Volume 1

Capítulo 14: Antes da tempestade II

[Quinta-Feira, 16 de fevereiro de 2404, 10:32 da manhã]

Marcelo Dias

 

Minhas pálpebras estavam pesadas. O sofá macio e as roupas limpas e secas pareciam indiferentes enquanto refletia olhando para o teto. A sala era silenciosa, com apenas os sons da chuva caindo no telhado ecoando pela casa. Minha mente estava em um estado semelhante, vazia e com estática. 

 

Vince… 

 

O pensamento me fez levantar para sentar no sofá. O chão frio provocou um arrepio que percorreu meu corpo a partir da sola do pé, isso acordou minha mente para a realidade. Olhando ao redor, sons de passos viam do quarto ao lado, o que provavelmente era Goro empacotando suas coisas. 

 

Fiz um esforço para vestir meus sapatos e um casaco. Por que ele? Aquela coisa queria aquela árvore, então para que fazer algo assim? Esses tipos de pensamentos me corroíam nos últimos três dias, minha mente trabalhava com constância para entender a situação, mas tudo só fez sentido ontem.

 

Eu tive pressentimento de que aquela árvore tinha algo a ver com isso no momento em que a vi. Nesses últimos dias, além de realocar o corpo de Vince para o funeral em Alturas, tentei buscar rastros que me levassem até o invasor. Foi infrutífero, para dizer o mínimo, além de muitos quarteirões de casas queimadas, tudo ligado a ele sumiu. 

 

Confesso que isso estava distraindo minha mente a respeito dos eventos. Goro me encontrou ontem andando pelas ruas da cidade, praticamente me obrigou a entrar no carro dele e me trouxe para cá. Minha cobertura de apatia para não chorar foi ao chão ontem também, ver Samuel naquele estado, junto ao que Glória teve que contar a ele…

 

Chorar a noite toda fez bem para minha mente… eu acho. Estou buscando um meio para suavizar o luto, mas está difícil já que iremos para Alturas hoje. Talvez essa mudança me ajude, mas ainda á uma coisa que eu devo fazer aqui, uma última coisa antes de virar as costas para essa cidade e aos mensageiros.

 

A sensação de entorpecimento já havia passado, me deixando vulnerável. Depois do funeral do Vincent… ainda estou confuso sobre o que fazer depois que passar por isso. Irei sair da ordem junto a Glória, talvez haja uma tentativa de impedimento, mas duvido muito que isso impeça o resultado final e depois disso ainda está tudo um breu para mim. 

 

Preciso de um tempo…  

 

Levantei-me do sofá para ir ao quarto. A porta entreaberta deixava o som de uma conversa escapar, a voz de Glória quase como um sussurro enquanto falava com seu pai sobre Samuel. Parei por um momento em frente a porta, esperando que essa conversa acabasse para eu poder entrar. 

 

O silêncio reinou e então dei toques na porta. Ela se abriu para revelar Goro, seu cabelo indo abaixo das orelhas tinha alguns fios grisalhos, sua barba bem trabalhada dava a ele uma aparência feroz até calmo. Seus olhos distintos carregavam duas impressões diferentes e condizentes ao mesmo tempo, o caramelo do direito era astuto e o negro do esquerdo era sereno, ambos fizeram contato com os meus antes de se virar para Glória, ele andou até duas caixas empilhadas na frente dela. 

 

Glória se virou em minha direção. Sua pele estava um pouco mais pálida que o normal e seus cabelos negros desciam até seu colo, onde Samuel estava dormindo. Glória tinha os dois olhos caramelo como o olho direito de seu pai e com a mesma característica estranha, com uma espécie de aro dourado ao redor das pupilas, mas a cor caramelo a disfarçava um pouco, uma coisa estranha que notei também é que ele ficou mais evidente a três dias.

 

— Como você está? — perguntou ela enquanto eu pensava. 

 

— Estou… melhor, na medida do possível, e vocês? 

 

Ela olhou para Samuel em seu colo. Glória acariciava a bochecha dele com delicadeza e seu olhar tinha algumas emoções, mas a principal era seu carinho. Goro se levantou após fechar as duas caixas cheias de potes de vidro. Ele ficou de frente à Glória com preocupação em sua expressão, mas seu afeto também estava evidente. 

 

— Samuel está melhorando aos poucos, nós vamos primeiro com Helen, meu pai disse que vocês têm coisas a tratar aqui. 

 

Helen?

 

— Essa mulher não é quem está morando com Leonardo? Por que ela… ou eles?

 

Glória ignorou minha pergunta e acenou para eu me aproximar. Após chegar perto, ela passou as mãos por baixo de Samuel, eu entendi o que ela queria e o fiz. Com cuidado, peguei Sam do seu colo e depois Goro a ajudou a se levantar. Ela colocou seu sobretudo com ajuda de Goro, a roupa deixava seus ombros de fora, mas o moletom que ela estava usando os cobria. 

 

A costura dourada contrastava com o negro do tecido. Ela tirou do bolso seu broche dourado em formato retangular que ela sempre usava na sua gravata de plastrão. Goro a guiou para fora do quarto e eu o segui. Ela constantemente olhava para trás para ver Samuel em meus braços.

 

Ele parou em uma poltrona perto da porta de saída na sala. Glória se sentou e pediu por Samuel, eu o entreguei e ela o envolveu em seus braços como um bebê. A visão fez um aperto surgir em meu peito. Pela expressão em seu rosto, posso dizer a dor que ela está sentindo e guardando para si mesma.

 

Os braços do Samuel estavam enfaixados até os ombros. Uma bandagem cobria seu olho direito e uma parte da bochecha no mesmo lado enquanto dava a volta em sua cabeça. Mesmo com a movimentação, ele apenas soltava breves resmungos. Ao olhar para Sammy, algo além da culpa e tristeza se manifestava no meu peito, é como se ele estivesse diferente… isso é ridículo de se pensar depois de tudo que aconteceu.

 

O que posso fazer para aliviar sua dor, Pequeno? 

 

— Helen, faz parte… — Goro me tirou dos meus pensamentos, mas ele parou por alguns instantes antes de continuar. — Ela faz parte da ordem que sirvo, ela tem uma obra que poderá ajudar na recuperação de Sammy.

 

Ordem que você serve… 

 

— E quanto ao Leonardo? — Deixei minha curiosidade vazar.

 

— Leonardo vai ficar sabendo disso muito em breve, ele tem informações de quem deu aquele registro com o intuito de atrair vocês… Em Alturas, teremos tempo e segurança para discutir o resto — Ele olhava para frente da casa através da janela com ansiedade.

 

Antes do colapso da antiga modernidade, existiam muitas organizações. As maiores ficaram, enquanto outras só deixaram de existir. Entre todas, as mais importantes no Brasil são: os mensageiro e os Magistrados. Os mensageiros são agentes de campo, os magistrados são quem devem cuidar para que nada caia para as massas e a parte diplomática da coisa, são duas organizações distintas que apenas corroboram por um mesmo ganho final.

 

No geral, os magistrados são compostos por famílias nobres do paranormal. Essas famílias se intitulam assim com orgulho de serem "especiais entre os especiais". O que os difere são suas conexões políticas e, claramente, o dinheiro. Quem tem contato com o paranormal tenta se tornar tornam magistrados ou supervisores pelo status e proteção, mas os mensageiros são mais inteisicos em sua composição. 

 

Na ordem dos mensageiros somos ensinados a cuidar de aberrações de qualquer origem, humano ou um criatura da obscuro. Existem um equilíbrio de existência entre a ordem e os magistrados, mas fato é que se os magistrados deixarem de existir, pouca coisa iria mudar, a meios melhores de cuidar da política sem contar com famílias ricas arrogantes. Tudo isso vai mudar, o Abutre se cansou da existência dos magistrados, agora... são tempos de mudança.

 

Pelo que sei, Goro, serve a um círculo alto nos mensageiros. Essa pergunta interna sempre me fez refletir muitas vezes e já cheguei a perguntar diretamente a ele, mas nunca recebi uma resposta conclusiva além de histórias de um velho e experiente caçador. O som de uma buzina roubou minha atenção, Goro deu um fraco sorriso aliviado enquanto ajudava Glória a se levantar.

 

Peguei Samuel nos braços novamente e o cobri com meu corpo para evitar a chuva. Goro guiou Glória pela chuva até a caminhonete quatro portas preta que nos esperava. Ele abriu a porta de trás para Glória e abriu passagem para eu entregar Samuel a ela. Antes que eu pudesse sair para que Goro pudesse fechar a porta, Glória segurou minha manga.

 

Seu olhar estava hesitante enquanto me encarava. Uma mulher morena com cabelos cacheados surgiu por detrás da Glória, ela checou o pulso do Samuel colocando seus dedos no pescoço do Pequeno enquanto conversava com outra pessoa no banco da frente. O olhar afiado da mulher caiu sobre mim com uma impaciência palpável, olhei aflito para Glória, que finalmente abriu a boca.

 

— Tenha a mente aberta… ela quer nos ajudar. 

 

Suas palavras me pegaram de surpresa e apenas acenei com a cabeça. Goro fechou a porta e, com isso, a caminhonete deu a volta na frente da casa antes de seguir seu curso na estrada de britas. A mata ao nosso redor já estava escurecendo e o som das gotas de água caindo sobre as folhas criava uma atmosfera calma. 

 

Com a tarde caindo, eu observava o céu. De todas as palavras de Glória ontem, a que Vincent tinha medo de me contar, ficou gravada em minha mente. Eu reagiria mal no começo, mas tentaria entender ele... eu juro que tentaria... porra eu juro. A mão de Goro pesou no meu ombro, seu olhar tinha empatia, mas enxerguei sua ansiedade. 

 

— Quer mesmo fazer isso? — Sua voz carregava carinho, mas seu alerta também ficou claro. 

 

Olhei para ele sem dizer nada por instantes. Lembro-me da presença que vi naquela árvore, do convite e suas palavras para mim. Vincent acreditou nela, expôs sua família para isso porque acreditava nela… Preciso tentar, preciso aceitar isso como um caminho para mais perto dele e de sua memória para mim.

 

— Me leva até ela. 

 

— Vamos esvaziar a casa e desaparecer, me ajude e partiremos sem olhar para trás. — Ele disse assentindo e se virou para casa. 

 

Eu o segui para sair da chuva. O desejo latente de fazer perguntas sobre essa árvore e sua posição misteriosa crescia a cada passo, mas me retive. O pensamento de que algo pode dar errado também cresceu em mim enquanto entrava em casa. Eu tenho meus motivos para desgostar das entidades e Vincent sabia disso. 

 

Agora está longe de sem o momento para pensar nisso.

 

Deixei os pensamentos de lado para ajudar Goro com as coisas. Ele pegou as duas caixas do quarto e me guiou até a cozinha, onde havia mais quatro caixas, uma a uma, nós as colocamos no porta malas do seu esportivo antigo. Após colocar todas as caixas, ele me mandou esperar na garagem enquanto fazia algo.

 

Olhei de relance enquanto ele andava pela casa com seu colar na mão. Podia escutar seus sussurros, puxei meu fluxo para ver melhor o que estava acontecendo. No fluxo, captei os vestígios de energia que normalmente deixamos para trás sendo sugados para o seu colar, ele passou boa parte do tempo no quarto onde Glória estava, era onde grande parte da energia vestigial estava. 

 

Interessante…

 

Após terminar de andar a casa toda sussurrando, ele veio para a garagem. Observei pelo meu fluxo era sua presença, era calmo e discreto, mas ao mesmo tempo parecia um floco de luz dourada quente em seu peito. Guardei minha admiração para mim enquanto ele colocava o colar no bolso e entrou no carro. Quando ele saiu, tranquei a garagem e entrei no carro.

 

O interior do seu carro era muito confortável. As únicas coisas com tecnologia de ponta são o sistema de segurança e algumas coisas para melhorar o conforto. Ele começou nossa viagem rumo a estrada de britas, o céu já estava escuro quando partimos e a chuva se reduziu a uma garoa. 

 

Mergulhei no banco e fechei os olhos, me preparando mentalmente para o que ia acontecer. Entidades… um dos maiores graus de poder que conhecemos, formas de vida que beiram a uma divindade propriamente dita, ou melhor dizendo, dentro das muitas hierarquias e estudos, algumas são chamadas de "Deuses Exteriores". Toda semente do rancor é plantada em uma estação da vida, a minha foi plantada ainda na adolescência.

 

Meus pais eram seguidores da  Dama da Lua. Ela e meu pai se dedicaram a ela até o final de suas vidas, que aconteceu rápido demais para mim e Vince. A doença derivada de radiação chamada de Flagelo os infectou, eu acreditei firmemente que a Dama os curaria, mas vi eles morrendo sem poder fazer nada para ajudar. O mais estranho é que essa doença os atingiu de uma forma diferente... pensando agora, talvez eu fosse muito cego na época para ver isso.

 

Chegamos no asfalto no começo da noite. A estrada de duas faixas era cercada pela mata verde, a cada centenas de metros avançados no asfalto tinha uma estrada baldia que levava a sítios ou reservas dentro da mata. Lembrar do passado fez minha expressão ficar amarga, mas Goro parecia preocupado com outra coisa em seu celular.

 

Glória…

 

Eu lembro quando a vi pela primeira vez com Vincent. Mesmo depois da morte de nossos pais, ele continuava a ir aos encontros noturnos da lua cheia, eu já era maior de idade e cuidava de nós dois na época, o salário que a ordem pagava pelos casos simples de exorcismo era muito bom. Uma parte de mim estava irritada por ele ainda ser um seguidor da lua, Lunari ou Lunita, como se autodenominam e seu apelido. 

 

Depois de um tempo, esse rancor foi diminuindo à medida que aprendia mais sobre o oculto. Também percebi que ele ia a todos os encontros apenas para passar tempo com Glória, ele era um garoto dedicado em todos os sentidos, era óbvio que os dois se gostavam e isso ficava mais óbvio a cada dia. Minha expressão se suavizou e senti um sorriso se formando no meu rosto.

 

Amor jovial em sua pura essência… é difícil de lidar. 

 

Após um tempo, parei de me incomodar com suas escapadas. O tempo passou, Glória e ele se tornaram um casal e eu e ela éramos desconfiados um com o outro, acho que nos teleravamos. Muita coisa aconteceu nessa parte da minha vida, foi aí que as coisas mudaram, Glória se renegou contra sua família materna e eu, junto a Vincent, conhecemos seu pai e seu pai mudou nossas vidas para melhor. 

 

Olhei para Goro enquanto ele dirigia antes de voltar a pensar. Seu olhar focado na estrada às vezes se desviava para olhar o celular. Quando o vi pela primeira vez há anos atrás, ele parecia pronto para destruir a família materna da Glória, algo que ainda transparece as vezes. Os motivos ficaram escurecidos para mim, mas depois que as coisas se acalmaram, ele mostrou seu lado social e gentil. 

 

Nesse meio tempo, apenas desenvolvi indiferença contra as entidades. Na minha visão de perda, a Dama desrespeitou a devoção dos meus pais para com ela, mas agora, vejo que errei ao ver de forma tão simples. O lado lógico que hoje compreendo é mais amargo, as Entidades podem sim prolongar nossas vidas através do elo, mas a Dama não pregava isso. 

 

Passamos por um posto familiar na rodovia. Minha barriga estava gelada e minha perna, ficando inquieta pela ansiedade crescendo em mim. Suspirei enquanto focava no fluxo, joguei minha ansiedade na corrente de energia que ligava meu corpo ao astral. Fechei meus olhos e formei pensamentos e perguntas, mas outras memórias retornaram.

 

Os lunitas seguem os ensinamentos da Dama da Lua. Talvez eu fosse pouco dedicado para aprender cada um deles como meu irmão e Glória foram, mas eu sabia o essencial. Um dos tabus era o ensinamento da aceitação do fim e que nele havia o ensinamento de que, no final, a morte é quem dá o julgamento e garante o descanso nos braços da Dama para seus fiéis. Meus pais nunca sofreram o pior que o fragelo tinha a oferecer... o fato é que me enganei.

 

Infelizmente, entendo porque ela nunca teria interferido no destino dos meus pais. É difícil aceitar a ideia de que provavelmente meus pais estavam ansiosos pelo descanso após sofrer com a doença, mas sei que a promessa da Dama foi cumprida, de alguma forma a certeza cresceu nesses últimos dias. Eu ainda gostaria que houvesse outro final, mas se eles estão em paz, eu só tenho que aceitar. 

 

O carro começou a balançar um pouco. Abri meus olhos para ver que o farol era a única fonte de luz na estrada baldia, a mata ao redor estava um breu profundo, com apenas a silhueta das árvores aparecendo brevemente. Ajeitei-me no assento, Goro estava com um olhar aliviado enquanto colocava o celular no painel.

 

— Boas notícias? — Espero que sim.

 

— Samuel está melhorando, Glória está melhor também e eles já percorreram grande parte do trajeto para Alturas. Quando sairmos daqui, chegaremos lá pelo meio dia ou de manhã no amanhã. — Sua voz tinha um tom sugestivo.

 

Quando sairmos, então, quando eu terminar.

 

A mesma curiosidade que havia em mim na casa surgiu de novo. A criatura que matou… As balas do Goro pareciam atrapalhar seu fluxo para ele ser incapaz de invocar aquele fogo. O desejo se tornou grande, a coceira metal de que ele sabe muito mais do que aparenta estava se tornando insuportável.

 

Eu mereço respostas.

 

— O que você sabe daquela criatura? ela disse que era um desprazer te reencontrar, o que ele é? Quem ele era?

 

Ele suspirou antes de começar. 

 

— Uma entidade menor, mais especificamente um espírito humano que se fortaleceu através de um elo, eu estava perseguindo ele há algum tempo e jurava que ele estava morto… — Sua feição ficou azeda. — Sua obra talvez vá mantê-lo longe por algum tempo, mas ainda a outros para se preocupar. 

 

Comecei a processar a informação. Entidades menores são complicadas, desde almas que se recusam a morrer até as que têm medo do que vem depois e existem muitas outras variáveis. Entre a Margem do Paraíso e a realidade, existe a divisão que chamamos de Penumbra, ela conecta ambos os lados enquanto os divide também. 

 

Almas que se recusam a seguir o caminho ficam presas na penumbra. Entidades menores normalmente nascem de almas que consomem outras almas, amplificando seus poderes e permitindo que eles consigam escapar da passagem entre vida e morte, ou ao menos é o que se acredita. Uma alma que está em um elo com um celeste? Seus poderes vêm de uma entidade ou da sua moradia na Penumbra?

 

Fiz estudos sobre a penumbra no passado. Uma realidade que se sobrepõe à nossa enquanto dá passagem para a margem, mas somos incapazes de vê-la. Nem mesmo os anômalos ou entidades podem interagir com ela de maneira natural, pelo que é conhecido atualmente. Existem rituais ou meios diversos, mas sempre deve haver uma espécie de interlocutor entre o real e o umbral. 

 

Goro parou o carro na clareira em frente ao galpão. Meu carro estava encostado no mesmo canto que havíamos deixado. Após alguns segundos, uma luz alaranjada surgiu da arandela em uma árvore próxima. Goro desligou seu carro e deixou as mãos caírem nas coxas. Ele olhou para mim com uma espécie de expectativa. 

 

— Você vai me dizer o que ela é? A árvore e a entidade dentro dela? 

 

— Não cabe a mim te responder isso. — Ele sorriu com ternura. 

 

Goro saiu do carro, me deixando sozinho. A ansiedade retornou enquanto eu saia também, o ar gelado me agracia junto a garoa serena que caia. Goro estava de frente à porta do galpão me esperando, indo até ele, parei momentaneamente ao lado do meu carro. Seu teto e capô estavam cobertos de folhas e galhos caídos dos pinheiros.

 

Foi bom enquanto durou, mas você nunca fez meu tipo. 

 

Abri o carro e deixei a chave dele em cima do banco. Virei as costas para meu carro após fechá-lo e fui em direção a Goro. Ele tentou esconder sua ansiedade, mas a percebi através dos tiques nos seus dedos. Nos entreolhamos por um momento antes dele abrir as portas do galpão, a ansiedade foi subjugada pela curiosidade quando entrei. 

 

A árvore ganhava vida novamente enquanto entrávamos. A cor azul do tronco, como vidro intricado, corria para alcançar seus galhos, as folhas eram vitrais trabalhados em dourado. A atmosfera ficou quente e partículas brilhantes e negras começaram a flutuar no ar, elas rodavam ao redor da árvore em uma dança luminosa. 

 

— O que eu faço agora? 

 

— Esperamos. — Goro colocou as mãos nos bolsos casaco. 

 

Minutos se passaram no silêncio antes que algo mudasse. Minhas pálpebras ficaram pesadas enquanto bocejos queriam sair, uma presença quente atraiu minha consciência para seu abraço e eu a segui. Por um momento, houve apenas o silêncio completo dos meus sentidos, no outro, eu estava no galpão… só que diferente. 

 

Uma sombra líquida estava na altura dos meus joelhos. A árvore brilhava mais intensamente e mais partículas surgiram e enchiam essa versão do galpão. O galpão parecia um céu cheio de estrelas, a sombra líquida começou a se movimentar, esculpindo junto à luz e partículas uma forma humanoide à minha frente.

 

Uma mulher foi esculpida após algum tempo. Seus cabelos negros desciam até se unir a sombra no chão como um só, os olhos de mesma cor tinha o mesmo aro dourado ao redor das pupilas que Glória e seu pai tinham. Só eu que noto isso? Seu rosto maduro transparecia seriedade e gentileza, junto a algo que percebi como… culpa?

 

Olá… estou feliz que escolheu vir, Marcelo. — Sua voz jovial soou em minha mente. 

 

— Eu… quero respostas e você as tem. 

 

Tentarei respondê-las da melhor maneira a meu alcance, mas a coisa que não poderei te dizer, ao menos agora.

 

Muitas palavras vieram à minha mente em uma cachoeira de dúvidas. Tentei articular perguntas que me dessem uma ideia do que ela é ou o que nos atacou, mas essas palavras se recusaram a sair. Minha mente esqueceu as teorias e táticas e apenas se focou no que tinha acontecido, como Samuel vai ficar e… se Vincent está em paz. 

 

— Vince… ele…

 

Descansando… 

 

A mão que constantemente apertava meu coração a três dias me soltou. Lágrimas desceram meu rosto, contive os soluços e me esforcei para manter a compostura. Após minutos para extravasar, a realidade de que ele tinha se ido para sempre finalmente se solidificou em minha mente. Eu o perdi. 

 

Um sentimento nascia do silêncio e melancolia da minha mente. O olhar daquela criatura, suas feições tranquilas enquanto ele destruía a vida da minha família… Minha mandíbula se apertou até meus dentes pulsarem de dor. Aquela coisa ainda estava viva… 

 

Controlei minha fúria para focar na realidade. Se eu aceitar o elo dessa entidade, o que mudaria? Eu quero matar aquela coisa, destruí-lo, mas o que vem depois? Ele não está sozinho. Preciso me fortalecer, se Vincent confiou em você para protegê-los, eu também posso. 

 

Antes disso…

 

— Samuel e Glória ficaram bem? 

 

O olhar da moça fraquejou por um momento. Vi incerteza e tristeza enquanto ela reconstruía sua feição. 

 

É mais complicado de explicar… 

 

— Tente. — Minha ansiedade vazou pela voz.

 

Ela respirou fundo.

 

Samuel foi exposto a uma força anciã, a energia de Deus Exterior que estava sendo manipulada sem seu consentimento, ela é conhecida como força da purificação. Samuel é uma criança e crianças são normalmente puras por sua inocência e isso ajudou de certa forma, mas o excesso de energia ia matá-lo. 

 

Um interruptor girou no meu cérebro. Quando encontrei Glória ajoelhada em frente à árvore, era para isso? Compartilhar o excesso para que a energia da força manipulada em excesso não matasse Sammy.

 

— Espera, se você dividiu esse excesso com Glória, ela vai ser mais atacada do que Samuel!

 

Seus olhos se arregalaram de surpresa. Talvez eu tenha entendido rápido demais, ela se recompôs antes de continuar. 

 

Eu estou defendendo o espírito de Glória contra os ataques através do elo, a força anciã está aos poucos se purificando e retornando para seu estado de lucidez, após isso, ambos poderão conviver com ela sem serem atacados. — Algo em sua expressão me dizia que havia mais. 

 

— Enquanto o Samuel? 

 

Ele… é um pouco mais complicado, a alma dele foi ferida, então tive que recorrer a um extremo. Uma força anciã é um poder senciente, um Deus Exterior que teve uma gota de seu poder roubado e manipulado, para preservar a alma de Sam, eu tive que acelerar o processo de purificação dessa gosta da Força anciã… com outra, ela perceberia que sua irmã está errada e a corrigiria. 

 

Minha boca ficou aberta enquanto eu absorvia tudo isso. Uma força anciã já é um extremo, duas?! Essas forças são poderes primordiais, Deuses Exteriores e pelo pouco que sei eles estão no ápice da hierarquia ocupando a escola cósmica. Uma força está sendo manipulada, uma gota, que seja! E outra força, uma outra entidade está aconselhando essa gota perdida? Tudo isso acontecendo dentro de uma criança de quatro anos?!

 

— Ele vai ficar bem, né? HÁ uma maneira de retirar ambas depois? Isso não vai afetar a vida e saúde dele… né?!

 

A moça se encolheu e abaixou a cabeça. Só pode ser sacanagem… isso é sacanagem?! Meu coração estava batendo mais rápido e minha respiração ficou irregular. Samuel… por que ele, caralho?! Após alguns minutos, consegui estabilizar minha respiração e me acalmar o suficiente para falar. 

 

— Se não dá pra tirar, como isso vai afetar ele e Glória?

 

Seu olhar se ergueu e vi sua tristeza. 

 

Uma força anciã normalmente é quem faz a conexão com seu portador, se aceitá-la, ficarão juntos para sempre ou ela o deixará se o receptáculo se corromper, isso normalmente não afeta a saúde do indivíduo. 

 

Mas…

 

Glória e Samuel tiveram seus corpos afetados, seus espíritos têm uma ligação direta com uma força anciã, eles fazem parte dela e ela faz parte deles, inseparáveis de qualquer forma. Os corpos humanos são frágeis e delicados e sempre ocorrem mudanças ao se mexer com o oculto, mesmo que involuntárias, você com certeza já sentiu esse efeito colateral de alguma forma... é o mesmo princípio, a força anciã fazendo parte deles vai causar mudanças, mas seus corpos são fracos demais para suportar tanto poder, pode reduzir suas vidas.

 

 Anômalos envelhecem mais devagar, essa redução vai afetá-los pouco, né? 

 

— Eu… não sei — respondeu após alguns segundos.

 

O silêncio que se seguiu foi aterrador. Minha mente girou em explicações ou formas de burlar as coisas, mas nada daria certo. Após minutos, minha mente ainda era incapaz de pensar em uma solução para isso, tudo parecia funcionar devagar agora. Dois deuses exteriores, almas machucadas, corpos frágeis, o que mais falta?

 

Reduzir seu tempo de vida… isso tem que ser apenas uma teoria. Samuel mau começou sua vida e isso já vai ser roubado dele? Aquela fúria brilhou de novo no meu peito, mais intensa do que antes. Eu preciso fazer algo, deve ter uma maneira de ajudá-los. Busquei em minha memória qualquer coisa, mas nada surgiu. 

 

Mãos quentes envolveram as minhas. A moça havia chegado perto enquanto eu refletia, suas mãos macias acolhiam a minha em um aperto gentil. Seus olhos tinham carinho, mas suas feições mostravam o que ela gostaria de me dizer. Os soluços vieram novamente, mas fui incapaz de contê-los. 

 

Eu… não quero perdê-los também. 

 

Eu sei. — Sua voz surgiu de novo em minha mente, gentil como uma mãe acolhendo seu filho. 

 

Eu chorei enquanto ela segurava minhas mãos. As lágrimas desciam pelo meu rosto, tentei contê-las, mas isso apenas doía mais. Um véu quente me acolheu, navegou pela minha carne até meu peito e eu aceitei que o calor entrasse. Mas algum tempo se passou até meu choro parar, meus olhos pesavam pelo cansaço e sono.

 

Eu soltei suas mãos. Eu podia ver o elo recém formado no meu peito, aquecendo e iluminando através da minha tristeza. A moça me olhou nos olhos mais uma vez, talvez seja bobo, mas só agora percebi sua beleza. Seu rosto com lábios carnudos e maturidade, junto a delicadeza de uma rosa. 

 

— Qual é seu nome? 

 

Eu podia sentir que o cenário da irrealidade estava se desfazendo. Ela olhou para mim com um sorriso de ternura. 

 

Meyrina.

 

— Obrigado por salvar meu sobrinho e cunhada, e por dar conforto a Vincent, Meyrina. 

 

A última coisa que vi antes de sair do cenário foi seu olhar surpreso. Houve o mesmo momento de silêncio dos meus sentidos antes de abrir meus olhos, eu estava de pé em frente à árvore e cambaleei quando acordei. A mão de Goro sustentou minhas costas, seu olhar carregava orgulho ao cruzar com o meu. 

 

Antes que pudesse falar, algo chamou minha atenção. A árvore voltou a seu estado opaco e sem vida, mas dessa vez ela começou a esfarelar como terra e se desfez em nossa frente. Tentei ir em direção a ela, mas Goro me segurou e sinalizou para a porta.

 

— A árvore é um canal, ela já cumpriu seu propósito aqui — disse ele, indo em direção à saída.

 

O segui em silêncio até seu carro e entrei. O interior estava frio, mas após alguns segundos o calor do elo percorreu meu corpo, me aquecendo por inteiro. Afundei no banco enquanto Goro dava a partida, minha mente estava silenciosa e isso me incomodava. Comecei a analisar tudo que ocorreu no meu fluxo. 

 

O elo flutuava ao redor da minha mente. Ele era como um floco de luz quente e dourado, eu comecei a manuseá-lo, conhecendo esse novo poder. Minha mente começou a se encher da mesma fúria de antes, mas dessa vez estava mais refinada e comportada. Aquela coisa vai pagar… mas antes tenho que ajudar Samuel e Glória. 

 

— Está pronto para ir? — Goro me tirou da espiral de pensamentos.

 

— Sim… já demoramos demais. 

 

O carro começou a andar novamente. Entrei mais profundamente no meu fluxo e trouxe o elo comigo, comecei a cultivá-lo em meu espírito enquanto refinava meu fluxo. Usei a fúria como um motor e repassei em minha mente todas as obras que conhecia, aprimorando cada uma e me aprimorando. 

 

O desejo de matar era muito pequeno. Eu queria destruí-lo, acabar completamente com sua existência. Minha vingança vai esperar, mas nunca vou deixar de me preparar para ela. Aquela coisa estava agindo com mais alguém, mas resolvemos isso Alturas.

 

O próximo passo… vai ser difícil. 

 



Comentários