Volume 1
Capitulo 6: Encontro curioso.
[Sábado 10 de fevereiro de 2404, 21:10 da noite]
A noite estava fria e a rua era iluminada pelos postes. A estrada que estava seguindo tinha apenas grama verde ao redor com árvores espaçadas entre si. Um pouco distante, meu destino brilhava com buzinas dos navios junto aos demais sons dos maquinários ecoando e ficando cada vez mais alto a cada passo.
O porto de Nova Salvador é o maior do continente, isso fica claro para qualquer um que vem aqui. Essa cidade faz parte das três grandes, só ficando em segundo lugar por detalhes técnicos e, sinceramente, adoro esse lugar. A estrada abriu em um grande estacionamento e mesmo dele era possível ver guindastes fazendo seu trabalho.
Caçando uma entidade… quem diria.
Glória sempre fugia desse tipo de trabalho, a pressa para se aposentar está ficando maior. Sou incapaz de condená-la e mesmo que meus interesses estejam longes dos seres astrais, posso ajudá-la nesse último serviço. Tudo que queria nesse momento era um trabalho rápido e solitário… que merda.
Devia ter evitado falar sobre a investigação para Vince? Talvez. Meu irmão é um gênio desde cedo e o fato dele ter escolhido uma vida normal ao invés dessa é um alívio. Esse trabalho tem suas partes boas e ruins, para a maioria só tem o lado ruim, mas gosto da sensação de estar ajudando.
Entrando no porto, as estradas formadas em meio aos containers eram movimentadas. Pessoas, caminhões, empilhadeiras e os guindastes estavam em constante movimento. Pensar que essas pessoas sabem que houve uma morte e mesmo assim continuam aqui era deprimente, mas não posso fazer nada.
Evitando as partes lotadas, fui para o setor desligado. A movimentação exagerada se reduziu para nada em frente ao setor, apenas dois guardas estavam na entrada e uma fita holográfica estava à frente deles. Um era idoso e seus olhos se fixaram em mim enquanto me aproximava, o outro, mais jovem, tinha uma expressão preocupada.
Ficando a frente de ambos, encarei brevemente o senhor. O uniforme da guarda da cidade tinha gotas represadas da garoa que caia. O jovem rapaz parecia ansioso para falar algo, porém se conteve quando o senhor cruzou os braços à frente do peito e limpou a garganta .
— Para prosseguir, mostre uma credencial que permita isso, se não a tiver, saia. — A voz do senhor era grave.
Pegando meu cartão no bolso interno do casaco, um movimento sutil do jovem para pegar a arma quase fez um riso escapar. Amistosos, sempre.
— Investigador Dias, minha chegada já deveria estar prevista. — Mostrei-lhe a credencial.
O senhor olhou o cartão com desgosto quase palpável.
— Quando disseram que eu encontraria um esquisito, pensei que teria sorte de ser apenas uma brincadeira sem graça… — O senhor se moveu para o lado junto a seu parceiro, a fita holográfica desapareceu brevemente. — Boa sorte, aberração.
Sempre amistosos… de novo.
Deixando ambos para trás, segui a estrada do setor até o porto, memórias indo e vindo.
Aberração é um apelido carinhoso para pessoas como eu, mas o nome que mais usam é anômalo. Por algum motivo as pessoas nos odeiam ou tendem a nos odiar, sinceramente está fora do meu saber se merecemos ou é apenas um preconceito.
A resposta é óbvia, mas para que pensar nisso?
A garoa aumentou gradativamente enquanto me aproximava de um grande petroleiro. Nas docas onde estava ancorado, uma figura estava sentado em um dos negócios que eles usam para amarrar os barcos ao lado do elevador para embarque. Quando disse que estaria acompanhado, falei sério, de todos, esse é o que mais suporto.
A figura se levantou do gancho para navio e tinha uma expressão azeda. Seu cabelo loiro e corpo bem formado davam a ele uma aparência de príncipe. Seus olhos castanhos tinham um descontentamento palpável enquanto encarava os meus. Seu rosto jovem era afiado e enganaria muitos a respeito da sua idade.
— Por quê? — disse ele calmo, quase uma súplica.
— Por que o que? — Arquei uma sobrancelha.
Seus olhos se fecharam e o som de um longo inspirar se assemelhou a um assobio.
— Por que caralhos você trouxe a gente para cá em uma noite fria, na beira do mar e quando está chovendo? E por que eu? O que você tem contra MIM?!
Seu olhar exaltado e voz elevada enquanto explicava que estava querendo dormir e que hoje estava sendo um dia perfeito até agora era cômico. Quando o príncipe se acalmou, lhe dei tapinhas nas costas enquanto ele ainda choramingava.
— Você é meu preferido, Armando, agora fique feliz. — Ou vou te colocar na lista negra.
— Tsc..
Armando trouxe consigo uma grande bolsa para o elevador. Enquanto o elevador subia, observei o garoto com um olhar distante. Dezessete anos… cada vez mais as pessoas que estão entrando nesse serviço estão mais jovens e nem mesmo tem chance para experimentar algo diferente na vida além disso.
Tá ficando cada vez pior.
A política estagnou nos últimos anos. Somos invisíveis para grandes massas, mas as partes da sociedade normal que têm contato conosco são disciplinadas a manter distância. Os policiais nos odeiam junto à alguns outros grupos de profissões...
Viver escondido é a melhor escolha.
O elevador soltou um ranger quando chegamos no convés. O piso de aço estava acumulando a chuva que caia, os contêineres foram retirados junto às demais cargas para a perícia. Um guindaste tinha seus refletores de luz posicionados para nós, eles iluminavam cada centímetros do convés e até um pouco do oceano.
Hora do trabalho. Chamando a atenção do garoto, sinalizei para ele ir à cabine enquanto eu procurava no convés. Indo para o meio do barco, acabei ficando em cima de uma mancha no chão. Foi aqui onde encontraram o corpo, ajoelhando para ver melhor, um cheiro podre surgiu.
Puta merda!
Mesmo com a água e o metal escuro ainda era capaz de ver cada detalhe da mancha. Tá certo, aqui é onde você morreu, mas por que você morreu aqui? Hm… Mergulhando em pensamentos improváveis, deixei o som da chuva e seu frio para trás enquanto destilava teorias.
A foto que o contato do Leonardo enviou mostrava que esse cara tava igual ao estado do Milo. Na perícia policial, encontraram linhas desenhadas no chão, talvez fosse o mesmo ritual que Milo iria realizar quando o encontramos. Aqueles idiotas lavaram o convés e, com essa chuva, é inútil procurar por padrões e símbolos.
Mergulhando mais fundo na inconsciência, um abraço gentil me alcançou. Um mundo pincelado era formado ao meu redor, olhando em volta da tela escurecida que replicava o convés e o porto, detalhes distintos como borrões em uma pintura destacavam-se sob meus pés. Linhas borradas pelo convés convergiam onde eu estava.
O ritual.
As linhas piscavam em laranja e a mancha brilhava, um vermelho caramelo. Você morreu aqui por um ritual! E Milo também teria morrido assim?! A criatura que explodiu o carro da Glória, era quem iria realizar o ritual? Hm… Deixando o fluxo, a luz do guindaste agraciou meus olhos.
Levantando, olhei a porta da cabine para ver o garoto voltando. Se a criatura que correu de nós após ser baleada fosse quem faria o ritual, então Milo, seria apenas um sacrifício. Mas então… por que ele nos chamou? Se pensamos dessa forma, a zero motivos para se ter dois sacrifícios quando o ritual só precisa de um.
E também… há mais daquela criatura?
— A perícia policial colocou fita em tudo, mas nada se destacou lá dentro. — Armando se ajoelhou para ver a mancha. — Acho que, seja o que for, aconteceu só aqui fora.
Pelos menos não vamos ter que procurar em todo o navio.
— Foi um ritual de sacrifício, provavelmente uma oferenda, vamos ver lá embaixo.
— Espera! Olha aqui! Tem… palavras! — Armando esfregava o chão com força.
Palavras?
Após alguns segundos, ele suspirou cansado com um sorriso. Ajoelhando-me ao seu lado, a parte que ele limpou tinha palavras riscadas no aço do convés. Isso é uma mensagem? Puta merda! A escrita estava em letra cursiva, mas a origem era… latim? É isso mesmo!
— O que diz aí?! — O jovem era incapaz de conter a agitação.
— "Sigam o rastro até ela".
Virando-me para, Armando, seu olhar era mais confuso que o meu. Quem é ela? Que rastro? O fato de eu ter falhado em detectar essa mensagem é incapaz de me surpreender. Ela foi escrita normalmente, sem nenhuma fonte de poder, apenas riscos no aço. Por isso ficou invisível no fluxo.
Isso está longe de ser importante.
Erguendo-me do chão, engrenagens giravam em minha mente. Ritual para uma mensagem e, além disso, se deu o trabalho para escondê-lá. Os passos apressados de Armando me seguindo até o elevador enquanto repetia a mesma pergunta que era incapaz de me alcançar.
Entrando no elevador, o rapaz nos colocou para descer. Seu olhar confuso enquanto olhava para mim tinha irritação, talvez uma parte importante que esqueci de falar para ele é que estamos perseguindo uma entidade celeste. Talvez eu seja hipócrita? Apenas talvez, mas se eu tivesse falado a mensagem teria passado despercebida.
Em nosso meio de trabalho, ele deu sorte de me ter como seu tutor. Além do meu carisma, ele tem acesso ao conhecimento que muitos matariam. Obras da Irrealidade, uma forma de poder capaz de ferir essas entidades e, no melhor dos casos, pode até matar, mesmo que tenha minhas dúvidas sobre.
Somos capazes de controlar nossa energia interna, Sine. Ela sozinha não faz muita coisa, mas, com uma forma de poder que está além da nossa realidade, podemos realizar as obras. Essa outra energia é Fie, precisa de um esforço para alcançar, mas vale a pena. Sou bom em resumir as coisas.
Chegando às docas, Armando colocou sua bolsa nas costas. Caminhando na direção da saída, o rapaz continuava a me secar com seus olhares. Que merda, odeio isso! Colocando a mão no bolso, um pressentimento frio percorreu minha coluna. Olhando para trás, Armando que estava prestes a falar algo olhou para mim assustado.
— O que foi?! — Atrás de Armando, uma silhueta negra deu um voo rasante por nós. A força do vento jogou o garoto contra mim enquanto tentava pegar a minha arma.
Retomando o equilíbrio, olhei ao redor buscando qualquer sinal nos containers. O garoto tirou um grande machado da bolsa e seu olhar endureceu enquanto procurava a coisa. Esse bicho é rápido como o do bosque, só que pode voar? Puta merda. Estávamos na estrada entre pilhas de contêineres com cinco ou seis metros de altura, esse bicho está com a vantagem.
Disparar a arma em último caso…
Bater de asas acima da gente revelou uma silhueta humanóide. Na quina da pilha, a criatura nos observava. Um calafrio percorreu minha nuca quando ele engatinhou para nós, segurei o ombro de Armando que estava prestes a avançar. Isso é um serviçal? Por que ele está apenas observando?
A silhueta magra tinha duas cabeças. As asas flácidas eram a única coisa que dava pra ver bem da onde ele estava. Colocando Armando para trás, dei alguns passos em direção a criatura. Se isso é um serviçal que evita conflitos, posso conseguir algo com um diálogo.
— Humano… você tem o cheiro dela… — Sua voz áspera fez o desejo de ir embora crescer em mim.
— Quem é "ela"? A quem você serve? — Comece devagar, faça as perguntas certas.
A criatura adentrou um pouco mais na escuridão da onde estava. Suas asas se abriram e começou a batê-las para alçar voo.
— A criança bastarda… A Eternidade irá curá-los e o Emissário de Etrerus levará o rebanho para a gloriosa e Eternidade! A salvação deste mundo está nas mãos do Emissario da Eternidade, Pólios! Que a Eternidade te ilumine, Efêmero. — Com um bater poderoso das suas asas, a criatura se elevou rapidamente em direção ao oceano.
Armando correu para as docas, mas a silhueta já havia desaparecido na escuridão. Às águas do mar abriam um mundo infinito e escuro à minha frente, distante de nós, nuvens ainda mais tempestuosas se aproximavam. Um navio saiu do seu ancoradouro para ir em direção ao mar aberto e deixei meu olhar acompanhar.
Isso foi… confuso. O som de um zíper se fechando levou minha atenção para Armando, suas mãos tremiam levemente enquanto guardava seu machado na bolsa. Dando tapinhas em suas costas, olhei novamente para o oceano para olhar o navio, mas ele já havia sido encoberto pela noite.
— Ainda quer saber por que estamos aqui? — Tirei um cigarro do meu casaco.
Enquanto o acendia, os olhos do rapaz brilharam em determinação.
— É um celeste, parece que ele tem um fã clube grande e estão recrutando para caçar alguma outra coisa. — Dei uma forte dragada. — Resumindo, garoto, essa é a hora pra pular fora.
Armando colocou a mochila nas costas e andou em direção a estrada. Por quê? Muitos se iludem pensando que são "policiais do paranormal" e por isso a maioria morre prematuramente. Quando tem a chance de realmente ver o que vão enfrentar, já estão ferrados demais para pensar com clareza e fugir… ou só querem a emoção.
— A criatura disse que um Emissario está aqui e que ele guiará o rebanho, mas isso parece ser menos importante do que o "ela". — A voz de Armando me tirou dos pensamentos, olhando para trás, ele esperava com um olhar pensativo. — Se esse emissário está caçando alguma coisa ou pessoa, com certeza é importante.
Um fervor encheu meu peito e subiu para meu lábios. Acho que isso é o tal do orgulho de um professor. Esse pensamento é lógico, afinal entidades conseguem quase tudo com seus poderes, o fato desse anjo querer alguma coisa, quer dizer que é incapaz para fazer isso com seu próprio poder.
— Até quando vai ficar aí? Precisamos encontrar essa coisa antes dele… ou deles. — Armando começou a caminhada.
Seguindo atrás do garoto, o caminho de volta foi rápido. Os guardas pareciam descontentes em nos ver, mas sinceramente pouco importa. Passando novamente pelos setores ativados, o movimento quase caótico dos trabalhadores e máquinas continuava o mesmo. Será que eles sabem que aquela criatura estava tão perto?
E mesmo se soubessem, continuariam aqui?
Saindo do porto, o estacionamento estava mais cheio do que quando chegamos. Indo para a estrada na frente do estacionamento, um ponto de táxi era uma caixa de metal e vidro iluminada na calçada. Apertando o botão de chamada, um aviso holográfico apareceu dizendo que uma unidade estava a caminho.
Escorando-me no ponto, acendi um cigarro. Deixe-me pensar um pouco… Serviçais são normalmente espíritos que servem os celestes, existem outros tipos, mas são irrelevantes no momento. Duas criaturas, dois lugares e dois mortos, a única diferença entres eles foram suas mortes.
Isso sem contar as informações do Leo.
Então, há alguma coisa sendo feita debaixo dos lençóis do oculto. Pólios, é o mesmo nome que Milo disse e aparentemente ele se passa por um anjo. Odeio me meter com religião, é sempre irritante já que as pessoas perdem os limites sobre o que podem fazer. Por fim… as pessoas em si, sem dúvidas já deve haver um culto e fiéis para essa entidade.
No fim, agora precisamos de uma forma para catalogar a coisa. Como se isso fosse a parte fácil, mas desde que a gente tenha uma pista sobre o próximo ritual, talvez possamos pegar uma das criaturas e usá-la para chegar no bicho maior. Mas essa coisa ou pessoa que eles estão atrás, é realmente uma preocupação.
O brilho dos faróis de um carro vindo em nossa direção fez Armando se levantar. Se a criatura está atrás de algo, significa que ele precisa desse algo e isso significa que ele está aqui. O carro parou à nossa frente e entramos, calor do interior fez o frio do lado de fora desaparecer.
— Para onde os senhores vão? — perguntou o taxista sem olhar para trás.
— Para estação de trem. — Aconcheguei-me no banco quente.
O carro começou a andar enquanto estava de olhos fechados. Glória vai se aposentar, Vince e Samuel ficaram felizes. Quanto a mim? Poderei focar mais em investigações pequenas e talvez estudar mais sobre artesanatos ocultos… Esse "ela" está me atormentando, o que essa entidade quer? Agh!
— Ei, onde está a Glória? — Armando me cutucou.
— Em um passeio em família, pare de incomodar.
O som do garoto se remexendo em seu banco era incômodo. Pensando em Samuel, poderia levar algo para ele… Será que ele gosta de animais? Aqui tem alguns bem exóticos que posso levar, hm.
Acho que vale a pena.