Volume 1

Capitulo 5: Nevoa.

[Sábado 10 de fevereiro de 2404, 17:33 da tarde]

 

O sol da tarde iluminava minha caminhada pelo parque. Do lado esquerdo da calçada, um bosque florestal com um afluente embelezava nossa vista com suas folhas amareladas. No lado direito tinha casas dos demais moradores e uma rua pouco movimentada.

 

Samuel estava em meus braços tentando agarrar as folhas jogadas contra nós pelo vento. Vincent caminhava ao nosso lado observando com um sorriso distraído. Um passeio em uma tarde gelada de outono, o que mais poderia pedir? 

 

Pouca coisa.

 

Caminhando pela calçada, Sammy acabou adormecendo no caminho. Chegando em um estacionamento, fui ao nosso carro para deixar Samuel em sua cadeirinha. O colocando gentilmente no assento e estando coberto com sua mantinha, ele a agarrou enquanto resmungava apagado. 

 

Esse lado bobo com certeza é do Vincent. 

 

Contendo o riso, saio e fecho devagar a porta. Vincent aguardava em um banquinho em frente a nosso carro, indo e sentando a seu lado, seu olhar demorou um pouco para encontrar o meu. Ele esticou o braço, puxando-me para um abraço confortável.

 

Seu olhar ainda estava distante nas árvores e no afluente. Desde que contou hoje mais cedo sobre a coisa que descobriu, tem estado muito distraído. Até aí, isso sempre fora algo repentino e que acontecia muitas vezes sem motivos, mas dessa vez tinha uma razão para preocupação.

 

Tentei tirar qualquer informação sobre essa coisa durante a tarde, mas tudo foi em vão. Ele disse que mostraria para mim ainda hoje, só preciso estar com a mente aberta... e isso é um saco! Quero acreditar que seja apenas uma brincadeira, mas Vincent nunca brincaria com algo assim. 

 

Preciso pensar um pouco mais.

 

— O que está deixando seu lindo rosto tão carrancudo? — Vincent me tirou do transe e seu rosto estava a centímetros do meu. 

 

Fiz biquinho, evitando o seu olhar.

 

— Nada. — Você e seu segredo!

 

Seu abraço apertou um pouco mais, aproximando meu rosto do seu. Permaneci forte com um biquinho para frente, mas sua insistência venceu. Afundando a cabeça em seu peito, tentei esquecer momentaneamente o mundo e todos os seus problemas, mas durou pouco.

 

Marcelo havia ligado antes de sairmos da casa. Ele encontrou algo, mas disse que era melhor conversar pessoalmente. Com certeza ele nunca será um cunhado ideal ou divertido, mas sabe fazer seu trabalho e é um bom tio para Sam.

 

Afastando-me do peito do Vincent, nos encaramos um pouco mais.

 

Eu amo esses olhos. O verde musgo tinha um brilho especial, algo que mudava às vezes, mas sempre continuava doce e gentil quando olhava para mim ou Samuel. Em minha distração, ele me roubou um beijo. 

 

Hi hi. 

 

— Você tem certeza que essa coisa é segura, Vince? — Olhei para baixo, reconstruindo minha maturidade. 

 

Ele ergueu a mão e esticou seu dedo mindinho.

 

— Eu prometo — disse, flexionando o dedo. 

 

Tentei olhá-lo seriamente, mas seu sorriso bobo e insistência mostrando seu mindinho venceu. Aceitando sua promessa, olhei para trás pra conferir Samuel, por trás do vidro conseguia ver claramente que ainda estava dormindo.

 

No silêncio onde apenas o som do afluente ecoava pelo estacionamento, me recostei em Vince. Marcelo trará uma nova pista para a investigação andar, diferente das outras que já fiz, essa é a única que estou ansiosa por um final. 

 

Vou poder viver longe de tudo isso e tentar dar a Sam uma vida normal. Sei que será difícil, mas posso ao menos controlar os riscos em sua provável vez. Olhando por uma certa perspectiva, Vincent é um dos poucos que realmente conseguiu escapar do trabalho forçado. Eu tive uma chance, mas deixei a hora passar.  

 

Um dos meus maiores arrependimentos. 

 

Anômalos, humanos com capacidades paranormais, isso é tudo que somos. Os números são poucos e ainda existe uma grande lacuna no conhecimento necessário para saber o porquê de sermos assim. Devido à acontecimentos passados em nosso mundo, os números aumentaram substancialmente. 

 

Mas até lá, ainda somos poucos. 

 

Quando somos classificados como anômalos, tudo se volta contra nós. Um alvo é colocado em nossas costas e basta um deslize inconsciente das nossas capacidades, que somos classificados como: "Uma ameaça a menos". Basta pensar que nem nós mesmos nos damos uma chance para realmente viver. 

 

Contendo um suspiro, olhei para a floresta à nossa frente. As folhas amareladas caíam e eram levadas pelo vento, a grama verde estava dividida no caminho até a mata pelo afluente e consegui ver um homem sentado à beira dele com uma vara de pesca na mão. Parece ser tão simples, mas sei que é apenas uma ilusão. 

 

O som do motor de um carro cobriu brevemente o som das águas. Parece que as notícias chegaram. Vincent olhou brevemente para trás com um olhar tímido para ver Marcelo. Erguendo-me do seu abraço, esfreguei as mãos no rosto enquanto respirava fundo. 

 

Vamos lá. 

 

Levantamos do banco enquanto Marcelo esperava ao lado do seu carro. Aproximando-nos, ele parecia distraído mesmo que estivesse olhando para nós, muito semelhante a Vincent quando caia em devaneios.

 

Isso deve ser coisa de irmãos.

 

Vincent lhe deu um breve abraço antes de se recostar no carro ao meu lado. 

 

— Desculpe por atrapalhar a tarde romântica, mas já tenho uma pista da coisa. — Mesmo em seu tom de piada, pude ver sinceridade na desculpa.

 

— É aquela criatura que você está seguindo? — perguntou Vincent, olhando para mim. 

 

Merda.

 

Estava esperando esta noite para revelar que iria fazer um trabalho mais rápido. Mas ainda estou receosa quanto a parte "entidade celeste", ele sabe o que é isso e que risco isso representa para mim. É errado eu querer evitar essa conversa e talvez adiar ela? Talvez, mas preciso pensar bem nas minhas falas e… Que merda. 

 

Dei um olhar de canto para Marcelo, ele parece ter entendido, mas ainda assim explicou a verdadeira situação para Vince. Seu… agh! Vincent escutou em silêncio e ficou com uma feição inexpressiva enquanto escutava, mesmo depois que a explicação acabou o clima continua silencioso. 

 

Deixando Marcelo de lado, fiquei à frente do Vincent. Seu olhar estava um pouco abatido, mas ainda assim sorriu para mim. Colocando minha mão sobre em sua bochecha, as palavras e explicações ficaram presas em minha garganta como um espinho. 

 

— Eu… ia falar sobre isso mais tarde. — Empurrei as palavras para fora.

 

— Tudo bem, falamos disso no caminho — disse Vince com seu sorriso. 

 

Prestes a falar mais, reparei uma pequena movimentação na cadeirinha do Samuel. Já acordou? Ou está desconfortável? Vincent seguiu minha linha de visão e se despediu do seu irmão antes de andar para nosso carro. Recompondo-me, dei um olhar fulminante para Marcelo. 

 

Posso até ter errado em esconder a investigação, mas falar algo assim tão despreocupadamente é sacanagem! Respirando fundo, puxei todo ar possível antes de soltar tudo em um suspiro. O fluxo ressoou em minha mente de forma inconsciente, mas fui rápida para perceber. 

 

Abrindo meus olhos, Marcelo tinha um rosto inexpressivo tentando esconder seu incomodo com algo. Mas ainda assim tinha um olhar preocupado. Você fez isso pra ajudar ou me azarar? Provavelmente foi pelos dois. Recostando na lateral do seu carro, ainda mantive uma postura irritada para ele. 

 

— Enfim — ele disse, coçando a nuca — Teve uma morte no porto com as condições que estamos buscando, deve ser uma coisa rápida para ver; então preciso que me libere. 

 

Tão rápido? 

 

Antes que eu pudesse falar, Marcelo impediu falando por cima. 

 

— Olha…  é melhor você passar um tempo com Vincent e Sammy. Se isso for mesmo uma pista, vai demorar até surgir outra oportunidade assim... e você sabe disso. 

 

Suas feições ficaram sérias e quase podia ver emoções nele.

 

É, ele está certo, uma pista quer dizer progresso e progresso quer dizer tempo, tempo gasto na investigação é igual a tempo longe deles. Mas ainda assim é estranho toda essa bondade, hm. Afastando-me do encosto, olhei para Vince que me esperava no carro. 

 

É melhor estar com vocês.

 

— Vá de trem, irá fazer o trajeto em sete horas, no mínimo. — falei lhe dando as costas. — E leve alguém com você.

 

— An? Tá me…

 

Ignorando suas reclamações, entrei junto a Vincent em nosso carro. Colocando-me entre os assentos, Sammy ainda estava dormindo agarrado a sua manta. Vince deu a partida no carro e saiu deixando seu irmão para trás, sair da cidade demorou muito pouco por conta do seu tamanho e logo entramos na rodovia. 

 

A movimentação durante a tarde tende a diminuir, mas ainda a uma boa quantidade de carros. Olhando mais a frente evitando os carros à nossa frente, as nuvens estavam escurecidas e começavam a cobrir o céu tardio. O bom de viver em um lugar que chove praticamente o ano inteiro, é que tudo é adaptado para chuvas.

 

Livros contam desde o colapso da antiga/moderna sociedade por conta das guerras. A diminuição da população humana e reclusão nesse único continente nos últimos… 600 anos? Enfim, isso ajudou os outros continentes a se recuperar e fizeram isso sem nós. A tecnologia nos permite ter muitos carros elétricos e a falta das outras nacionalidade sanaram muitos conflitos. 

 

Acho que tudo isso foi… bom? Hm.

 

Deixando de lado os pensamentos didáticos, preciso explicar as coisas para Vince. Seu olhar concentrado na estrada era um pouco aliviante, mas o leve remorso por ter ocultado algo assim estava corroendo meu peito. Devo só explicar com clareza o porque que eu estou assumindo o risco, isso já deve bastar.

 

— Eu… desculpa por ter evitado o assunto. — Um sem querer talvez funcione. 

 

Seu olhar continuou fixo na estrada, mas tirou uma das mãos do volante para pegar a minha.

 

— Sou incapaz de dizer que está tudo bem, mas também sei que você fez isso com um bom motivo… né? 

 

— Sim! — Meu escândalo fez Sammy se remexer e resmungar. — Quero dizer… é mais arriscado, mas quando acabar, poderei deixar a ordem. 

 

O carro diminuía e ele entrelaçou os dedos aos meus. Saindo da rodovia, entrou em uma estrada menor. Pinheiros nos cercavam e, a partir de um ponto, a estrada era feita de paralelepípidos, coberta pela folhagem caídas dos pinheiros. 

 

Através das árvores, o sol estava se pondo e seu brilho penetrava entre elas. Vincent ficou quieto desde a rodovia, sua expressão calma e quase inexpressiva era incapaz de esconder a inquietação. Após alguns segundos do que pareceu uma eternidade, ele suspirou. 

 

— Será o último, né? — disse Vince, reduzindo ainda mais a velocidade do carro. 

 

Na época em que ainda sentia algum prazer nesse trabalho, teria tentado de tudo para mudar essa conversa. Mas pra que continuar com isso? De uma investigadora a uma mensageira, mas sei que a fase de aventuras e toda aquela coisa do lutar contra o mal já passou. 

 

— O último, depois disso quero me mudar para longe daqui. — E cuidar de vocês.  

 

Enquanto ele parava o carro em uma clareira, soltou uma risada melodiosa. Seus olhos marejados encontraram os meus, um pesar caiu sobre meu estômago. Mas ele apenas sorriu abanando a mão para mim enquanto tentava ajudá-lo. 

 

— Chegamos. — Apontou para frente e saiu do carro. 

 

Vince!

 

O seguindo, o vento gélido agraciou meu rosto junto ao cheiro dos pinheiros. O som das folhagens balançando em todas as direções era confuso. À minha frente uma pequena clareira cercada por pinheiros se conectava com a estrada de paralelepipidos, na outra extremidade da roda tinha um galpão.

 

Que lugar…

 

Um brilho repentino me fez dar um passo para trás. Que isso? Olhando para a fonte da luz presa em uma árvore, um suporte enferrujado segurava uma arandela emitindo uma intensa luz amarela por todo o círculo da clareira. Na escuridão da noite, a escuridão fazia as árvores parecerem silhuetas sobre a luz.

 

Um pressentimento atraiu meus olhos para o galpão. Parece quase que… Às paredes cobertas por musgo deixavam sua idade clara, a mata ao seu redor parecia ter engolido a parte de trás e a janela acima da porta era completamente inútil, já que era impossível ver qualquer coisa nela. 

 

Vince apareceu ao meu lado e meu coração pulou uma batida. Cacete! Samuel estava em seus braços com um rosto sonolento. O que você pensa que… Antes que pudesse falar ou reagir, Sammy agarrou meu pescoço em um abraço. Sam, agora não bebe! Enquanto tentava me desvencilhar do abraço, Vince assistiu com um sorriso. 

 

— Mamãe… — resmungou Sammy. 

 

Cedendo ao abraço, Vincent saltitou até a porta do armazém. Quando ela a abriu, nem mesmo a luz da arandela penetrava na escuridão do lugar. O calafrio percorreu minha coluna, mas sem pensar muito segui Vince que entrou sem demora no lugar. O frio dos ventos foi substituído por uma estranha quentura. 

 

Que sensação… 

 

Uma batida forte veio da porta e olhando para trás ela estava fechada. O que… A única fonte de luz era ela, mas agora a escuridão parecia se mover em minha visão como se estivesse viva. Vince! Preciso me acalmar… Apertando meu abraço em torno de Samuel, estava prestes a mergulhar. Mas um calor gentil me acolheu. 

 

A escuridão parecia abrir para que eu visse Vincent me abraçando. Uma luz forte brilhou à nossa frente, toda escuridão pareceu derreter e afastar-se para os cantos do armazém. Uma fina névoa incolor forrou o chão ficando na altura das canelas. A fonte da luz estava encoberta e confusa, mas aos poucos sua forma se solidificou.

 

Isso é… uma árvore? 

 

O tronco translúcido brilhava em azul e prata com uma textura trincada como vidro quebrado. As folhas pareciam vitrais trabalhados no mais puro dourado enquanto partículas negras e outras brilhantes sobrevoavam ao redor da árvore que tinha o mesmo tamanho que uma macieira.

 

Vince me puxou para mais perto e, mesmo com minha resistência, ele conseguiu. O calor que enchia o galpão se solidificou em uma temperatura confortável. Como isso existe? E como… Olhando para Vincent, seu olhar encontrou o meu e percebeu minha pergunta. 

 

— Ela é inofensiva — disse, afastando seu olhar do meu. — Queria que esse momento fosse único para nós… desculpa por todo o segredo.

 

Hm.

 

— O que ela é? — Foquei na árvore. 

 

Antes que pudesse iniciar sua explicação, algo que ele pareceu estar ansioso para fazer, Sammy tentou pegar uma das partículas que nos rodeava. 

 

— Mamãe, bolinha que brilha!

 

Fiquei tentada a deixá-lo no chão, mas abandonei a ideia. Focando em Vince que observava Sam com um sorriso bobo, chamei sua atenção para a explicação. Ele limpou a garganta e pareceu hesitar. 

 

— Eu não posso afirmar que sei o que ela é, mas, junto com seu pai à alguns meses, estamos…

 

— Que?!

 

— Eu…

 

— Vince! — Antes que eu pudesse continuar, Sammy se agarrou mais forte a mim e vendo o olhar de Vince entristecer, me contive. 

 

Meu pai? Ele também? E como assim meses?! Seus… Agh! Sua cara antes preocupada, agora parecia com medo até de respirar. Se controla, você também pisou na bola com a investigação e está longe do direito para julgar ele… Apenas escutar, apenas devo fazer isso agora. 

 

— Desculpa… só… fiquei preocupada. 

 

Meu pai e eu temos nossas diferenças, mas sei que ele cuidou do Vincent como família. O que me incomoda é o fato dele preferir ele ao invés de mim! Mesmo que demorasse, eu ia entender… acho. Enquanto olhava para o nada, seu abraço ao meu redor aumentou.

 

— Devia ter te falado sobre isso com você… desculpa.

 

— Tudo bem, espero que tenha se divertido. — Se é que isso é possível com aquele homem. 

 

— Foi uma experiência de aprendizado, se é que posso chamar assim. 

 

Deixei escapar uma risada e ele a acompanhou. A árvore brilhou mais intensamente, o calor que rodeava pareceu adentrar meu peito e deixar cada sensação mais leve. É como estar feliz, quase um sentimento… Essa árvore entende isso? Ela… sente isso? Vince limpou garganta e olhou para ela. 

 

— Como tinha dito, tudo que temos são especulações, mas para ficar mais fácil demos um nome. 

 

— Qual? 

 

Um sorriso bobo apareceu em seu rosto antes de falar. 

 

— Filha do paraíso.

 

O movimento involuntário das bochechas fez um sorriso nascer em meu rosto. Com certeza isso foi ideia de ambos. A árvore brilhou mais forte e a quentura em meu peito aumentou, mais partículas flutuavam ao nosso redor em uma dança de luzes.

 

Eu sei o que estou sentido, mas essa sensação parece distante. 

 

A árvore está feliz? Isso é… estranho!

 

— Filha do Paraíso… — O mesmo brilho correu pelo lugar, minha mente foi ainda mais inundada pelo calor enquanto observava em silêncio seu brilho. 

 

E também é incrível de se ver.



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