Volume 1

Capitulo 4: Sapeca!

[Sábado 10 de fevereiro de 2404, 07:04 da manhã]

 

Curioso...

 

É impressão minha ou estou pequena?

 

Movendo minha cabeça para os lados, o lugar onde estava era familiar. É a casa dos meus avós… estou sonhando? O corredor onde estava era luxuoso desde o chão, cheio de enfeites; os pisos negros tinham mosaicos roxos que combinavam com as paredes da mesma cor. 

 

Lembro desse dia, um dos poucos realmente feliz que tive nesta casa.

 

O corredor terminava em uma porta com cor escura, estava entreaberta e sons escapavam do outro lado. Aproximando-me devagar, os sons se tornavam reconhecíveis até o ponto que pude distinguir vozes conversando em seu interior. Ficando à centímetros da porta, escutei a breve conversa que aconteceu.

 

— Eu voto pelo exílio da garota, ela tem sangue impuro para fazer parte da nossa família — discursou uma voz fria.

 

— Eu voto pra você ir para o inferno! Ela é nossa família de qualquer forma! — Uma voz estrondosa retrucou.

 

Algo subiu para minha garganta, incomodava até meus pensamentos. Estão falando de mim. 

 

— O fato de que fomos obrigados a intervir antes que nosso sangue fosse ainda mais contaminado com a tolice da nossa irmã, mostra que devemos isolar a garota. — Após a voz fria falar isso, a conversação ficou indistinguível.

 

Lembrava dessa conversa sempre com dúvidas quando era mais nova. Mas agora, conheço melhor o mundo onde nasci. Meu pai é como eu, diferente, mas, por ser fruto de uma família normal e sem histórico no paranormal, meus avós e tios o julgavam inferior.

 

Eles foram incapazes de impedir o relacionamento da minha mãe com ele. Mas isso era apenas a ponta da história, tantas coisas que ainda estão escondidas nas paredes dessa memória que só pensar em teorias já causa um mal estar. 

 

Estranhamente as coisas ficaram quietas dentro da sala. As vozes que discutiam entre si se silenciaram ao som de uma voz sedosa.

 

Odeio essa parte. 

 

— O passado ficará no passado, e assim será — disse a voz sedosa. — Tragam-na aqui, quero vê-la com meus olhos. 

 

Após isso, passos pesados se aproximavam da porta. Uma pontada de desespero percorreu meu corpo infantil, mas apenas esperei um pouco afastada da porta. Ela abriu e um grande homem com um terno azul marinho estava vindo em minha direção.

 

Sua cabeça raspada lhe dava uma aparência brava pelo seu corpo avantajado. Sua barba lustrosa e olhos castanhos contrastavam um pouco com sua aparência agressiva. Mesmo quando ele ajoelhou a minha frente, parecia enorme. Eu vou ser grande assim?

 

— Olá, pequenina — disse bagunçando meu cabelo.

 

— Oi, tio Manuel — murmurei. — Eu não estava espiando. 

 

Ele soltou uma risada elegante que encheu o corredor. 

 

— Claro, que tal entramos para você conhecer seu avô? Ele está ansioso para te ver. — Ajeitou meu cabelo com um sorriso. 

 

O nó da minha garganta apertou um pouco mais. Meu avô sempre foi descrito para mim como um homem frio e insensível e houve um tempo que acreditei que as falas da minha mãe estavam erradas, mas infelizmente a realidade tende a ser decepcionante. 

 

Se eu pudesse, teria fugido agora.

 

— E se eles me acharem feia?

 

— É impossível eles te acharem feia. Se acharem, irão se ver comigo. — Suas mãos agarraram minhas bochechas e as puxaram enquanto tinha um sorriso bobo no rosto.

 

É verdade, eu sou muito fofa. Escapando das suas mãos, mostrei-lhe a língua enquanto ele se levantava. Seguindo-o até a porta, ele a abriu para mim e entrou. Respirando fundo o segui até a sala em que minha família materna estava. 

 

A sala tinha um formato redondo e uma lareira na linha da porta. As paredes tinham inúmeros símbolos roxos que levavam em direção ao teto branco com estuque em padrões estranhos. Poltronas vermelhas formavam uma roda em direção a lareira onde uma poltrona negra estava perto.

 

Manuel foi para uma das vermelhas sentando ao lado de um homem pálido e uma mulher com cabelo loiro. Minha atenção foi então para o homem sentado na poltrona negra ao lado da lareira. Aproximando-me devagar enquanto os outros três me olhavam, era estranho a falta do medo ou da vergonha.

 

Acho que sempre te vi com outros olhos.

 

O homem era idoso, mas ainda tinha um rosto jovial. Seu cabelo grisalho e bem aparado dava uma certa dúvida sobre sua idade, suas roupas comparadas com as dos demais podia ser colocado como simples. Uma camisa de botão negro com costura dourada combinava com sua calça e sapato com mesma característica.

 

A parte que mais chamava atenção eram seus olhos. Duas esferas no mais escuro tom do roxo, era quase hipnotizante olhar para eles por muito tempo. A expressão do senhor se transformou em um olhar avaliativo antes que fosse coberto por frieza e depois um sorriso. 

 

— Bem vinda, Glória. — Sua voz parecia um eco distante.

 

Um som agudo correu pela sala e em minha cabeça. Meu avô se desfez como tinta enquanto aos poucos alguma coisa pesada se manifestava em meu peito. Na beirada da consciência, o som do despertador a meu lado fazia seu irritante trabalho enquanto uma pequena figura me escalava.

 

Cabelo ruivo enegrecido apareceu primeiro em minha visão. Após isso, dois olhos com cores distintas olhavam para os meus com curiosidade enquanto uma mão pequena cutucava minha bochecha. Seu sapeca! Virando de lado na cama, prendi o pequeno curioso em um abraço, ele tentou fugir, mas foi ineficaz.

 

— Hora de acordar, mamãe! — reclamou se remexendo em meu abraço.

 

— Deixa a mamãe dormir mais um pouquinho, Sammy.

 

Samuel escapou do meu abraço e sacudiu meu corpo. Seu monstrinho. Sentando na cama, Sammy foi rápido para deitar em meu colo e fez um biquinho zangado. Acariciando seu cabelo, seu biquinho se tornou um sorriso satisfeito enquanto esfregava o rosto em minha barriga. 

 

Meu bobinho.

 

Seu pijama azul marinho realçava seu cabelo ruivo e seu rosto com poucas sardas o deixava ainda mais fofo! Mas os olhos sempre roubavam minha atenção, o esquerdo era verde musgo e o outro era um tom ainda mais escuro do que o roxo do meu avô.

 

Será um lindo príncipe, só meu! 

 

Acordar com esse monstrinho é algo que vai acontecer mais vezes quando concluir o serviço. Ver seus olhinhos com cores diferentes toda manhã, para mim será o suficiente. Saindo da cama, fui para o banheiro com Samuel em meu encalço. Na hora do banho houve resistência do meu pequeno para tirar a roupa.

 

Já quer começar a tomar banho sem a mamãe, hm.

 

Saindo do banheiro, Sammy correu pelo corredor até o escritório do pai. Espere a mamãe! Passando por um espelho, percebi que estava sorrindo sem nem mesmo notar. Essa sensação é estranha, mas também é muito boa… Só queria entender por que sonhei com algo tão real.

 

Dando dois toques na porta, entrei para ver Samuel no colo do seu pai. O escritório do Vincent era arrumado até o último detalhe, as prateleiras de madeira guardavam livros sobre medicina e demais coisas do gênero. Sua escrivaninha tinha seu computador e diversos papéis com suas anotações. 

 

Seu cabelo ruivo não era escurecido como o do Samuel, mas ainda assim era lindo. Seu físico atlético era bem… delicado. Seus olhos verdes musgo brilhavam levemente por trás dos óculos que usava. Ao me ver, abriu um sorriso tímido e Sammy mostrou a língua. 

 

Sapeca!

 

— Desculpe pelo Sam, ele fugiu quando eu estava distraído — disse Vincent. 

 

— Tudo bem, eu gostei de ser acordada pelo meu principezinho. 

 

Vincent colocou Samuel no chão e ambos andaram até mim. Sammy agarrou-se à minha perna enquanto Vincent dava um beijo em minha bochecha. Contendo o sorriso que queria sair, olhei ao redor para evitar seus olhos. Que droga, se controla coração!

 

— Ninguém merece ser acordado por um monstrinho rancoroso. — Ajeitou meu cabelo. — Podemos conversar depois do almoço? Queria falar sobre algo com você.

 

— Sim… claro. 

 

Indo para cozinha, os pratos já estavam dispostos na mesa. Sempre preparado. Vincent sentou à minha frente na mesa quadrada e Sammy estava ao nosso alcance na outra extremidade do quadrado. Observei em silêncio enquanto ambos comiam e Vince fazia caretas para Sam.

 

Pensando mais profundamente neste momento, pude avaliar direito o risco. Fui impulsiva ao aceitar a investigação da entidade, mas isso vai poupar um tempo precioso… Vou conseguir ficar mais em casa e também estar mais presente para Samuel quando a escola começar no ano que vem. 

 

Só preciso manter distância da criatura enquanto estiver no rastro dela. Preciso aumentar a segurança da casa… talvez meu pai possa ajudar com uma barreira de proteção melhor. Meu avô? Prefiro que fique longe do meu filho com suas ideias puristas e crenças idiotas. 

 

O canalha nem mesmo parabenizou meu casamento.

 

Em meu torpor, dobrei o garfo em minha mão enquanto estava desatenta. Vincent foi rápido em distrair Samuel para que eu pudesse esconder o talher em minha manga. Se controle, idiota! Foca no agora. Com um suspiro, limpei a mente e aproveitei o resto do almoço.

                             

O que posso fazer hoje? Hm…

 

Sentada no sofá da sala, Samuel cochilava em meu colo. Talvez possa levá-lo para passear, construir memórias felizes com ele. Acariciando seu cabelo, encolheu-se como um bebê e resmungava baixinho. O tempo está passando muito rápido, vai fazer quatro aninhos já!

 

Vincent sentou ao meu lado e me acolheu em um abraço. Sua mão livre acariciava Sam, desenhando círculos com seus dedos nos fios lisos do dorminhoco. Nossos olhares se encontraram e suas bochechas coraram levemente. Um beijo? Isso!

 

— Você tem alguns minutos antes de cair no sono? — sussurrou com um sorriso.

 

— Sim. — Gostaria de mais um beijo também!

 

Seu sorriso inocente se tornou uma expressão preocupada por alguns segundos. 

 

— Eu encontrei algo interessante enquanto estava fazendo uma pesquisa, queria… te mostrar — cochichou com o olhar longe do meu.

 

— E por isso estava hesitante? — Arqueei uma sobrancelha. 

 

Ainda que desconhecesse o assunto, não pude deixar de notar a seriedade que o ar tomou, principalmente quando o olhar de Vincent parou sobre o meu, um brilho corajoso, aquele pelo qual me apaixonei há tantos anos.

 

— É algo a ver com seu trabalho. 

 

Minha barriga gelou e tentei formar uma frase, mas sua mão cobriu minha boca. Seus olhos sinalizaram para Samuel dormindo em meu colo, seu sorriso bobo aumentou e lhe dei um olhar azedo.

 

Você planejou isso! Seu ardiloso idiota!

 

Respira. 

 

O frio em minha barriga estagnou em uma forma desconfortável. Primeiro vou ouvir, depois posso exaltar minha preocupação. Vincent sabe bem os riscos que a sociedade oculta exerce sobre nós, só preciso escutar o que ele quer falar. Talvez seja só uma coisa… simples.

 

Por mais difícil que seja encontrar algo assim. 

 

— Que tipo de coisa você encontrou? — Seja simples!

 

— É difícil de explicar… Só preciso que você esteja com a mente aberta. 

 

— Vinci! Isso pode ser perigoso e… — Parei momentaneamente percebendo seu olhar entristecido. 

 

O conflito entre continuar e aceitar a ideia fez o gelo desaparecer. Ser uma mensageira era apenas para protegê-los, uma ideia conflituosa já que sempre sou exposta a um mar com perigos muito maiores que o normal. Mas ainda assim, ser parte da ordem dá acesso a uma gama de conhecimentos úteis e privilégios. 

 

Estes que posso usar para proteger minha família.

 

Eu sei dos riscos, sei também que há outras formas de protegê-los. Mas seriam tão eficazes? Ele nunca concordou com a ideia, mas sempre esteve aqui para mim… preciso retribuir esse carinho sendo mais que uma figura ausente superprotetora. Soltando um suspiro longo, Vinci escorou a cabeça em meu ombro. 

 

— Eu sei que estou pedindo demais, mas apenas confie em mim.

 

Nossas mãos se entrelaçaram acariciando Samuel.

 

— Eu confio, Vincent. — Só estou com medo. 

 

No silêncio, Vincent dormia junto a Samuel. O que será isso? Estou correndo riscos desnecessários, primeiro a investigação e agora isso. Contar com a sorte e esperar o melhor cenário é insuficiente para cuidar daquilo que amo, nunca vai ser suficiente. Mas vou dar meu melhor.

 

Colocando minha cabeça sobre a do Vincent, deixei o sono se aproximar. Marcelo está monitorando sinais desde ontem, espero que nada caia no radar até amanhã. Quero passear no parque ou ir ao bosque da cidade… É, só preciso me preocupar com isso, por enquanto.

 

Espero que, ao menos, dure... 

 

Quanto a essa descoberta do Vincent, só preciso confiar nele. Obviamente vou estar preparada caso as coisas se compliquem, mas devo isso à ele, mais do que confiança, também devo minha companhia ou até mais. Não tenho sido uma mãe ou companheira exemplar… mas nunca vou deixar de tentar. 

 

Venha logo meu querido sono, que o sonho seja bom dessa vez. 



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