Volume 1
Capítulo 7: Por do Sol
[Sábado 10 de fevereiro de 2404, 22:44 da noite]
Glória Merial
Estão brincando com ele?
Partículas luminosas rodeavam as mãos de Samuel enquanto tentava pegá-las. Ele se remexia em meus braços, da esquerda para direita, tentando alcançá-las, mas continuavam se esquivando das suas mãos. Sossega, Sammy! O abraçando mais forte, ele parou de se remexer.
Vince observava com um sorriso, mas minha atenção foi para a árvore. Tinha um fluxo de névoa subindo do chão e seguindo pelo tronco translúcido, seguia até as folhas onde o fluxo se espalhava pelo ar como pequenas formas luminosas. As partículas enchiam os cantos do galpão vazio.
É lindo.
Virando-me para Vince, sua feição era pensativa encarando a árvore. Se ele estudou ela com meu pai, significa que nem ele conseguia definir o que ela é. A vida oculta são formas de vida que se relacionam com o paranormal como um organismo único, quase uma dependência dele para existir. Mas nunca vi ou ouvi sobre algo assim.
— O que você descobriu até agora? — Vincent acordou do transe em que estava e seu olhar vagou confuso antes de encontrar o meu.
— Apenas teorias… só posso dizer que ela tem uma espécie de consciência, foi tudo que descobrimos e é a única que temos certeza.
O breve silêncio que pairou com suas palavras levantava apenas dúvidas. Uma árvore com consciência? Levando em conta que pouco se sabe sobre as formas de vida ocultas, isso poderia ser a descoberta do século. Mas por que eles guardaram isso?
Conheço Vincent o suficiente para saber que o motivo está longe da ganância. Mas meu pai… Tenho dúvidas sobre ele, mas com certeza ele também pouco liga para fama e até mesmo a evita quando tem chance. O que estão planejando?
— Como você a… — Merda, eu tô interrogando meu marido.
Essa parte de mim é algo que se ativa naturalmente. Mas devia haver uma esponja melhor sobre quando e onde… e também com quem. Deixando um suspiro lavar minha alma, Sammy, cutucou meu nariz com um sorriso bobo. Cutucando seu nariz, ele escondeu seu rosto enquanto resmungava.
Vincent parecia confuso. Formei um sorriso e cutuquei seu nariz, sua confusão se transformou em uma careta abobalhada. O nariz é o botão da bobice? Enquanto ríamos, a atmosfera parecia brilhar cada vez mais e o calor que o lugar estava emanando expurgou completamente o frio.
— Sei que está curiosa sobre como a encontrei, mas a explicação é tão simples que vai apenas decepcionar você. — Vincent limpou uma lágrima do seu olho, ainda sorrindo.
Sammy bocejou antes que eu pudesse falar. Que estranho, parece que tá tudo mais pesado. Manter meus olhos abertos estava ficando cada vez mais difícil, o abraço do Vince ao meu redor ficou mais forte e parecia que eu estava caindo. Olhando para ele, dois Vincents preocupados me olhavam volta.
Isso tá errado, muito errado!
Movendo Sam para um deles. Minhas pernas falharam e mergulhei na completa escuridão. A sensação de estar caindo durou mais do que deveria. Onde está o chão?! O que aconteceu comigo? Vincent! Samuel! Por que não consigo falar?! Calma, calma, respira…
A escuridão ao meu redor ficou límpida. Meus pés ou o que suponho que seja meus pés tocou uma superfície sólida. As sombras escorreram pelos arredores e aos poucos um cenário semelhante ao galpão se formou, mas uma sombra volúvel estava na altura das coxas e ondulando.
Isso é irrealidade, significa que tá tudo acontecendo na minha cabeça. Vincent e Samuel devem estar seguros, mas o que foi que causou isso? O pensamento lógico me leva para a árvore, mas uma árvore ser capaz da criação de um cenário de irrealidade mesmo que tenha certa consciência é… assustador.
O mar ondulante da escuridão se agitou um pouco distante de mim. As mesmas partículas do galpão verdadeiro flutuaram das sombras, elas se aglomeravam à minha frente enquanto a escuridão estava esculpindo uma forma humanoide. Que merda, parece que tem alguma coisa me segurando!
Olhei a forma esculpida pela escuridão. Um vestido ondulava tão levemente que parecia seda branca, seu corpo era delicado em cada detalhe, cabelo negro se conectava com as sombras e um pouco caia sobre seus ombros. Um rosto jovem com pele de porcelana tinha expressões suaves enquanto olhava para mim.
Quem…
A garota fez um movimento com a cabeça, como se me avaliasse. Um sorriso formou-se em seus lábios e sua mão se ergueu para mim. Dei um passo para trás e… consigo me mover? Apalpando meu próprio rosto, tudo parecia normal. A mulher ainda olhava para mim com a mão estendida, mas seu seus olhos negros transparecia diversão.
Ela é a consciência da qual Vincent falou? O que ela quer? Pense, Glória, pense! Olhando ao redor, busquei por qualquer fresta na réplica do galpão, mas tudo estava impecável. O som de uma tranca se abrindo soou atrás de mim, as portas do galpão se abriram para revelar uma visão através dela.
Vincent! Sammy!
Que merda, falar é o mínimo que eu queria fazer agora! A porta do galpão era como uma visão para a realidade, Samuel estava nos braços do pai enquanto eu estava inconsciente também nos braços dele. Meu corpo era atraído para essa porta, mas olhando para trás, a mulher ainda sorria com sua mão estendida.
— Todos têm seu tempo. — Uma voz gentil ressoou em minha mente, tão baixa e natural que parecia até mesmo um pensamento normal.
É você? Na minha cabeça?!
Um eco surgiu na visão da porta. Sammy acordou de seu sono e se agarrou a mim, me sacudindo enquanto parecia falar algo. Sammy! Olhando para mulher de novo, seu corpo parecia estar soltando uma névoa enquanto suas expressões e forma perdiam a solidez.
Pense, Glória!
Vincent me trouxe aqui. Ele sabia que essa árvore tinha consciência, então provavelmente sabia da existência dessa mulher. Se mesmo assim ele trouxe eu e Sam até aqui e nos colocou no alcance dela, devo assumir que ele saiba o que está fazendo. Preciso... merda! Em um impulso, agarrei a mão da mulher.
Por um instante, nada aconteceu. A mão macia como um travesseiro se aqueceu após alguns segundos. Um calor correu por meu braço e enchia cada parte do meu corpo até que se instaurou em meu peito. A visão do galpão ficou mais clara à medida que o calor do meu peito se solidificou.
— Cuidaremos de vocês. — A mesma voz adentrou minha mente, mas dessa vez estava mais nítida e imponente.
Quem é você?
O olhar da mulher se tornou divertido. As sombras que cobriam o chão subiram como gotas, passando entre nós e se elevando até o… cadê o teto?! Onde deveria estar o dito cujo, estava um buraco sem fim. O cabelo da mulher estava para erguido na direção do buraco e as sombras estavam escoando cada vez mais para o buraco. A mulher soltou minha mão.
Como se a gravidade fosse invertida, cai sem rumo na grande fenda. Meu coração parecia que tinha se acendido em chamas, o calor que antes era apenas um cobertor parecia o próprio fogo. Uma visão semelhante a aquela da porta do galpão brilhou um pouco abaixo de mim. Na completa escuridão da onde estava, a visão me atraia como mariposas para luz.
— Nos veremos em breve, Glória.
A completa cegueira dos sentidos foi trocada pelo calor. O choro de Sammy foi a primeira coisa que ouvi, a segunda foi Vincent o consolando enquanto dizia que eu estava bem. Colocando minha mão sobre a cabeça do Sam, ambos apertaram seu abraço sobre mim quase roubando meu ar. Também amo vocês, mas assim vocês me matam!
Quando abri meus olhos. Vincent, tinha sua feição aliviada, Sammy, estava chorando agarrado ao meu pescoço. Meu corpo ainda acordava, mas fiz um esforço e coloquei minha mão sobre as costas do Sam e o acariciei. Seu choro se reduziu a fungadas, mas seu aperto ao meu redor continuava forte.
— A mamãe está bem, meu bebê.
Seus resmungos ficavam altos quando eu tentava aliviar seu aperto. Tá bom, a mamãe para. Jogando meu peso em Vince, seu olhar parecia cada vez mais aliviado. O que houve na onde eu estava, deixou algo em mim, consigo ver o calor em meu peito e ver isso em ambos também.
É como se…
O entendimento veio para mim. Era só ter fé, que preço simples. Deixar minha mente vaguear sem rumo enquanto admirava a beleza que a árvore tinha, foi tranquilizante. Os flocos dourados pareciam brilhar cada vez mais, as partículas nos rodeavam lentamente, parecia uma dança. Estou cansada, que horas são?
Após minutos no silêncio, virei para Vincent. Seu rosto era uma mistura entre alívio e preocupação, deixando esses traços de lado, foquei em sua beleza. Ele tinha um rosto delicado para um homem, mas seus traços sutis eram incapazes de confundir até mesmo o mais desavisado. Um colírio só para mim, hi hi.
— Acho que já podemos ir. — Ele tocou meu nariz com seu indicador.
Saindo do transe, vi que ele tinha um sorriso divertido no rosto. Mostrei-lhe a língua e virei o rosto por sua provocação, mas concordei com a cabeça. Sam já estava dormindo em meu peito e levantar sem acordar meu pequenino foi complicado, mas com ajuda do Vince foi possível.
Caminhei até a porta com Vince acompanhando meus passos. Fora do galpão, as partículas que nos seguiam perderam seu brilho antes de desaparecerem na noite. A luz amarelada da arandela formava uma redoma luminosa até onde sua luz alcançava, depois disso apenas as silhuetas das árvores eram visíveis. Seguindo os paralelepípidos até o carro, coloquei Samuel em sua cadeirinha.
Recostando-me na cadeirinha do Sam, observei Vincent fechar a porta do galpão. O vidro estava embaçado pela garoa, mas ainda dava pra ver o brilho sincronizado vindo lá de dentro; se parecia com uma despedida. Ele entrou no carro e olhou para trás para nos conferir, após isso o manobrou e seguiu o caminho. O movimento e saber que estávamos voltando para casa me trazia paz.
Por onde começar?
Primeiro uma árvore com consciência. Após isso sou sugada para um cenário da irrealidade e como se fosse pouco, dentro do cenário encontro o que provavelmente é uma celeste ou um espírito menor. Vincent e meu pai tinham muitas explicações que poderiam tentar solucionar, mas provavelmente todas eram incapazes disso. Quem conseguiria explicar isso? E...
"Cuidaremos de vocês", o que isso quer dizer?
Um arrepio correu minha nuca. Pensando no que presenciei naquele cenário, é fácil afirmar que a um elo entre nós e aquela mulher. Um elo é uma conexão entre uma entidade de qualquer tipo e um ser vivo, existem variados tipos, porém quando há um elo significa que existe uma rota direta entre o ser vivo e a entidade. Vejo essa conexão em mim, mas o que faz o arrepio aumentar é ver isso em Sam e Vince.
Só preciso confiar em Vince, apenas isso.
Com um suspiro, deixei com que o sono se aproximasse cada vez mais. Mergulhei fundo em meus pensamentos, construí um ponto meditativo em meio ao vazio dos pensamentos. Foquei na nova sensação em meu corpo, o calor em meu peito era volúvel e pareceu premeditar minha ação, minha consciência foi recebida por um cobertor quente e mais nada.
Todos os lados pareciam iguais. Na verdade, todas direção dentro desse cobertor parecia exatamente igual, era silencioso, indiferente e só reagiu quando eu fiz o primeiro movimento. Como posso descobrir o que é isso? A sensação que batizei de Pôr do Sol, indicou um caminho em minha mente, como se me convidasse a entrar.
O cenário sacudiu levemente enquanto se construía. Eu estava de volta à frente do armazém, porém apenas as silhuetas das árvores apareciam enquanto estava dentro do cenário pouco iluminado. Desde os paralelepípidos, até o galpão em si, tudo exceto nossos arredores escuros era semelhante ao que vi.
As portas do galpão se abriram. Uma luz amarela intensa cobriu tudo como se fosse o próprio amanhecer, uma silhueta familiar apareceu na porta. A mulher! Esticando minha mão, percebi que tinha seis dedos nela e quando percebi isso o dedo ficou sumindo e aparecendo. O pôr do Sol deixou minha mente e algo estava pressionado na minha bochecha.
— Mamãe? — Abrindo meus olhos, Sam estava deitado sobre mim com seu rosto colado ao meu.
Onde… minha cama?
Meu edredom quadriculado em vermelho e preto estava sobre nós. Estou no quarto de casal, quando foi que… Eu tinha dormido tão pesado que nem acordei com Vincent me carregando para a cama? Sam tinha seu olhar curioso sobre mim, agarrando-o, virei de lado e o puxei para mais perto.
Após se remexer e resmungar muito, ele desistiu de escapar. O quarto ficou silencioso, mas vez ou outra tinha um resmungo. Aquele sonho, sei que foi mais do que isso, mas fui incapaz de manter a concentração, ou todo movimento do lado de fora afetou a minha concentração sem que eu percebesse.
— Mamãe, trás papai pra cá — resmungou Sammy.
Coloquei sua cabeça sob meu queixo para que dormisse, mas sua insistência acabou por me vencer. Quando sai da cama, Sam foi rápido para se enfiar na coberta e me seguiu com seus olho até a porta. Andando pelo corredor, Vincent estava em sua escrivaninha com uma caneta na boca.
Olhei ao redor e vi meu sobretudo no cabideiro junto a seu casaco. Andei até ele e puxei a segunda cadeira ao lado da escrivaninha, seu olhar estava cansado, mas ainda assim parecia cheio de energia de alguma forma. Tirei a caneta da sua boca e a coloquei com as outras na mesa.
— Então… dormiu bem? — Seu sorriso parecia quase implorar por pena.
— Um sonho estranho, mas até lá isso é um pouco normal. — É complicado.
O silêncio que pairou sobre nós durou pouco.
— Desculpa — falamos em unissom.
— Você primeiro, vai ser mais fácil de explicar que o meu. — Coçou a nuca.
— Eu… só quero me aposentar logo. Entidades são mais perigosas, mas sei o bastante sobre elas e posso concluir esse caso em menos de um ano, talvez até menos… eu pensei pouco em relação ao risco que estaria correndo. — E muito em vocês.
Meditei esperando algum comentário. Seu abraço foi repentino, mas depois do susto apenas retribui o afeto. O breve momento deve ter durado mais do que notei, mas até lá percebi que o Pôr do Sol se aqueceu em meu peito. Vincent ajeitou seus óculos e segurou minha mão.
— Sei que você deve ter perguntas, mas sinceramente não sei nada além de teorias vagas que bolei com seu pai… desculpe, só sei isso. — Seu olhar era triste, mas longe de derrotado.
Poderia debater com ele a noite inteira e ainda teríamos o exato resultado que ele e meu pai tiveram. Levantei da cadeira o puxando pela mão, andamos até o quarto para ver Sammy brincando com os travesseiros. Vince soltou um riso baixo e nos escondemos no batente da porta.
— Essa conversa pode esperar? A árvore ainda continuará lá amanhã. — Vince parecia ansioso para mergulhar em uma guerra de travesseiros.
— Primeiro um banho, depois dormir. — Estou suada.
Com um beijo em minha testa, ele foi para o banheiro. Entrei no quarto e sentei na beira da cama, Sammy foi rápido para vim até mim e se debruçar em meu colo. Fiz cafuné em sua barriga o que o deixou com uma expressão satisfeita, um riso escapou de mim e ele fez um biquinho.
— Meu neném. — Cutuquei seu nariz.
Esperando Vince preparar a roupa de Sam. Tenho tempo para brincar um pouco com meu pequenino e espero ter mais ainda no futuro, agora o objetivo parece tão próximo. Marcelo, por favor, me traga boas notícias. Suspirei tentando esquecer da investigação por enquanto.
Que o sonho dessa noite seja bom e que as notícias de amanhã também.