Volume 1

Capítulo 8: Diferente.

[Domingo 11 de fevereiro de 2404, 01:46 da madrugada]

Leonardo

 

As dores em minha cabeça estão ficando mais frequentes. Olhando ao redor, meu escritório era arrumado até os mínimos detalhes. Mas quando olhei para minha mesa, a confusão de papéis era tão grande que até mesmo o teclado e mouse desapareceram nela. 

 

Preciso arrumar isso de uma vez. 

 

Nesse momento eu já deveria estar em casa. Contudo, minhas tentativas de manter a investigação longe dos magistrados durou menos do que o esperado. Uma das famílias nobres pediu uma entrevista comigo para debater o assunto e infelizmente sou obrigado a aceitar. 

 

Ao menos gostaria que chegassem na hora.

 

O termo família nobre apenas surgiu porque eles se intitulavam assim. No geral, dá pra catalogar eles como idiotas em sua maioria. Glória, aparentemente, teve uma briga extremamente séria com a sua e se renegou. Enfim, após essa audiência estou livre para ir para casa.  

 

Ajeitando alguns papéis em minha mesa, seu estado ficou menos bagunçado. Pegando um dos papéis, o relatório do Marcelo, ele descreveu a situação do porto como incomum e confirmou a presença de um serviçal. Ao menos as coisas estão andando e isso traz algumas preocupações. 

 

As palavras pareciam dançar no papel, dificultando a compreensão. Preciso dormir, preciso ir para casa. Olhando o relógio em minha mesa, era quase madrugada e nada do infeliz aparecer. Um bipe correu pela sala, a porta se abriu para revelar dois homem. 

 

Finalmente. 

 

O primeiro a entrar foi o patriarca. Eithor Guile. Muitas coisas se destacavam nele, mas as principais eram seu terno em vermelho e uma barba feita, junto a um cabelo lambido para trás. O segundo era seu filho, Alefe Guile, ele era mais alto do que seu pai e tinha uma cicatriz em sua bochecha, dando-lhe uma aparência agressiva.

 

Levantando-me da cadeira, cumprimentei ambos e sentei novamente. Eithor se sentou à frente da minha mesa, seu filho se sentou em uma das poltronas mais atrás. O pai tinha uma expressão que só pode ser descrita como teatral, desde o sorriso até o olhar; tudo muito bem ensaiado. 

 

— Perdoe-me o atraso, tive que resolver alguns assuntos — explicou com um sorriso elegante. 

 

Isso foi mais ensaiado que uma peça de teatro. Enfim, ir direto ao assunto me poupará problemas. 

 

— Está tudo bem, todos temos nossos assuntos para resolver… Vamos ao que interessa? 

 

— Sempre direto e prático, por isso que gosto de tratar negócios com você — disse enquanto se ajeitava na cadeira. — Acredito que você saiba a atenção que uma entidade te dá, eu estava cuidado de um possível rastro até que ouvi sobre sua investigação e comparando o que se tem de ambos, creio que seja a mesma entidade.

 

Vazamentos de informações é uma coisa. Mas como ele pode saber de coisas que acabaram de acontecer, como pode ter tanta certeza? Mantendo uma postura profissional, olhei de canto seu filho alheio a tudo enquanto segurava uma pasta. Sua expressão olhando para o nada era complicada. 

 

O assunto era previsto, mas qual será o pedido? Fama e prestígio falam por si só. É como dinheiro, quanto mais tem que dividir, com menos você fica. Isso vai ser uma conversa longa, qualquer palavra de minha parte pode ser vista como uma ofensa e isso complicaria minha vida.

 

— O que deseja fazer a respeito? — Vamos dar corda no brinquedo.

 

Eithor estalou os dedos. Seu filho se levantou e andou até mim com a pasta em mãos, seu olhar ficou inexpressivo diante de mim.  Ele colocou a pasta em minha mesa, se virou de costas e andou novamente até a poltrona em que estava. Seu pai tinha um olhar satisfeito e apenas me encarou.

 

Tá… tô levemente assustado. 

 

— Esses são os relatórios que fiz durante o serviço, fique com eles e o próprio serviço em si, já me deu muita dor de cabeça. Pode ficar com a pasta também, como uma cortesia. — Seu tom barítono contrastava com sua expressão incomodada. 

 

Fui incapaz de conter minha surpresa . 

 

— Então… apenas isso? O senhor só veio aqui entregar relatórios e anunciar que vai deixar o caso? — Impossível!

 

Seu olhar vagou distante do meu. Por que ele deixaria algo que pode elevá-lo ainda mais? Isso está longe de fazer sentido! Um "nobre" renunciar um trabalho que vai deixar ele com mais prestígio… tem coisa errada aqui, eu sei disso. Mas duvido que vou fazer ele falar. 

 

Avaliando o homem, algo se destacou. Seu terno vermelho tinha uma mancha mais escura na manga esquerda, talvez por ser da mesma cor ou por estar sem meus óculos, mas tenho certeza de que é sangue. Eithor parecia muito distraído em pensamentos para notar.

 

Que outros assuntos você estava tratando… hm.

 

— Senhor Guile? — Seus olhos se voltaram para mim assustados, mas logo recuperou a postura. — Um ferimento seu está chorando.

 

Sinalizei para seu braço. Ele encarou a mancha com um olhar vazio enquanto tirava um lenço do terno, apalpando a mancha com o lenço, pouco a pouco o pano branco ficava vermelho. Após limpar o excesso ele se levantou da poltrona e seu filho o seguiu, o patriarca se virou para mim antes de sair. 

 

— Creio que já roubei muito do seu tempo, apenas queria comunicar que os Guiles querem completa renúncia deste caso, isso é tudo. — Dando as costas para mim, ambos saíram da sala. 

 

— Es…

 

A porta se fechou deixando nada além do silêncio na sala. Que caralhos foi isso? Nada fez sentido! Por que ele… Agh! Respirando fundo, me reclinei na cadeira e soltei todo ar em um suspiro. O importante agora é que sei algo: tem algo muito errado correndo pelos magistrados. 

 

Levantando-me da cadeira, peguei algumas coisas e a pasta. Saindo da sala, ela se trancou automaticamente com um bipe e atravessei o salão para pegar o elevador. As portas se fecharam dentro da cabine de vidro e metal e nem mesmo a sensação de estar subindo podia ser sentida em seu interior. 

 

O rumor que está se espalhando pode ser verdade. O declínio da sociedade moderna dos antigos países serviu como uma luva para as entidades. Muitas conseguiram pactos e outras muitas conseguiram fiéis. Em meio a confusão e tantos malefícios das guerras, os desesperados se apegam facilmente a uma figura de poder e proteção.

 

As portas se abriram novamente. Atravessei o salão da superfície em direção a saída, os guardas faziam suas marchas em volta do prédio principal. O ar úmido da madrugada encheu meus pulmões e, por um momento, o sentimento de anestesia correu pelo meu corpo. Hora de ir pra casa.

 

Indo para meu carro, a curiosidade de ver os documentos da pasta me atormentou. Lutando contra o desejo de dar uma breve espiada, entrei no carro e coloquei as coisas no banco. O relógio do painel marcava quase uma da manhã e isso já vai ser o suficiente para levar um esporro.

 

Dei a partida, manobrei e segui para o portão. Os portões se abriram e alguns guardas acenaram para mim, segui a estrada de terra até a rodovia principal. Colocando o carro no piloto automático, os leds nas portas e painel ficaram amarelados. Recostando-me no assento, meditei.

 

Os cultos que mencionei antes é uma preocupação. Pessoas que cultuam entidades eram um problema muito mais presente do que outras criaturas, claro que nem todos deram problemas, mas, ainda assim, sempre estávamos vigilantes com suas ações. Num total, existem cinco cultos pacíficos, o resto… bom, é complicado. 

 

Informações recentes mostram que um está causando problemas. Se intitulavam "Os Eternos", isso está acontecendo no estado de Cedro, e logo eu terei que me mobilizar para lidar com o problema. Enfim, uma parte do relatório do Marcelo chamou minha atenção, o serviçal mencionou que o "Anjo" está entre nós.

 

Se for no sentido literal, é um problema.

 

Entidades em geral vivem na Margem do Paraiso. Um plano astral que é inteiramente feito de energia, Fie. Quando um celeste desce da margem e vem para cá, bom, pelo que sabemos eles constroem um corpo para residir aqui ou eles tomam o corpo de alguma criatura viva. E quando eles estão aqui… é complicado. 

 

— Senhor Leonardo, estamos próximos do destino "casa", deseja assumir o volante? — A voz do piloto automático soou. 

 

Abrindo meus olhos, já estava em uma estrada baldia. A estrada de britas era cercada por árvores, olhar pela janela dava vista para os resquícios de luz deixados pelo farol na mata escura. Virei-me para arrumar as coisas que deixei no banco e a tentação de olhar a pasta caiu sobre mim novamente. 

 

A pasta de couro avermelhado e costura negra me chamava. Seu trinco dourado continha o brasão dos Guiles, e infelizmente por isso vou ter que jogá-la fora depois que pegar os arquivos. Colocando-a junto a minha bolsa, olhei para a estrada e ao longe uma luz brilhava nela. 

 

— Senhor Léo? Já mandei uma mensagem para a senhorita Helen, explicando o motivo do atraso e demais inconvenientes. — A voz de Arno, soou novamente. 

 

— Obrigado, Arno, você é um anjo.

 

As luzes amareladas dos painéis piscaram em resposta. Arno, é o nome que dei à inteligência artificial do meu carro. Um sistema simples para proteção e prevenção de acidentes na estrada, claro que fiz algumas melhorias para atender melhor minha rotina. O que seria do bom sem as melhorias?

 

Se descobrirem que fiz modificações em uma IA pública, vou ter que pagar uma multa pesada. 

 

Após mais alguns minutos na estrada chegamos em casa. Arno, abriu os portões e manobrou o carro na garagem. Mesmo que de relance, vi uma mulher esperando com os braços cruzados em frente a porta da casa. Arno, abriu as portas para mim e as luzes do painel se desligaram. 

 

Saindo com a mochila e a pasta, a mulher me observava. Seja natural, evite demonstrar medo. Andei em encontro a ela até que um vento seguido por bateres de asas alcançou minha nuca. Uma pomba branca pousou em meu ombro, seus olhos como duas bolinhas vermelhas me julgando. Até você, Nina?!

 

— O que discutimos sobre seus atrasos, Leonardo? — Os olhos de Helen estavam mais afiados que facas. 

 

— Pru, pru! — emitiu Nina erguendo as asas. 

 

— Desculpa, tá? Os Guiles são incapazes de cumprir um simples horário. 

 

Seus olhos se afiaram ainda mais. Sons de resmungos ecoaram pela porta aberta, seu olhar afiado se tornou preocupado e ela correu para dentro de casa e Nina, a seguiu para dentro. Entrando, o calor seguido pelo cheiro da comida fez minha mente girar antes de fechar a porta. 

 

Helen estava no sofá com um tufo de cobertores em seus braços. Deixando minhas coisas no chão da sala, me aproximei de onde ela estava. Enrolada nos cobertores, minha neta dormia nos braços da avó. Com Helen distraída, aproveitei para tomar banho e me servir antes que seu estado de mãe coruja passasse. 

 

Sentando no sofá. Helen, estava no quarto colocando Milena para dormir em sua cama. Ela é mãe da minha finada nora, concordamos em cuidar de Milena juntos para que ela tivesse uma infância mais próxima do normal. Meu filho faleceu antes de minha genra, então queríamos dar a imagem de uma família para ela. Pai, mãe e filha.

 

Espero que isso funcione. 

 

Deixando esses pensamentos de lado. Peguei a pasta e a abri, os mais diversos papéis e anotações com o brasão do Guiles enchiam a pasta, li cada um em busca de um motivo melhor do que o dado pelo patriarca para deixar o caso; mas era como ler algo escrito por um robô. Helen apareceu com Nina em seu ombro e se sentou ao meu lado. 

 

O único papel que chamou minha atenção era de um encontro com uma criatura. Três equipes dos Guiles desapareceram após serem enviadas para um centro para tratamento de esgoto fechado. Sem notícias e blá blá blá. Buscando formas de compensar as famílias com um pouco de dinheiro e outras coisas do tipo. 

 

Essa é a forma dos nobres. Contratam mercenários e criam seus próprios exércitos, isso evita que eles mesmos tenham que fazer o trabalho sujo. Helen tentava esconder seu interesse nos papéis, mas passei os que estavam em minhas mãos para ela. Se eu mandar Glória para lá, vou estar mandando ela às cegas para essa criatura.

 

Meu trabalho como supervisor é apenas gerenciar recursos. Mas me recuso a ser como os magistrados, estou longe de ser bom, mas ainda assim preciso fazer meu melhor para continuar a ser diferente. Posso enviar essas informações através de Marcelo, isso diminui o risco já que vão estar cientes que tem algo lá. 

 

— Vai mandar aquela mulher lá? Não pode estar pensando nisso, Léo! — Helen me encarou. 

 

— Que escolha eu tenho?

 

Ela jogou os papéis em mim e se levantou em direção a cozinha. 

 

— Ela tem uma família, seu idiota! Se três equipes desapareceram, o que acha que vai acontecer com um grupo pequeno? — Sua reprovação era palpável e ela foi para cozinha ainda me xingando. 

 

Você acha que eu não sei? Que porra! Nina voou para meu joelho, através do fluxo, a sensação de consolo que ela emitia vinha com um toque de reprovação. Estou sem pistas e essa é a única disponível, a única que pode dar em algo além de mais perguntas. Suspirando, entrei no fluxo para soltar minhas ideias. 

 

Os riscos são os mesmos de qualquer forma. Mais ninguém iria querer ser enviado para lá com esse histórico de falhas, Glória tem Marcelo, e ambos têm aprendizes competentes. Eles são capazes disso, eu… preciso acreditar que sim. Nina reprovou a ideia e voou para longe encobrindo seus pensamentos. 

 

Pegando os papéis jogados. Li com extrema atenção a cada detalhe dos poucos que tinham, mas nada que fosse realmente útil se destacou. Arrumando as coisas novamente, me recostei no sofá enquanto meditava. Centro de Tratamento Público Boa Vida…  

 

Seja capaz, Glória. E por favor… fique bem.



Comentários