Volume 1
Capitulo 11: Socorro II
[Segunda-Feira 12 de Fevereiro de 2404, 09:46 da manhã]
Marcelo Dias
O som das chamas vinham de todos os lados. As paredes logo eram encobertas pelo fogo, junto a ela os móveis e aparelhos também desapareciam nas chamas. A sala de estar se tornou um campo de batalha com o idoso que invadiu a casa desviando dos golpes de Armando.
Por que eles ainda estão aqui?!
De canto de olho vi que Glória e seu pai estavam ao redor de Vincent e Sam. Quando entrei aqui vi que ambos estavam machucados, mas esse desgraçado começou a atacar a mim e a Armando quando tentei ajudá-los. Leve eles daqui!
— Os corações apodrecidos serão purificados pelo Fogo do Senhor. — O invasor estendeu ambas as mãos e fogo vermelho dançou em suas palmas.
A aparência idosa era uma mentira. Seu corpo esguio tinha mais agilidade que um jovem e ele tinha força o suficiente para trocar golpes com Armando. Mesmo que ele pareça, a pele pálida e rachaduras na carne logo abaixo dos olhos mostra que ele está longe de ser um humano.
Abri meu livro e o folheei até encontrar a página que queria. O velho tentou investir contra mim, mas o garoto o atrapalhava em seus golpes, mesmo que essa cobertura durasse pouco tempo, era e foi muito útil. Achei! A página coberta por grifos e cânticos em latim possuía símbolos para facilitar a visualização.
Movimentei o fluxo pela minha mente enquanto formava a obra. Sine convergiu com fie e ambas irromperam da minha mente para a realidade através do livro. Um prego se materializou e rolou até o meio das páginas, era do tamanho da minha palma e um fino fio de fluxo me conectava a ele.
Um minuto antes de desmaiar.
Essa é uma obra que criei por conta própria. O prego é como uma passagem que conecta a realidade ao plano existencial além daqui. Se eu o enfiar especificamente na cabeça de qualquer criatura vinda do plano astral, ela será banida para lá novamente. Se eu falhar… bom, vai doer muito.
Por favor, que você realmente seja do plano astral.
Disparei em direção ao velho com a passagem em mãos. O garoto atacou comigo com seu pé de cabra, o invasor segurou o ataque dele e entortou sua arma. Após desarmar o garoto, ele tentou empurrá-lo no fogo, mas falhou quando o atingi com um chute.
Vai ser só uma picadinha.
Dei uma sequência de socos e ele retribui. Entre meus golpes, tentei apunhalar sua cabeça, mas ele era rápido demais. Tive que redirecionar seus ataques para ficar longe do fogo vermelho e Armando tentou enforcar o velho, mas abriu uma brecha para ser atingido.
Que merda, garoto! Trinta segundos!
Saltei sobre o invasor e segurei seus antebraços. Suas mãos estavam a poucos centímetros do rosto de Armando que estava o enforcando por trás, puxei ambos os braços até que suas mãos se encostassem a sua frente e tentei golpeá-lo com o prego na minha boca, mas o ataque atingiu o lugar errado.
Ele se desvencilhou do garoto com uma cabeçada para trás enquanto se esquivava. Cai sobre ele e o prego entrou em sua clavícula, ele forçou suas mãos para baixo escapando do meu aperto. A sensação quente se aproximando das minhas costelas fez com que me preparasse para a dor que viria.
O som de um disparo subjugou o crepitar do fogo ao nosso redor por um breve segundo. Suas mãos tocaram minhas costelas, mas elas estavam apenas quentes e a sensação de estar sendo queimado nunca chegou.
Dei uma joelhada nele e o empurrei para trás. Afastando-me, vi que havia um buraco na lateral do seu peito e o fogo havia sumido das mãos dele, seu olhar rancoroso ia de encontro com o pai de Glória enquanto cobria a ferida com sangue escapando entre seus dedos.
— É um desprazer te ver, Goro. — A criatura tinha seus olhos laranjas fixos nele.
Por que…
O breve momento foi um lapso de tempo muito maior para mim. Glória se aproximava da porta com Samuel nos braços, mas Vincent não estava com ela. Talvez eles já o tenham levado… Lutei contra minha curiosidade, mas perdi e meus olhos deslizaram para onde meu irmão estava.
Seu corpo deitado no chão com os olhos fechados. Seu peito estava inerte e me mostrava que estava sem respirar, suas feições estavam calmas e suas mãos com um aperto fraco acima do ferimento na barriga. Tentei buscar sua presença, mas tudo que havia eram resquícios em seu corpo.
Meus olhos foram para Goro. Sua carranca impassível se tornou uma feição de tristeza ao encontrar meu olhar, ele acenou com a cabeça e reparei que, além da raiva e tristeza, seus olhos estavam marejados. Isso… isso… Minha pernas tremeram enquanto mais desesperada ficava minha busca por explicações.
Por que?
No silêncio da minha mente a pergunta ficava cada vez mais alta. A boca do velho se mexia, mas tudo que eu fui capaz de ouvir era meu próprio sangue correndo para a cabeça. Ele está morto… você o matou. O prego aumentou de tamanho, tenho menos de vinte segundos restando antes da obra colapsar, mas eu já sabia quem era meu alvo.
O querer de apenas evocar outra obra com um pacto de anulamento subiu por mim como um desejo frio. Mas havia muito mais em jogo, a vida de Armando, Goro, Glória e Sammy. Meus olhos estavam ficando pesados, minha respiração trêmula, mas não era pela fumaça e fogo ao meu redor. Eu vou te caçar…
De hoje até o dia da sua morte.
Avancei em direção ao desgraçado. Ele esticou suas mãos cobertas de sangue em minha direção e o brilho vermelho surgiu por segundos antes que se apagasse novamente. Com o som de outro disparo, a bala do Goro atingiu o peito do velho o empurrando para trás.
O sangue vermelho caramelo escorria de suas feridas, mas somente depois dos disparos do Goro ele estava demonstrando real fraqueza. Girei o prego em minha mão, meus olhos estavam se focando cada vez mais quando o desejo frio se intensificou.
Aproveitei sua fraqueza e saltei em meio a corrida e frenesi. Preparei o prego para uma estocada, suas mãos se juntaram acima da cabeça, mas ambas também foram impaladas pela minha estocada. Suas mãos estavam presas pelo prego em sua testa, seu olhar descrente encarando o meu enquanto estava a sua frente e dava alguns passos para tras, sendo atingido pela realidade.
— Lembre-se de mim, lembre-se desse dia e nunca esqueça esse momento. — Você vai pagar…
Seus olhos sobrenaturais se reviraram para trás. O som de uma sucção surgiu do prego e seu corpo se contorceu medonhamente em uma espiral em direção a cabeça. Sua carne foi rasgada e os ossos destruídos, ambos tingidos pelo tom caramelo do sangue junto as outras coisas ao seu redor foram sugados sem chance de escapar da força de atração que a passagem criou.
Houve silêncio. Tudo estava silencioso, desde o fogo ou minha própria voz interna, Armando e Goro tentavam me tirar da casa e suas expressões aflitas se colocando a minha frente. Ele tentaram me arrastar para fora, mas apenas continuei indo em direção a Vincent.
Não posso te deixar aqui.
Minha mente estava em uma corda bamba. O rebote por ter usado a passagem em cima da hora causava pulsações dolorosas no meu cérebro, mas de qualquer forma eu cheguei no meu objetivo. Ajoelhei-me ao lado de Vince, toquei o seu pescoço na esperança que algum milagre ocorresse ou que fosse tudo um pesadelo.
Por favor…
O choro chegou junto a soluços. Por que você? O que eu faço agora? A mão de Goro tocou meu ombro e ele junto a Armando se ajoelharam ao meu lado, meu olhos foram para o garoto, seu feição aflita foi banhada em tristeza enquanto me encarava. O que eu faço, garoto? O que preciso fazer para ser acordado?
Seus olhos foram para Vincent. Ele passou um braço por debaixo de suas pernas e o outro de baixo de seu peito, erguendo-o do chão como se estivesse apenas dormindo em seus braços. Goro passou o braço ao meu redor e me ajudou a levantar com minhas pernas fraquejando e o sangue descendo pelo meu nariz.
Andei até a saída enquanto me escorava em Goro. A fumaça cobria a rua causando tosses a nós três, andamos até a rua onde havia um constante movimento dos bombeiros. Armando tentou ser discreto enquanto carregava Vincent, mas estava apenas atrasando o inevitável.
— Sobreviventes! Aqui! — Uma voz cortou a fumaça perto de nós.
Um dos bombeiros com uma roupa de proteção apareceu. Ele passou por mim e Goro e fui direto para o corpo de Vincent, provavelmente julgando que ele estava em estado crítico. Após um momento, ele trocou olhares com Armando e andou em minha direção.
O homem colocou as mãos no meu rosto. Apalpando e abrindo meus olhos, boca e virou minha cabeça para ver minhas orelhas. Sua inspeção o fez abrir a maleta que tinha consigo e pegar alguns frascos e seringas. Tentei dizer que estava bem, mas ele apenas ignorou a mim e a Goro.
— Vi sinais de possível derrame, por favor, venha comigo para a ambulância — ordenou o homem com um olhar feroz.
Explicar para ele que isso é algo que ele nunca vai entender demoraria muito. Goro tirou seu distintivo e mostrou ao homem, mas seu olhar continuava impassível enquanto tentava alcançar meu braço para poder usar a seringa. Desculpa por isso…
Goro fez algo antes que pudesse. Seus dedos tocaram a testa do homem, pude ver uma pequena pulsação do seu fluxo correr por seu braço e desaparecer na cabeça do homem, a expressão do bombeiro ficou entorpecida antes da cabeça pender para baixo e ele desmaiar em pé. Armando deu um breve olhar assustado antes de seguirmos em frente.
Chegamos onde Goro havia deixado seu carro. Apenas meu carro estava onde eu havia deixado, o dele havia desaparecido e apenas a borracha dos pneus estava gravada no chão. Glória… Olhei para Goro, sua expressão pensativa logo ficou calma enquanto olhava meu carro.
— Preciso ir ver Glória, fique aqui. — Ele tentou avançar para o carro, mas o segurei mais firme.
— Eu vou junto, garoto, leva… — As palavras ficaram presas na minha garganta. — Liga para Leonardo e… entrega Vincent para os bombeiros.
Seu olhar fraquejou. Ele concordou com a cabeça após alguns segundos, Goro parecia querer contestar, mas apenas me ajudou a entrar no passageiro do carro. No banco, tentei afundar mais no estofamento, mas já havia chegado no limite.
Goro ligou o carro e partiu em direção a rodovia. O peso dos acontecimentos caíram sobre mim no meio da estrada, soluços e lágrimas desciam sem parar enquanto uma garoa começava a cair do lado de fora. Vincent… desculpa… desculpa. Goro ficou quieto enquanto eu grunhia em meio a choro.
Após alguns minutos na estrada. As lágrimas ainda caiam, mas eu já havia recuperado o controle, de certa forma. Ele costurava entre os carros, cada vez mais rápido até que ele diminuiu em uma derrapada controlada para entrar numa estrada baldia em um bosque.
Pinheiros nos rodeava enquanto seguíamos a estrada. O bosque ficava mais denso a cada quilômetro percorrido e o piloto transparecia cada vez mais sua impaciente. Busquei no fluxo alguma forma de conforto, deixei meus pensamentos correrem por ele enquanto observava a mata de pinheiros, antes era a tristeza, mas agora um vazio tomava minha mente. Agarrei essa apatia, mesmo que por pouco tempo, para que pudesse ajudar Sammy.
A mata se abriu em uma clareira oval. O carro de Goro estava encostado no canto com a porta aberta, ele parou meu carro atrás do dele. Cercados por pinheiros, havia um galpão com as portas abertas e alguns murmúrios saiam dele. Goro correu para lá, eu tentei ir o mais rápido que pude, mas era difícil correr sem perder o equilíbrio.
A imagem que vi parecia ter sido tirada de uma fantasia. Uma árvore de tronco translúcido como vidro quebrado banhado em azul com folhas elegantes desenhadas como vitrais dourados, névoa rasteira cobria os pés e um fluxo corria dentro do tronco. O que é…
Meus olhos foram para Glória. Ela estava ajoelhada em frente a árvore com Sammy a sua frente, aproximei-me devagar e me ajoelhei ao lado dela junto a seu pai. Por que você tambem… Sammy?! Os braços do menino estavam cobertos por uma crosta negra, com sangue escorrendo entre as rachaduras e os pontos que não estavam queimados, estavam em carne viva.
Meu instinto foi tentar cobrir suas feridas. Mas Glória com um rosto choroso segurou minha mão, ela tentou falar, mas soluços deixaram sua voz incompreensível. Após alguns segundos, ela se recompôs o suficiente para formar frases, mas seu choro ainda estava presente.
— Preciso tirar o veneno dele. — Seu rosto choroso se transformou em uma expressão impassível de coragem.
Veneno?!
— Como?!
Seu olhar ficou perene enquanto encarava a árvore. Goro parecia ter entendido e passou a mão pelo rosto sem esconder a ansiedade do seu olhar. Um estrondo entrou pelas portas do galpão, do lado de fora, a garoa subitamente se tornava uma tempestade. As portas se fecharam sozinha e a luz da árvore se tornou mais forte.
Uma presença quente se espalhou pelo ar. Partículas negras e luminosas flutuavam ao redor da árvore, elas dançaram entre si antes de ir em direção a Samuel. Elas mergulharam em seu peito na forma de um tornado de luz e trevas, fazendo com que brilhasse levemente e seus pequenos espasmos de dor parassem.
— Estou pronta. — Glória quebrou o silêncio do lugar com seu olhar determinado.
— Filha, deve haver outra forma, apenas… — Goro parou quando sua filha olhou para ele, um olhar que nunca conseguiria decifrar.
— Para que você está pronta? O que vai fazer?
Seu olhar encontrou o meu. Tudo que vi era culpa, eu sabia o porquê, mas me recusei a culpá-la pelo que houve. Seus olhos foram para Samuel enquanto murmurava algo em um idioma estranho, um que nunca a ouvi falar antes, as partículas logo encheram o galpão como um céu de estrelas negras e luminosas.
— Eu te explicarei… mais tarde. — Seus olhos se fecharam e ela caiu para os braços do seu pai.
Desespero encheu minha mente. Seu pai ergueu a mão quando tentei acordá-la, mas algo maior percorreu meu corpo. Uma onda de calor inundou minha mente, meu cérebro dolorido parecia melhor que o normal. Uma voz distante falava comigo, mas minha mente estava fechada no momento.
A curiosidade superou o receio. Abri minha mente para a voz, minha consciência balançou e por um momento e parecia tudo foi um sonho muito ruim. Logo retornei a meu estado de espírito, mas a voz apareceu novamente, mais clara e dessa vez entendi suas palavras.
— Eu vou cuidar deles. — Ela estava carregada de uma tristeza palpável.
Apenas o breve passeio dessa presença em minha consciência fez meus olhos lacrimejarem mais. Ela se distanciou, mas ainda estava à vista. Uma entidade? Por que… Os olhos de Goro se focaram em mim, queria fazer perguntas, mas ao que parece ele já esperava isso.
— No momento, vou adiar a explicação… foque no agora.
Coloquei-me ao lado de Samuel. Seu peito ainda brilhava fracamente, sua respiração se estabilizou e uma espécie de fumaça vermelha saiu de suas feridas desaparecendo no ar logo em seguida. Glória se remexeu soltando grunhidos de dor antes de cair novamente ao silêncio.
— Está feito. — murmurou Goro.
Seu pai a abraçou mais forte enquanto lágrimas desciam seus olhos. Da manga do sobretudo de Glória, sangue escorreu do seu braço para a mão. Segurei minha curiosidade e encarei Goro que se levantou com ela nos braços. Tirei meu casaco e enrolei os braços de Samuel com tiras que tirei dele.
Goro abriu a porta e me esperou para sair. O temporal estava a todo vapor, com granitos bombardeando os paralelepípidos enquanto trovões estouravam nos céus e o vento soprava. A árvore brilhou mais uma vez, um último pulsar de luz antes que sua forma começasse a mudar.
Seu tronco e folhas perderam seu brilho para ficarem opacos. As partículas sumiram na atmosfera, mas ainda conseguia ver a presença em minha mente. Sua voz soou novamente, se não fosse pela tristeza que ela carregava, eu pensaria que era apenas um pensamento distante.
— Venha me encontrar…
Um trovão me tirou do transe. Goro correu para o seu carro com Glória, eu fui atrás colocando Samuel mais próximo a mim na tentativa de protegê-lo da chuva. Com passos largos, cheguei ao esportivo antigo do Goro e entrei sem demora, ele colocou Glória deitada no banco de trás antes de sentar e dar a partida.
Goro olhou para seu neto com culpa e dor nos olhos. Seus lábios tremiam levemente e estava claro que ele lutava para manter a fachada de calma, o menino soltava alguns grunhidos de dor e se remexia as vezes. Um hospital fará muitas perguntas e pouco trabalho, precisamos de um lugar com os remédios certos.
— Vamos para sua casa, ele precisa dos curativos que você produz. — Talvez os únicos que funcionem efetivamente nele… nessa situação.
Ele limpou a garganta e virou o olhar à frente e seguiu a estrada. A presença ainda estava de alguma forma presente em minha mente, como um visitante esperando para ser recebido ou um convite. Suspirei e fechei meus olhos desejando acordar de um pesadelo, mas duvido que o destino seja tão bom quanto e cruel.
Quando eu vim buscar meu carro, tratarei de você.
O carro avançava rápido na estrada. O granito contra a lataria criava estalos, mas eram suprimidos pelo estofamento. O céu do meio dia estava praticamente escurecido como o anoitecer e o pensamento daquela criatura ter fugido tão facilmente me causava náuseas. Por agora… tenho coisas… mais importantes para fazer.
Olhei para Samuel em meus braços ao chegarmos na rodovia. Seu cabelo vermelho escurecido tinha pontas mais avermelhadas, seu rosto estava com sangue seco ao redor dos olhos com uma ferida no lado direito do rosto que ia até a bochecha. Um aperto surgiu em meu peito e o vazio no qual me agarrava para manter a compostura rachou.
Você vai ficar bem… eu juro por tudo, você vai ficar bem.