Volume 1

Capítulo 12: Cura do que foi salvo

[Terça-Feira 13 de fevereiro de 2404, 02:01 da manhã]

Glória Merial

 

O silêncio se apoderou da minha mente. Um véu escuro cobria minha visão e se erguia para criar um eclipse, um mar feito de sombras que estava na altura das coxas ondulava como a água. A árvore estava lá, brotando em meio a escuridão; espalhando sua luz por alguns metros ao seu redor. 

 

Samuel?

 

A dor do meu corpo físico vazou brevemente para minha mente. As pulsações dos músculos, a sensação de ter meus ossos sendo comprimidos, tudo isso acompanhado com o sentimento de estar queimando de dentro para fora... Isso dói, mas sei que algo estava reduzindo isso para esse nível… suportável. 

 

O calor do pôr do sol estava se movimentando por mim. Neste cenário da irrealidade, a presença dele era mais forte, como se fosse a própria presença em si ao invés de apenas uma conexão. As duas energias lutavam entre si, o veneno que enfraquecia para depois atacar e o pôr do sol sugava parte dos danos. 

 

Grande parte.

 

Essa luta que estava ocorrendo dentro de mim me trouxe um fato agoniante. Samuel… só tiraram parte disso dele, preciso tirar tudo! Como uma resposta aos meus pensamentos, a árvore pulsou em luz e energia e as sombras se retorceram junto à luz para esculpir a mulher do galpão.  

 

Você… cumpriu com o que disse. Lembro-me de quando cheguei ao galpão, a imagem de Sammy tão pálido e dolorido fazia minha mente se encolher, me lembro vividamente do meu desespero enquanto esperava a voz, presença ou o que quer que fosse disposto a ajudar. 

 

A voz veio até mim tão rápido que me assustei em resposta. Sammy havia sido envenenado pela energia da coisa que invadiu minha casa, a voz não tinha a cura para esse veneno, mas tinha algo muito próximo de uma. Entre os detalhes, o que mais me importava era que Sammy ia viver.

 

Mesmo que… com cicatrizes onde é difícil curar. 

 

Quando ela foi esculpida a mulher estava igual a última vez, mas seus olhos carregavam uma tristeza palpável, suas feições outrora calmas estavam carregadas de culpa. Ele se aproximou de mim evitando meus olhos, esperei enquanto a ansiedade crescia em mim. O que aconteceu lá fora?! 

 

— O que houve com Sammy?! 

 

— Goro… seu pai levou vocês dois acompanhado pelo seu cunhado para casa, estão tratando de vocês enquanto você está aqui e… Samuel está inconsciente. — Sua voz surgiu em minha mente.

 

— Mas ele está bem, né?! Você disse que ele ficaria bem com o tempo!

 

Ele é um menino, pequeno e… frágil, o que fize-, fiz para salvá-lo, é algo que nunca imaginaria que fosse dar certo. Mas minha maior preocupação agora é você, Glória. 

 

Seus olhos se ergueram em direção aos meus. Como uma médica analisando um enfermo, ela estendeu sua mão em minha direção e a colocou acima do meu coração. Meu fluxo tremeu antes do calor subjugar a dor constante da guerra interna que acontecia em mim. 

 

O momento durou alguns instantes antes que o calor diminuísse. A guerra ainda acontecia, mas a dor era menor e o campo de batalha parecia mais controlado do que antes, como se os soldados aliados suprimissem os ataques inimigos com precisão. Mas o veneno ainda estava lá.

 

Sua mão recuou e seu olhar ressentido mostrava que talvez ela queria um resultado diferente. Eu podia ver em mim mesma que algo havia mudado, essa sensação estava mais devagar agora e de certa forma diferente. Antes era eu que estava sendo mudada, agora era como se eu estivesse moldando algo. 

 

— O que vai acontecer com Sammy? Isso pode ser curado? 

 

Eu chamei essa energia de "Veneno" para seu melhor entendimento. Na verdade, isso é uma força anciã que, infelizmente, pode ser manipulada para fins maliciosos. É uma força de purificação natural que deveria sugar e destruir tudo que é corrupto ou maldoso, por isso você é minha maior preocupação.

 

— Mas ela estava fazendo mau a Samuel!

 

Samuel é uma criança e portanto tem um espírito puro e inocente e isso é algo que a força anciã vai reconhecer quando estiver livre da manipulação, o que fiz foi isolá-la para que a energia pudesse se purificar dessa manipulação que sofria e parasse de atacar Samuel. 

 

Uma força anciã? Já ouvi falar delas e, pelo que ouvi, são algum grupo ou tipo de entidades poderosas, mas podem ser manipuladas para servir a um propósito oposto àquele que ela existe? Isso é… cruel. Se ela foi manipulada para envenenar e corromper ao invés de purificar, o que isso significa para seus alvos?

 

Mas o que me chama atenção é como ela conseguiu isolá-la. Forças anciãs são praticamente onipresentes pelo que sei, elas são  conectadas mesmo que estejam fisicamente separadas ou distantes. Seria como separar uma bolha de água dentro de um jarro de água, que tipo de poder faria isso? 

 

Se ela consegue isolar uma força, também pode movê-la, né? 

 

— Por que você não tira isso dele? Você consegue, né?!

 

Seus olhos fraquejaram enquanto me encarava. 

 

Eu… isso é impossível… mas ele vai ficar bem. Eu prometo, Glória.

 

Impossível…

 

Uma pressão subiu pela minha garganta. Era algo diferente da guerra interna, uma ansiedade crescente junto a tristeza que reprimi por algum tempo. Vincent… Fui incapaz de esconder meus pensamentos e a Dama abaixou a cabeça após lê-los. 

 

Forças Anciãs são consumidoras no sentido literal da palavra. Se uma força de purificação estava sendo manipulada para envenenar o espírito e corpo das pessoas, o que acontece com quem… é morto por ela? Meus olhos ficaram pesados, mas mantive a compostura. 

 

— Vincent… ele… 

 

O que o feriu foi um ataque físico, seu espírito está intacto e… descansando.  

 

A onda de emoções foi forte demais para segurar. A tristeza por perder uma parte de minha vida e do meu futuro, culpa por ter sido incapaz de proteger ele e Samuel, raiva de quem matou Vince e arruinou a vida do meu filho e… alívio, por saber que seu pai teve paz no final. 

 

Uma lágrima escapou e meus lábios tremeram. Tirei alguns segundos para me recompor, mas sabia que o esse momento estava chegando a seu término. Preciso ser forte. Deixei os sentimentos se acalmarem para conseguir formar meus pensamentos. 

 

Pelo Samuel!

— Você disse que isolou a conexão da pessoa que manipulava a força anciã, mas como podemos conviver com ela em nós? 

 

Após o período de desintoxicação da força anciã, ela será ela mesma.

 

— É apenas isso então? Como sabe tanto? Quem é você? 

 

Seus olhos continham um pesar após alguns segundos.

 

Eu… sou incapaz de prometer que será imune a efeitos colaterais, assim como sou incapaz de afirmar que isso vai sempre afetar vocês de forma benéfica as suas vidas, mas eu sempre estarei aqui para tentar ajudá-los. Meu nome é… Meyrina.

 

O mar de sombras ondulou ao meu redor. O corpo da Meyrina começou a se desfazer em partículas luminosas enquanto minha consciência começava a cair nas sombras. Minha última visão foi da Dama me dando um sorriso consolador enquanto seu corpo se transformava em flocos luminosos e ia em direção a árvore. 

 

As sombras tomaram minha visão. Entre o silêncio dos meus sentidos, a única sensação presente para mim era meu fluxo. Ele estava diferente, talvez porque havia uma passagem em mim para um força anciã. Mas de alguma forma, eu sabia que meu espírito estava ficando mais forte por isso.

 

Meus sentidos voltaram e, com eles, a realidade. Cada músculo estava dolorido e cansado. Tentar abrir os olhos era um trabalho árduo. O ar estava impregnado com cheiro de ervas medicinais. Era semelhante ao cheiro de hospitais.

 

Meu senso astral estava captando tudo sem pausa. Uma presença apareceu perto de mim, meu fluxo parecia tão refinado que podia dizer o tamanho da pessoa e até mesmo o peso. A sensação era tão familiar que meus olhos marejaram, uma aura gentil e inocente que reconheci como parte de mim mesma.

 

Samuel!

 

Minhas forças voltaram e acabaram muito rapidamente. Esse pico de força foi o bastante para abrir os olhos, virei a cabeça ao redor para ver ele  do outro lado da sala que estávamos. Seus braços estavam envoltos em bandagens e seus olhos também, havia três bolsas diferentes de soros do lado de sua cama, pequenos tubos desciam até as três agulhas colocadas em seu pescoço. 

 

Sentei-me na cama. 

 

Força!

 

Meu corpo estava fraco, estava mais pálida que o normal e meu senso astral parecia estar ligado em seu máximo constantemente.

 

Estou indo!

 

Tentei me colocar de pé, mas o chão me recebeu com indelicadeza quando caí sobre ele. 

 

Quando caí que percebi a bolsa de soro presa a mim. O barulho do suporte caindo deve ter sido o suficiente para alertar meu pai, mas uma ideia me veio à mente. Agarrei-me ao suporte e, usando-o de muleta para me colocar de pé, caminhei vagarosamente até Sammy usando as rodinhas do suporte como um leme. 

 

Ahhh, meu pobrezinho... Por que você?

 

Meus músculos pulsavam enquanto segurava meu próprio peso. Consegui chegar até ele, soluços subiam por minha garganta e minhas pernas fraquejaram por vê-lo assim. Desculpa… me desculpa meu bebê. Com o primeiro soluço minhas pernas falharam.

 

Cai sobre meus joelhos. A dor nunca chegou, apenas uma enxurrada de tristeza e culpa que parecia não ter fim. Entre soluços, o peso das coisas finalmente estavam caindo sobre mim, fato atrás de fato deixavam meu choro mais desesperado. 

 

Nunca mais verei os sorrisos de Vincent. Nunca mais poderemos planejar o futuro juntos e Samuel nunca poderá ir pra escola. Ele terá que conviver com uma passagem para uma força anciã poderosa dentro de si e simplesmente teremos que aceitar isso pois somos incapazes de fazer qualquer coisa.

 

Tudo que eu queria era ficar com meus meninos, longe dessa vida.  

 

Roubaram uma parte do meu coração, quase roubaram a outra. Meu choro durou por algum tempo até que fiquei sem forças para chorar, o sentimento de vazio foi sugado quando Samuel começou a tremer. Bebê?! Olhei para suas bolsas de soro que tinham acabado. 

 

Antes que eu pudesse substituí-las meu pai apareceu. Seus olhos vieram em direção a Samuel e se arregalaram ao me ver, a expressão de cansaço foi substituída por preocupação e ele andou rapidamente até nós. Antes de qualquer coisa, ele trocou as bolsas e checou Sammy. 

 

Ele se sentou ao lado da cama e me ofereceu um lenço. Enxuguei ao redor dos meus olhos e nariz antes de começar a acariciar a barriga de Sammy. Após um tempo o acariciando ele começou resmungar como antes, um pouco baixo, mas o resmungo infantil de estar gostando do carinho era o mesmo. 

 

A mamãe tá aqui.

 

— Ele é um menino forte, com certeza puxou o vovô Goro. — Meu pai apertava os dedos do pé do Samuel, sacudia e passava para o próximo. 

 

— Ele vai… 

 

Meu pai balançou a mão e colocou os cotovelos sobre os joelho enquanto parecia pensar.

 

— Eu estudei o tipo de poder usado por esses cultistas, mas nunca imaginei que veria aquela coisa de novo. Eles enganam uma força poderosa e tive fé que isso sairia pela culatra após algum tempo… Eu falhei, filha, me perdoe. — Ele manteve sua cabeça baixa, deixando seus olho no chão a todo momento. 

 

Não...

 

A culpa não foi sua.

 

— Se existem mais seres como esse, teria sido apenas um peão diferente. — As palavras entalaram na minha garganta. — Se eu estivesse lá, teria dado uma chance para Vincent e Sam fugirem enquanto segurava aquela coisa… Eu que falhei. 

 

Meus olhos foram para Sammy. Com meu senso astral em seu máximo, conseguia ver a força anciã dentro dele, mas diferente de mim havia algo a mais lá. Uma fagulha de energia brilhante de algum tipo, ela parecia conversar com a força purificadora ao invés de guerrear contra ela. 

 

Essa fagulha tinha um brilho muito grande para seu tamanho. Mas talvez eu nunca conseguiria vê-la se meu senso astral não estivesse amplificado. Ela começou a ressoar comigo, como se notasse que eu notei ela e tentasse me ajudar com minha condição. 

 

— O que vai acontecer com Samuel? E… comigo?

 

— Tenho esperança que seus corpos e espíritos sejam capazes de fazer com que essa força faça parte de vocês, isso já foi feito antes e pode ser feito de novo, mas… — Ele parou com uma expressão amargurada. 

 

— Pai… continua.

 

— As forças anciãs ressoam com a própria existencia em si, as entidades elas podem vê-las e portanto… o que está em conexão com uma força, entra nesse campo de visão — falou, após um suspiro.

 

— Há um meio de proteger ele, né?

 

— Estou cuidando disso, mas tudo que podemos fazer é atrasar o inevitável. A entidade que mandou aquele servo para sua casa está além da nossa compreensão atual, temos que ficar vigilantes e nos mudar daqui.

 

Uma mudança, é? Acho bom. Recostei-me na cama observando o peito de Samuel subir e descer, ver esse movimento acalmava meu coração de uma forma inexplicável. Estava aflita esperando o momento em que ele vai acordar, dividida entre felicidade e melancolia do momento. 

 

Como explicar a metade de tudo isso para ele? Apenas a parte sobre Vince… vai quebrá-lo, eu preciso estar lá para ajudá-lo e fazer com que essa dor não o faça parar. Preciso ser forte, preciso chorar agora para que eu possa confortá-lo quando ele chora.

 

— Para onde vamos? — Que seja muito longe. 

 

— Uma cidade pequena perto de Alturas, a floresta amazônica tem belezas e energias que vão ajudar na recuperação dele e… é onde fica a base da ordem... Conselho... Lugar que eu sirvo, Marcelo vai conosco e foi preparar algumas coisas. 

 

Marcelo…

 

— Como ele está? E que coisas? Aliás, que horas são? 

 

— Ele está igual a você e eu, abatido por dentro. Foi identificar o corpo de Vincent para darmos um funeral adequado para onde iremos. — Ele olhou o relógio no pulso com cansaço. — São duas da manhã. Tente dormir, filha.

 

Talvez pela menção do horário meu corpo começou a ficar mais pesado. A respiração rítmica de Samuel era hipnotizante, queria dormir ao seu lado e me esforcei para subir na cama. Com ajuda de meu pai consegui fazê-lo, coloquei minha mão acima do seu coração e apenas queria sentir seu coração batendo. 

 

Meu pai sentou novamente nos pés da cama. Ele olhava pensativo para o teto, como um guardião cuidando de seus protegidos. Seu cabelo negro era igual ao meu, suas barba feita dava a ele um aspecto feroz, mesmo quando calmo. Ele tinha heterocromia, igual a Sam. 

 

Minha atenção foi para Samuel. Mesmo com as bandagens cobrindo os olhos, conseguia imaginar como eles eram, o lindo verde musgo no esquerdo e roxo enegrecido no direito. Seu cabelo estava um pouco sujo, mas ainda tinha o mesmo cheiro de cereja do seu shampoo preferido. 

 

Queria ver seus lindos olhos junto àquele belo sorriso... Mas sabia que isso demoraria para acontecer, essa esperança pendurava dentro de mim e, com isso, meus olhos começaram a pesar de novo. Deixei que o choro saísse junto a tudo que estava guardando, preciso que isso saia agora para que não saia na frente dele. 

 

Meu Fluxo ondulava dentro de mim com os novos visitantes. O pôr do sol ondulou em resposta para me consolar enquanto a força anciã se recusava a esboçar qualquer reação além da sua natureza envenenada. Como se isso corresse por mim, a nocividade estava diminuindo, mas ainda era agressiva ao toque. 

 

A fagulha que habitava o peito de Samuel começou a ressoar comigo. A força anciã parecia estar se enfraquecendo e com ela minha consciência também, meus olhos ficaram pesados enquanto o cansaço batia na porta da minha mente. 

 

Deixei que o sono entrasse e a única coisa que pedi foi um bom sonho. Meu corpo aos poucos ficava anestesiado, o Fluxo de alguma forma estava sempre ativo, mas isso não afetava minha mente… como antes. Deixei que meu espírito conversasse com a fagulha enquanto mergulhava no abraço de Morfeu, para junto de Sammy. 

 

Eu vou cuidar de você… eu prometo.



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