Volume 1
Capítulo 26: Azar na sorte
Houve mais uma pausa para que os campos fossem devidamente restaurados — o que significava, de forma cômica, que todas as outras turmas tiveram o mesmo problema.
Estava avisado que executariam uma outra seleção de turmas, colocando os alunos mais hábeis bem longe dos que tinham mais dificuldades. Aproveitando-se dos poucos minutos que restavam, Cassandra molhava as mãos e as passava no rosto enquanto recomendava Bruna fazer o mesmo.
Disse-lhe que a água era um antídoto natural das sequelas do veneno e, segundo ela, impediria que Bruna acabasse com sintomas de resfriado. Bruna achou que não precisava lhe dizer que odiava água, mas em vez de dizer, fez um esforço pela gentileza de Cassandra em lhe revelar seu ponto fraco.
— Acho que depois desse espetáculo eles não irão nos deixar livres novamente. Com certeza aquele casca grossa está falando mal de nós.
— Será que vão nos dispensar?
— Nah. A gente é quase uma turma iniciante. — enxugou-se com sua própria toalha. Agora Bruna sentiu falta daquela bolsa que Lucas a obrigou a fazer. — Provavelmente nos mandem mais educação física.
— Ou até confiem em nos deixar tentar mais uma vez. Sabe, eu queria ter lutado normalmente...
— Como se nós fôssemos normais — gargalhou. — Corta essa, eu iria te tornar uma moribunda se a confusão não houvesse acabado. E você luta bem demais pra morrer assim.
— Falou a pessoa que quase quebrou minha cabeça umas vinte vezes sem nem usar os tais truquezinhos.
Olhando de perto, o corte de quando o cristal raspou em seu braço era profundo, mas ela passava a toalha úmida sobre ele como se fosse um mero arranhão. Parecia uma garota resistente, seu porte físico era invejável. Não conseguiu evitar a auto comparação.
— Ah, logo no primeiro dia já estraguei meu uniforme... — brincou ela sem reparar que Bruna a media de cima a baixo. — Espero que eu não leve uma bronca por isso.
— Acho que eles não foram feitos pra servir de armadura. Não parece ser problema, a menos que isso quebre a resistência dele. — Quando a ovelha se abaixou para pegar seus próprios insumos de curativo, Bruna se envergonhou de onde seus olhos foram parar e imediatamente jogou o rosto para o outro lado. — O q-que eu não acho que vá acontecer, até porque ele não se dissolveu... Ainda.
Temeu por um instante que seus pensamentos atrapalhassem seu desempenho na próxima etapa, já que a garota acertou o que se sucederia.
Era uma etapa totalmente física, sem habilidades — Cassandra devia conhecer bem sobre esses assuntos. Funcionaria de forma eliminatória: precisariam atravessar um percurso complexo lotado de obstáculos e em caso de falha ou interrupção, aquele seria o ponto marcado como final.
Se considerar que sua colega foi capaz de saltar numa altura de quase sete metros para alcançá-la na etapa anterior, ela não teria quaisquer problemas com os muros e barreiras do percurso. Suas pernas fortes a levariam para bem longe da raposa.
No entanto, também havia obstáculos que necessitavam das mãos, que certamente Bruna se sairia melhor. Por fim, o último deles era uma alta pedreira vertical que todos deveriam escalar.
Bruna rapidamente deduziu que determinadas marcas no paredão eram um grotesco divisor de águas para os níveis da academia. Não fazia ideia se seria capaz de subi-lo porque só escalara as árvores gordas do orfanato, que por natureza eram circulares e nada deformadas como aquelas pedras.
A ideia de ficar com uma classe não condizente com sua real habilidade física a assombrava e não sabia se podia contar com a sorte numa pedreira daquele tamanho.
— O segredo é saltar em uma e agarrar nas próximas pedras. — murmurou Cassandra pouco antes da prova começar.
— Essa pedra não escorrega?
— Acredite, em Xiaghe é cheio de bodes peregrinos, os índios das montanhas. Qualquer equino que se preze deve ter essa destreza se quiser viver longe dos cemitérios. Os caras subiam qualquer coisa, é só não depender plenamente da firmeza de seus pés. Apenas um toque é necessário.
Cassandra, xiagha. Não sabia por que se surpreendia se a maioria das crianças do orfanato eram cabritos e ovelhas. Deveria ter raciocinado que ela era nativa daquele lugar e que vivia em Oliphia porque era enerion, sendo isso algo pra se enojar em Xiaghe.
Sentiu vontade de questionar seu passado, mas agora não era um bom momento. Todos estavam se preparando para disparar quando ouvissem o apito.
Bruna agachou-se ao lado dela, formando prontidão. Se pegou rezando para que Cassandra fosse mesmo a criatura habilidosa que parecia ser, assim ela chegaria primeiro ao paredão e Bruna poderia tentar copiar sua maneira de escalar.
— Atentos! — vociferou o chimpanzé para que todos ouvissem. Quando logo atrás dele uma imagem sombria veio caminhando, todos abaixaram a cabeça, aflitos. — Se depois de largar fizer menção de parar, eliminado. Se escorregar, eliminado. Se trapacear, eliminado. Duas tentativas, e diante de duas falhas, a melhor será considerada. Ou a pior.
Os olhos perfurantes de Michelle varreram o campo. Bruna ousou olhá-la por orgulho, focada em mostrar toda sua destreza à especialista.
Certamente, com uma posse grandiosa como aquela arena, Michelle fosse de alta patente, e todos já deviam ter conhecimento da informação de que ela lecionava níveis avançados. Portanto, era uma honra e um problema tê-la ali para avaliar.
— Duas chances de falhar — continuou a felina em seu mesmo tom monótono. — Portanto, duas chances que não devem desperdiçar. Será a partir delas que descobriremos em que suas mãos escorregam.
— Só espero que minhas mãos realmente não escorreguem... — Cassandra bufou baixinho, apenas para Bruna. — Sinto que essa vira-lata vai entregar minha alma pro inferno...
— Ela só está aqui pra nos assistir — respondeu Bruna num murmúrio, logo depois de ver Michelle se dirigir a um piso superior, bem próximo ao topo do paredão. — Não acho que esse teste valha nossas peles.
A gata negra continuava:
— A maior distância percorrida e o melhor desempenho servem para posicioná-los onde é devido nas classes de ensino da Academia.
— Vale nossas peles, fodeu. — Cassandra sussurrou, desesperada.
— … No entanto, esta não é nenhuma competição. Nenhum de vocês devem se mostrar superiores aos seus companheiros, tampouco poderão se afetar por provocações equivocadas. Todos nós temos o direito de falhar e aprender. Pois esse é o caminho da perfeita dominação. Sua perseverança depende de sua dignidade, e vice-versa. E todos aqui são dignos, estou certa?
Todos responderam afirmativamente, como um brado de um exército prestes a lutar. E alguém que não era a ovelha foi o único a sussurrar, dirigindo-se à raposa:
— Acho que nem todos.
A voz grave finalizou-se com um riso abafado, quase nulo pelo grito do apito e os passos apressados de todos que dispararam na pista.
Bruna permaneceu ajoelhada, em choque, remoendo o maléfico dizer que não parava de ricochetear nas paredes do crânio.
Mas afinal, não podia ficar ali pra sempre: só disparou muitos segundos depois, furiosa, sem perceber que o ar vibrava de calor como um rastro atrás de si.
Cassandra a espiava distante, perplexa. “Mal jeito? Não é possível que ela hesitou.” Não poderia esperar muito mais, o tempo passava e dezenas de jovens disparando em sua frente dificultavam ainda mais o percurso por atrapalharem o caminho e a visão.
A preocupação com a nova colega quase a fez escorregar em alguns saltos. Resistia fortemente ao impulso de olhar para trás, embora sua motivação estivesse decaindo. Não fazia sentido chegar a um nível que ela não estivesse também, gostava de lutar com a menina.
No entanto, quanto mais achava tê-la perdido, Bruna a ultrapassou como se voasse, mais veloz que o vento. E com um riso indignado esticando seus lábios, a ovelha também disparou.
O murmúrio ainda ecoava, a raposa nem percebia que estava superaquecendo. Os nós dos dedos doíam de tão apertados e os músculos das pernas pulsavam com a corrida exagerada, além do gás excessivo que impulsionava sua velocidade.
“Dignidade era algo que se devesse aparentar?”
Como previsto, os percursos que dependiam da plena força dos braços atrasaram a ovelha, que desta vez foi quem ficou para trás. Cassandra usou disso para se orientar através da agilidade da raposa.
Mesmo encarando como uma ajuda, via alguma diferença em Bruna. Ela parecia voraz e irritada com algo, não plenamente consciente. O próximo percurso as faria ganhar ainda mais velocidade, eram tocos finos espaçados entre si, estrategicamente posicionados.
Não duvidava que a pequena menina teria uma suprema agilidade naquilo e que de fato ficaria para trás. Mas esse sequer era o real problema: minutos antes da largada, Bruna estava incerta do paredão. Como ela poderia subir se chegasse antes de Cassandra? Parar para planejar a subida a reprovaria.
Bruna seguia odiosamente, atordoada com o murmúrio sem ver muito mais além do topo do percurso, seu objetivo. Ultrapassaria qualquer coisa em seu caminho para chegar lá, até mesmo o idiota que disse aquilo.
Porém, voltou a si quando se viu diante da grandeza de pedras. Reduzindo sua corrida ao que se aproximava, acabou por chamar a atenção de Phaldengart, que a mirava com os olhos sedento em reprová-la para uma classe digna.
Foi então que um assobio chamou sua atenção e a lembrou de correr. “Apenas um toque é necessário.” Se rendendo ao acaso, Bruna voltou a acelerar até, de fato, chegar ao sopé do paredão e dar seu primeiro salto.
Não sabia o que a aguardava caso chegasse ao topo, mas sabia que se despencasse, ficaria nas turmas intermediárias, sendo privada de combates livres — privada de lutar como Cassandra lutava.
Quando esticou o braço para a pedra ao seu alcance, uma disparada velocista da ovelha pareceu um anjo em meio ao caos. Assistindo o que Cassandra fez em seguida, começou a copiá-la: agarrou a pedra, se lançou para cima até alcançar a próxima.
Parecia mais uma dança que, de fato, uma escalada, e sequer acreditava em divindades para explicar como a teoria estava funcionando. Só podia ser sorte.
Conseguia escutar os baques satisfatórios dos cascos dela tateando sobre as pedras: uma sintonia leve e majestosa que quase a fez parar pra assistir, enfeitiçada. Mas estava se aproximando do topo mais rápido do que gostaria junto de sua amiga.
Era simples, ela tinha razão; um toque com a ponta do pé e se lançava para cima, outro empurrão com as mãos e repetia o processo. Chegou a pensar que estava voando, mas sabia que não tinha essa capacidade.
Cassandra chegou ao topo pouco tempo antes de Bruna, se firmando lá acima, e quando a raposa esticou o braço para agarrar a última pedra — distraída com a certeza da vitória —, um violento chute no pavimento levantou poeira para seus olhos, fez sua mão hesitar e escorregar.
Sem conseguir agarrar outro ponto que tornasse discreta a falha, Bruna começou a cair. Quando pôde abrir os olhos, vislumbrou na turbidez o porte de um grande felino sorrindo, com sua bota posicionada na beira do paredão.
Seu riso ecoou mais uma vez enquanto a assistia de braços cruzados despencar do que parecia ser um abismo sem fim. Bruna não conseguiu distinguir bem seu rosto, as pedras que havia acabado de tocar se afastaram dela mais rápido do que podia perceber.
O baque que rompeu sua consciência não foi rápido o bastante para a isentar da imensa dor em seu braço e ombro, que a consumiu pouco antes da escuridão total.