Volume 1

Capítulo 13: Antes da tempestade

[Quinta-Feira 16 de Fevereiro de 2404, 08:22 da manhã]

 

O céu nublado estava escurecido mesmo sendo perto do meio dia. Eu observava a garoa cair através da janela enquanto estava sentada no pé da cama onde Samuel descansava. Do lado da cama, havia o suporte para as bolsas de soro e um abajur aceso que ajudava a iluminar o quarto.  

 

Acorde, bebê, eu quero ouvir sua voz…

 

Sam estava coberto por uma manta, com apenas seus braços enfaixados de fora. Com certeza, esses foram os dois dias mais angustiantes da minha vida… Nesses dois últimos dias, Samuel entrava e saia de consciência apenas para soltar breves resmungos antes de dormir novamente. 

 

Meu pai o banhou e limpou suas feridas. Nesse meio tempo, ter que tomar banho com uma cadeira por ser incapaz de me manter em pé é humilhante. Apesar do meu corpo estar muito fraco, isso realmente pouco me incomoda, mas tem um limite que recuso a me rebaixar. 

 

Suspirei para o teto pensando nos últimos dias. Marcelo está fora desde o incêndio, parece que está fazendo mais coisas além de realocar o corpo do Vincent… talvez esteja preparando as coisas para a mudança com meu pai. Sempre quis me mudar daqui, mas nunca pensei que aconteceria nessas condições. 

 

Lembranças antigas retornaram com esses pensamentos. Uma eu mais nova, junto a Vincent, correndo entre os becos de um subúrbio em Cedro no anoitecer. Aquela lembrança tinha um sentimento que aquecia meu peito como uma fogueira, uma das poucas memórias verdadeiramente felizes da minha adolescência.

 

O motivo da nossa corrida pela cidade era muito importante… para nós. A Dama da Lua, uma entidade celeste pacífica que começou a ser seguida por algumas pessoas, poucas na verdade, ela era conhecida por sua bondade acima de tudo. Minha mãe era uma fiel e eu segui esse caminho antes de entrar para a ordem e até durante. 

 

Eu fiquei feliz em seguir essa entidade e me sentir mais próxima da minha mãe. Apenas "saí" para entrar na ordem, pois isso me dava vantagem sobre meu avô. Havia outras formas… mas jovens nunca são capazes de parar e pensar por alguns minutos antes de tomar uma escolha que possa afetar o resto de suas vidas. 

 

Olhei ao meu redor no quarto em busca de uma distração. A cama em que eu deveria dormir estava do outro lado do quarto, uma janela entre as duas camas com as cortinas abertas dava visão para o céu escurecido do meio dia chuvoso. Ao lado da porta havia um armário com equipamentos médicos e outras coisas.

 

Nada muito interessante. 

 

Fechei meus olhos para focar naquela lembrança. Eu e Vincent corremos muito até chegarmos no bosque afastado da cidade, lá encontramos outros quatro seguidores da Lua que nos receberam como se fossemos partes das suas famílias. Esperamos o anoitecer e, no meio de uma clareira, oramos para a lua cheia. 

 

Isso poderia ser feito em qualquer… poderia. Por culpa de fanáticos e entidades maliciosas, as pessoas criaram o preconceito que afeta todas as demais entidades que só querem nos ensinar algo ou até mesmo ajudar. Lembro-me de ouvir a voz da minha mãe nessa noite, um momento tão breve e ao mesmo tempo tão bom. 

 

Não sei o que esperar em Alturas. O atual orientador dos seguidores da lua nos aceitou em suas terras, isso tira um pouco da minha preocupação porque nenhuma entidade menor vai tentar invadir um local sob os cuidados de uma outra entidade. Isso deveria me tranquilizar totalmente, mas sempre vão existir os riscos. 

 

Espero que essa mudança possa ajudar Sammy também. Ainda estou pensando em uma forma de suavizar tudo isso e sei que também vou me machucar, mas o foco é explicar tudo o que aconteceu de uma forma suportável para ele. Mudança, cicatrizes, machucados e… perdas, preciso ser gentil ao dizer ou vou apenas feri-lo mais. 

 

Estou com medo desse momento.

 

Meditei um pouco no meu fluxo para distrair minha mente. Minha própria energia escorria como um pequeno riacho entre montanhas, as rotas pareciam cada vez mais maleáveis enquanto ainda ocorriam mudanças sísmicas. A guerra interna ainda acontecia, mas estava se tornando algo diferente. 

 

A guerra estava cada vez mais se transformando em uma conversa. A força anciã estava mais coerente e menos nociva e o pôr do sol continuava a interagir com ela, acalmando seus ataques em uma espécie de diálogo. Meu próprio fluxo estava ficando diferente e isso ficava cada vez mais se evidente. 

 

O fluxo funciona como uma base segura para nós. Ele nos ajuda a suportar por mais tempo a descarga de energia Fie em nossos corpos e nos ajuda em outras situações mais mundanas, como disse, uma base segura para controlar e observar. Sendo o alicerce das obras da irrealidade ou qualquer conexão com o astral, ele é o que torna possível erguer uma obra sem fritar nossos cérebros.

 

Meu fluxo parece estar sendo montado e desmontado. Meu senso astral está ficando tão intenso que posso até mesmo imaginar como alguém é apenas por ler sua aura. Confesso que estou perdendo o sono por causa disso, é como se eu estivesse sempre observando tudo mesmo dormindo. 

 

Essas mudanças estão ficando mais claras. Meu corpo está se adaptando lentamente a essas mudanças, talvez fique mais natural adiante. O que me preocupa é que as mesmas coisas aconteçam com Sam nessa mesma intensidade. Mesmo que ele seja um anômalo, um numen como eu, seu corpo ainda é muito pequeno e frágil. 

 

Será que dá para remediar ou atrasar essas mudanças… hm.

 

— Mamãe? — Meu coração pulou uma batida e minha mente ficou em branco por um instante após ouvir sua voz. 

 

Minha cabeça se virou antes mesmo que eu quisesse fazê-la. O olho esquerdo não coberto do Sammy estava marejado, o brilho verde amplificado pelas lágrimas retidas. Ignorei os alertas de protesto do meu corpo, me levantei  e cambaleei ao redor da cama para ficar ao seu lado.

 

— Oi, meu neném, você está com dor? Tá com fome? — Ajoelhei-me ao lado da cama, ele moveu sua mão para mim e a peguei com carinho. 

 

— O que houve... Cadê o papai? 

 

Meu peito afundou. As palavras ficaram presas na minha garganta e apenas consegui abrir a boca antes de fechá-la de novo. Devo falar isso agora? Ele acabou de acordar… se eu atrasar isso... que merda. 

 

— O papai… o papai teve que… — Recuperei o fôlego trêmula. — O papai… está descansando para sempre… ele…

 

— O papai… morreu? — O rosto do Sammy se distorceu em choro.

 

Minha falta de resposta fez com que suas lágrimas caíssem. Seus braços vieram em minha direção em um abraço, enquanto seu rosto vinha para se afundar no meu peito. Lágrimas escaparam enquanto me sentava na cama, o coloquei sobre meu colo enquanto acariciava suas costas e cabelo. 

 

— A mamãe sente muito… desculpa, meu bebê, desculpa. 

 

Seu abraço ficava cada vez mais forte. Seu choro era constante, minha camisa havia ficado molhada com suas lágrimas. Uma coisa me veio à mente, a canção que sempre cantarolava para ele talvez o confortasse. Comecei, assobiando as partituras enquanto tentava me manter firme e evitava tremer.

 

Minutos se passaram e apenas o confortei enquanto o acariciava. Após mais alguns minutos, seu choro começou a diminuir, seu aperto ainda continuava forte em seu abraço e seus soluços ficaram menos frequentes. Seu rosto se afastou do meu peito, enxuguei o excesso de lágrimas com minha manga. 

 

— Vai ficar tudo bem… A mamãe promete, o papai sempre vai estar com a gente. 

 

— Mas… Por quê? — falou entre soluços. 

 

— Eu… não sei, bebê…

 

Consegui fazer com que Sam se deitasse em meu colo. Seu choro ia e vinha com tempo antes que ele dormisse nas minhas pernas, ainda com lágrimas descendo por seus olhos. Acariciei-o em sua barriga enquanto enxugava seu rosto, em meio a isso fui incapaz de conter minhas próprias lágrimas. 

 

Por que…

 

Era para ser algo tão simples. Eu os levei até minha casa? Isso… foi culpa minha? O pôr do sol se remexeu dentro de mim como resposta, com isso lembrei das falas do cara esquisito no centro de tratamento… Bartolomeu! Eles queriam apenas a árvore e eu era um meio até ela. 

 

Então… eu teria falhado de qualquer maneira.

 

A angústia de saber que muito provavelmente aconteceria o mesmo cenário era doloroso. Eu deveria ter continuado como uma seguidora da lua, teria sido melhor para mim, Vincent e Samuel… que merda. As lágrimas caíram com mais frequência enquanto tentava ser forte. 

 

Tenho que ser diferente… agora.

 

Cantarolei na cama enquanto o acariciava até a noite cair. O tempo parecia apenas uma linha, os pensamentos de como ou por que se tornaram obsoletos em minha mente. Eu poderia ter dado tempo a ambos, poderia ter aumentado suas chances ao custo da minha… poderia ter sido melhor. 

 

Uma última lágrima escapou. Ela desceu por meu rosto até cair no rosto do Samuel, passei meu dedo em sua bochecha para enxugá-la. Eu falhei com você… pela última vez. Com cuidado, consegui colocar Sammy no travesseiro e me sentei ao seu lado para cobri-lo novamente com a manta. 

 

A luz do abajur alcançava a metade do quarto. No silêncio, passos começaram a se aproximar da porta. Esperava que fosse meu pai, mas para minha surpresa, foi Marcelo que abriu a porta. Seu olhar cansado encontrou o meu e ele andou até mim para se sentar no pé da cama.  

 

Suas roupas estavam mais escuras pela umidade. Até seu semblante transparecia melancolia com seus olhos fixos no chão antes de olhar para Samuel com um brilho de esperança. O silêncio perdurou por mais alguns  minutos enquanto ele observava Sammy. 

 

— Ele… como ele está? 

 

— Se recuperando… como você está? — Voltei meu olhar para Samuel.

 

— Você já… contou para ele? — Ele começou a entrelaçar os dedos olhando para o nada. 

 

— Sim… como você está? — Voltei meu olhar para ele.

 

Seus olhos vagaram pela sala antes de encontrar os meus. O brilho azul estava escurecido, bolsas escuras estavam se formando abaixo deles e seu cansaço estava gravado em suas feições. Ele parecia pronto para desmoronar, mas consegui ver sua curiosidade por trás de tudo isso.

 

— O que era aquela árvore? — perguntou ele parecendo culpado. 

 

— Ele me mostrou um dia antes de tudo, sei tão pouco quanto você, apenas sei que Samuel está vivo por causa dela.

 

—  Você… aquela coisa estava atrás de vocês por causa dela?

 

Minha mente bambeou com sua pergunta. Poucos conseguiriam fazer essa ligação de forma tão rápida, mesmo que seja válido, afinal, por que uma entidade nos atacaria sem um motivo? Tentei planejar as palavras em minha mente, mas desisti de tentar criar uma conversa elaborada e apenas decidir falar. 

 

— Sim, uma parte de mim ainda acha que a investigação tem algo a ver com isso, mas em resumo, eles queriam a árvore. 

 

Seu silêncio durou alguns minutos. Ele fez perguntas que variavam entre o que eu sabia e o que aconteceu. Tentei explicar da melhor forma possível como eu entendi a minha conexão com a árvore e como eu fui capaz de criar uma. Ele parecia absorver tudo enquanto eu contava, mas depois disso o silêncio prevaleceu. 

 

Seu olhar vagava, indo de um canto para outro no quarto. Uma lágrima desceu seu rosto, mas ele a deteve no meio da descida. A curiosidade de saber mais sobre o que houve nesses dois dias cresceu em mim, mas esperei até que ele falasse primeiro ou uma abertura se abrisse. 

 

— Ele estava com medo de contar para mim, fale a verdade, por favor… — Sua voz fraquejou. 

 

— Ele só… queria evitar que você se irritasse, ele queria te contar, só não sabia como. 

 

Ele fungou passando a mão no rosto. Sua expressão abatida se aprofundou ainda mais e ele começou a puxar o próprio cabelo. Deslizei com cuidado pela beirada da cama até ele, seu corpo estava tremendo tanto que estava balançando um pouco a cama. Acariciei suas costas, enquanto outras lágrimas desciam seu rosto. 

 

— Ele… eu… teria entendido… eu teria… 

 

Fiquei em silêncio enquanto seu choro se aprofundava. Seu corpo murchou enquanto tremia, sua tristeza vazava da sua aura, criando um fluxo infeliz ao seu redor. Queria dizer palavras para confortá-lo, mas simplesmente não havia nada que pudesse dizer para fazer isso. 

 

O tempo passou apenas com o som dos seus soluços suprimidos. Após seu choro se acalmar, ele apenas olhava para baixo com lágrimas ainda descendo seu rosto. Ele ergueu a cabeça, olhou para mim e depois para Samuel, seu olhar estava tão perdido, mas aos poucos começou a se orientar.

 

— Vamos embora depois de amanhã, eu… posso cuidar do funeral, se quiser. — falou após um tempo.

 

— Tudo bem, preciso estar com Samuel e… sou incapaz disso no momento. 

 

Ele assentiu e se levantou. No meio do seu caminho até a porta, ele parou sua caminhada. Ele coçou a nuca e sua expressão estava incerta ao olhar para mim. Uma dúvida quase palpável se apossou das suas feições, o suspense durou até que ele falasse.

 

— Aquela árvore… você tem certeza de que podemos confiar nela? 

 

Sua pergunta foi mais que uma simples questão. Quando aceitei que o pôr do sol pudesse habitar meu corpo, permiti que uma entidade tivesse acesso à minha vida, Sammy e a de Vincent. Foi assim quando eu era uma seguidora da lua, sempre será assim quando se trata de entidades grandes ou pequenas. 

 

A questão é se vale a pena. Abri minha vida para uma força consciente e poderosa que pode mudar minha vida para melhor ou para pior se eu desejar e até mesmo preciso ter consciência de que às vezes as coisas iriam sair do controle. Eu fiz isso no passado em busca de orientação e consegui, só falhei com uma escolha própria. 

 

Estou decidida a sair da ordem, percebo que tenho o necessário, mas vive entre cadáveres não é o que eu quero. Poderei me dedicar mais a Samuel e a um passado que deixei para trás, poderei estudar mais essa conexão com essa entidade também. O fato é que me sinto segura quando sei que nunca estarei sozinha e nem quem eu amo, que a uma força boa olhando por nós. 

 

— Sim… eu tenho certeza. 

 

Ele assentiu com a cabeça e saiu pela porta. O silêncio prevaleceu novamente e nele eu meditei alguns minutos antes de me deitar ao lado do Samuel. O abracei e o trouxe para mais perto de mim, o som de sua respiração me trazia paz enquanto esperava pelo meu próprio sono.

 

A mesma fagulha estranha em Samuel começou a ressoar comigo. Sempre que estava perto dele, ela fazia isso, antes ela apenas ressoava com a força anciã, mas dessa vez era comigo. Ondas de calor começaram a se espalhar pelo meu corpo a partir do meu coração, relaxando meus músculos e minha mente. 

 

Eu tentei descobrir mais sobre isso. Tentei alguma espécie de contato com Meyrina, mas tudo que tive foram respostas vagas através do pôr do sol. Essa fagulha dentro de Sammy parece ser o que anula os efeitos nocivos da força anciã em seu corpo. 

 

Posso dizer que meu método é muito mais complicado. Enquanto minha energia estava guerreando para depois chegar a uma conversa com a força anciã, Sammy parecia estar se integrando com ela desde o início. As palavras da Meyrina me vieram à mente, que ela havia feito algo que ela nunca tentou.

 

E quase deixou escapar algo a mais… 

 

A visão e a dúvida sobre ela apenas crescem em minha mente. Ela se parece muito mais com uma humana do que uma entidade normalmente pareceria, mas seus poderes são tão fora da curva que é difícil cogitar isso. Sem falar no meio inusitado que eu a conheci, mas mesmo assim ainda vejo algo muito semelhante aos humanos nela. 

 

Talvez eu esteja apenas buscando algo no que pensar. Fechei meus olhos enquanto o calor da fagulha ainda percorria meu corpo, aliviando a dores e o cansaço. É estranho pensar que estou mais leve após dizer a verdade para Samuel, para mim essa foi a pior parte desses últimos dois dias.

 

Deixei o sono se acomodar em meus pensamentos. Amanhã vai ser um dia difícil, prepará-lo para a mudança e para se despedir do seu pai… Vou precisar de tudo de mim para confortá-lo sem chorar junto, mas posso fazer isso, preciso fazer isso. 

 

Afastei os pensamentos enquanto permitia minha consciência se recuperar. Pouco a pouco, a anestesia do sono se espalhou por mim, me preparando para a terra do sonhar. Espero que um sonho bom, não seja pedir demais. Minha consciência se aprofundou em pensamentos mal formados, deixando minha mente em silêncio. 

 

Um pouco de paz, antes da próxima luta…



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