva de corpos parou quando todos caíram. O chão estava encoberto por eles, diferentes roupas e estados de degradação, mas a falta do topo das cabeças era uma característica estranha até mesmo agora. Bartolomeu estava com uma carranca enquanto trocava olhares com Marcelo.
O cântico anulou o controle dele?
Deixando de lado os pensamentos avancei contra o homem. Ele pode controlar os corpos de quem mata? Ou isso é apenas uma parte? De qualquer forma, quando ele estava com o garoto em mãos, ele falou como se pudesse ver a mente dele. Ele pode ver a mente de quem toca?
Bartolomeu sacou uma adaga de seu cinto. Alâmina curvada se chocou contra a minha, refletindo meu golpe e movendo sua lâmina na direção da minha coxa.
O corte foi seguido por outra tentativa, mas consegui pará-lo antes que conseguisse.
Em nossa troca de golpes um brilho estranho surgiu em seus olhos.
Sua lâmina pequena era mais leve que a minha, mas eu era mais ágil. Algo invadiu meus pensamentos...
Um desejo profundo deslocou minha visão e entre os relapsos e flashes, uma figura albina apareceu.
Voltei à realidade.
Havia um aperto forte ao redor da minha cabeça. Meu olhar se focou em Bartolomeu, mas o som de um disparo ecoou pelo complexo e seu aperto sobre mim enfraqueceu. O breve momento em que ele fraquejou pela dor foi o suficiente para que eu pudesse me afastar das suas mãos. O que houve comigo?
O calor fervente em meu peito subiu para minha cabeça. Bartolomeu, estava com a mão na lateral da barriga e sangue escapava por seus dedos. Marcelo disparou mais algumas vezes, mas os cadáveres ao nosso redor levitaram em sua direção, construindo uma muralha de corpos para bloqueá-lo.
— Acabou, bastarda! Cansei de exercer misericórdia com você.
Bastarda? Espere…
Antes que pudesse moldar um pensamento outra chuva psíquica ocorreu em minha mente. O lapso, os flashes estavam mais fortes, o mundo se distorcia em branco e preto enquanto uma voz profunda falava em um linguajar estranho.
Que porra é essa?! Preciso fortalecer minha mente! Agarrei-me ao fluxo em meu peito e o fiz correr por minha consciência. Os lapsos se enfraqueceram o suficiente para que eu pudesse ver Bartolomeu, ele tinha suas mãos ao redor da minha cabeça enquanto entoava algo.
Não...
Como se trepadeiras farpadas entrassem em meu cérebro, fios de seu fluxo romperam minha proteção mental.
Agarrei seu pescoço em um movimento desesperado. Mesmo que eu apertasse com toda a força, seus fios de fluxo ainda vasculhavam minha consciência, passando de memória a memória, até encontrarem o que queria.
Sai da minha cabeça!
Empurrando toda energia possível. O caos foi amplificado pelo pôr do sol e o breve momento foi embaçado pela enxurrada de energia que passou pelo meu cérebro. Meu corpo parecia anestesiado enquanto o poder quente deslizava em meus músculos.
Que sensação… estranha.
Meus sentidos retornaram aos poucos. Bartolomeu gritava enquanto suas mãos ardiam com uma brasa prateada e seus olhos raivosos se fixaram em mim. Antes que pudesse fazer qualquer coisa, o som de outro disparo atravessou a muralha de corpos e o atingiu no ombro.
A muralha caiu enquanto seu conjurador se contorcia. Agora é a hora! Alcancei minha espada no chão e avancei em direção ao esquisito, seus olhos se arregalaram ao me perceber. Levantando a lâmina, apunhalei-o na barriga e chutei-o. Caiu para trás com um olhar catatonico, mas após instantes no chão começou a rir.
Na verdade, rir loucamente combinaria melhor.
O que foi aquela sensação? Por que você tá rindo? Quanto mais tento entender, mais difícil fica. Os passos do Marcelo se tornaram mais próximos até que ele apareceu ao meu lado. Nós dois nos entreolhamos e observamos Bartolomeu em seu surto de risadas. Um pulsar em minha cabeça deixou vestígios de dor.
Agh… o que era aquele fogo?
Ambas as mãos estavam em carne viva enquanto a brasa prateada ainda brilhava. Lágrimas escorriam por seu rosto, a ferida na barriga barriga fez sangue descer para sua virilha e uma poça estava se formando abaixo dele. Tentei articular palavras, mas ele apenas ria.
Já matei algumas pessoas, mas nenhuma delas riu antes de morrer. Que bizarro… Os risos do Bartolomeu se tornaram forçados até ele finalmente parar, seu olhar foi da mais pura alegria até o mais profundo vazio, mas o sorriso ainda estava lá. Esse cara é maluco? Vós… nunca ouvi falar deles.
Deixando ele de lado. Olhei para a saída onde Armando estava inconsciente, Marcelo acenou para que eu não me preocupasse e com um estalar de seus dedos, o hexágono se desfez. O ar parecia mais leve, mas o cheiro pútrido ainda estava só um pouco mais fraco do que antes.
— Vocês… perderam… — sussurrou Bartomeu.
— O que…
Como se o mundo balançasse. Algo que só pode ser descrito como o mais puro medo me atingiu, uma visão do interior da minha casa apareceu em minha mente. Eu era outro alguém… Vince! Um idoso que nunca vi estava diante dele, eu conseguia ver o medo de Vincent e sua preocupação principal: Samuel.
Meu coração palpitava tanto que poderia sair do meu peito. Marcelo colocou sua mão sobre mim e repetia a mesma pergunta de novo e de novo e Bartolomeu parecia reconhecer o motivo do meu pavor. Você estava ganhando tempo! Seu filho dá… Enquanto minha visão se focava, um novo objetivo ficou claro.
— Precisamos ir, agora! — Virei-me para Marcelo.
Ele parecia confuso, mas evitou perguntar o porquê e apenas acentiu.
— Corra! Corra bastar…
Bang!
Marcelo atirou na cabeça de Bartolomeu. O buraco de entrada da bala estava limpo, mas o de saída manchou o chão com miolos.
Disparei para sair e ajudei Marcelo a colocar o garoto nas suas costas, fizemos a trajetória para fora da instalação com o dobro da velocidade e chegamos no portão em minutos.
Por que Vincent?! Por que esse homem queria tanto ver minha mente?! Preciso chegar em casa! Preciso salvá-lo! Pai, onde você está? Que porra!
Chegando no carro, um grito estridente cortou o ar e, logo após isso, som de asas surgiram. Criaturas humanoides saíram da mata ao redor do estacionamento e avançaram contra nós. Corpos magros com asas de morcegos em suas costas e dois chifres na cabeça, eram como crianças, ou bebes demoníacos. Eram menores que uma criança, mas estavam em maior número.
Diabretes?!
Consegui abrir a porta antes que eles chegassem até nós, Marcelo jogou o garoto no banco de trás e fechei a porta novamente. Isso tudo foi uma armadilha?!
Um dos diabretes se chocou contra o vidro. Marcelo o matou com um disparo à queima roupa espalhando sangue nele, em mim e no carro. O presságio correu pelo meu corpo novamente e revelou três presenças se aproximando por trás.
Girando para o lado. Realizei um corte limpo em um, mas enquanto atacava o segundo a dor ardida do ferimento em minha perna me fez errar. O corte o fez chorar e gritar, recuperei o equilíbrio e a criatura investiu contra mim. Colocando meus braços na frente do rosto, esperei o golpe e planejei um contra-ataque.
Vai doer…
Marcelo atirou na criatura e seu corpo trombou contra mim. Obrigada. A terceira criatura tentou fugir, mas o empalei pelas costas. Mais dois diabretes avançaram contra nós, tentei proteger Marcelo para que ele pudesse entoar algum cântico, mas os números deles eram muito grandes para conter.
Algo mais rápido…
Foquei em meu fluxo enquanto me preparava para liberar uma Obra. O som de um motor adentrou os grunhidos e gritos dos diabretes ao nosso redor, com o chiados de pneus um carro entrou em meio ao enxame de criaturas e parou no meio do estacionamento. Os diabretes pararam muito brevemente seu ataque para ver o recém-chegado antes de voltarem sua atenção para mim e Marcelo.
O que você está fazendo aqui?!
O carro era de um modelo antigo. Sua lataria verde escuro com algumas faixas na lateral mostrava que era um esportivo muito antigo, mas o desenho da cabeça de um tigre com um palmo de tamanho no capô o deixava ainda mais inconfundível. A porta se abriu para revelar meu pai com um colar em sua mão.
Ele era alto como eu. O corpo era um pouco tonificado e seu sobretudo de couro descia até as coxas, sua barba crescia pelas laterais de seu rosto até chegar no cavanhaque e seu olhar logo encontrou o meu. Olhos de cores distintas se fixaram em mim, ambos carregavam uma fúria discreta com ambos tendo um brilho sobrenatural, mas logo os fechou em concentração.
Ele ergueu sua mão com o colar, fazendo-o brilhar entre seus dedos. Uma onda de calor nos atingiu como uma brisa suave, mas para os diabretes foi algo que só pode ser descrito como mortal. Corpos chamuscados caíram no chão e em segundos o enxame se tornou uma chuva de corpos de bebês demoníacos.
Os diabretes que ainda lutavam pela vida estavam em brasas. Meu pai correu até nós e seu abraço foi rápido demais para desviar, quando me libertei ele passou seus olhos por mim até encontrar o corte em minha coxa. Visivelmente irritado, ele iria perguntar quem o fez, mas eu o cortei.
— Precisamos ir para casa! Vincent e Sammy estão em perigo!
Seu olhar ficou perplexo.
— Mas… eu passei lá e o menino estava dormindo, Vince estava bem e… — Seus olhos se arregalaram e sua voz grave perdeu o tom.
— E o que, pai?!
A resposta veio por outro lugar. O pôr do sol adentrou meus pensamentos, uma explicação mental por meio de cortes de pensamento me foi apresentada coisas que nunca ouvi falar e mesmo assim era fácil de entender. Enquanto estava lutando, o mesmo alarme de perigo que presenciei foi visto por meu pai e Vince.
Eu fui uma isca. Queriam tirar meu pai de perto de Vincent, o deixaram sozinho enquanto pensavam que eu estava em perigo. Conseguiram enganar essa entidade, conseguiram bloquear o sinal enviado para meu pai enquanto ele estava vindo para cá! Como isso… Eles estão em perigo!
Meu pai entendeu meu choque e deu ordens para Marcelo ir para casa junto a si. Minha cabeça latejou e a dor estava sendo combatida pela energia do elo, mas era apenas um alívio temporário. Minhas pernas tremiam ao perceber que havia deixado Vincent sozinho com algo a serviço de um celeste hostil.
Meu pai me guiou até seu carro enquanto Marcelo acelerava em direção a casa. Algo estava represado atrás dos meus olhos, lágrimas desceram pelo meu rosto, mas não eram minhas. Um sussurro melancólico ecoou em minha mente enquanto entrava no carro do meu pai, murmúrios suplicantes e desculpas chorosas.
O que… o que está havendo?
Meu pai viu minhas lágrimas e seu rosto se contorceu em culpa. Sua mente ficou melancólica e por conta do elo conectar os participantes dele, pensamentos com sua voz grave carregadas de tristeza vazaram para minha mente.
Ele está bem! Ele vai ficar bem! Por favor…
— Vamos logo!
Ele ligou o carro e nem mesmo colocou o cinto antes sair cantando pneu. Passava com o carro em todos os lugares que cabia, fazendo rotas diferentes e evitando o trânsito matinal. O som de sirenes soaram pela avenida principal da cidade e caminhões vermelhos passaram no mesmo sentido que nós.
Quando deixamos os prédios para trás, distantes de tudo, uma fumaça negra subia no mesmo sentido da minha casa. Minhas mãos sobre o painel o fazia ranger e meu pai acelerou ainda mais o carro, furando sinais atrás de sinais. Mergulhei em pensamentos em busca de Samuel e Vincent na bússola e eu podia vê-lo, mas estavam silenciosos.
Tentei de alguma forma me comunicar. Se eu posso ouvir seus pensamentos, também posso mandar uma mensagem, né? Tentei muitas vezes, até que minha cabeça querer explodir, mas nada de respostas ou reações. Tentei me comunicar com a entidade, mas tudo que eu recebia era o calor que diminuía a dor.
Eles estão bem, precisam estar bem…
A rua estava deserta, exceto por caminhões de bombeiros. O carro de Marcelo estava atrás do dele e enquanto minha casa junto às demais casas vizinhas ardiam em chamas, eles jogavam água para tentar apartá-las ou diminuir sua intensidade. Meu coração queria abrir um buraco em meu peito enquanto batia e tudo ficou em flashes.
Mal me lembro de abrir a porta do carro e correr em direção ao fogo. Vozes gritando para que eu me afastasse se tornaram ecos em minha mente, meu portão e porta da frente estavam destruídos e nosso jardim estava em brasas. Meu pai me alcançou e nós dois avançamos em direção ao interior da casa.
— Glória… pegue Sammy e… vá. — A voz fraca, mas inconfundível de Vincent ressoou em minha mente antes de entrar.
Um inferno ardente foi o que se tornou minha casa. Fogo nas paredes destruía tudo que encostava e na sala de estar, Marcelo estava entoando contra o idoso que vi na visão de Vincent. Armando estava tentando acertar o velho com um pé de cabra, mas todos os golpes eram desviados.
— Glória… aqui…
Debruçado no chão. Vincent tinha suas mãos envoltas em Samuel, uma grande mancha de sangue descia da sua barriga para o chão e sujava Samuel também. Corri até ambos, tentei lutar contra o choro, mas meus lábios continuavam a tremer.
Samuel estava com nossas cortinas enroladas em seus braços.Vincent estava pálido e seus olhos mal conseguiram subir para encontrar os meus. A dor em meu peito parecia que meu coração estava sendo puxado para fora de mim. Ajoelhando em frente a Vince, ele empurrou Sammy para meus braços.
— Árvore… cura…
— Vince… — O aperto em meu peito se intensificou.
Seu olhos marejaram. Através do elo, vi a dor que ele estava vivenciando. Ele sorriu para mim, um sorriso pequeno e carinhoso que ele sempre me dava. A mão de meu pai pousou sobre meu ombro enquanto Vincent respirava cada vez mais devagar.
— Eu te amo… Vince.
— Eu… também… amo… você.
Seus olhos perderam seu brilho. Sua respiração se estagnou e mesmo dentre as chamas, um silêncio avassalador percorreu minha mente. O que eu faço agora? Por que teve que ser assim… Soluços me escaparam e logo após eles lágrimas escorreram de meus olhos.
— Desculpa… desculpa…
Batidas fracas surgiram em minha mente. Eram contínuas e aos poucos ficava forte, mas depois regredia. Sammy se remexeu em meus braços, sua mente estava adormecida, mas a dor ainda estava lá. Eu vou proteger você, eu vou proteger você. Olhando uma última vez para Vincent, fechei seus olhos.
Eu… ainda não estou pronta para dizer adeus.
Fraquejei na hora de levantar e meu pai me ajudou. Marcelo e Armando ainda estavam em seu duelo com o idoso minha mente vagueou em como contar isso para Marcelo, mas logo o objetivo primário tomou conta. Sammy precisa de cura, Samuel vai viver… Meu pai foi ajudar eles contra a criatura enquanto eu saia de casa.
Você vai ficar bem, eu juro, meu bebê.