Volume 1
Capítulo 25: Primeiro contato
Os dias que passou com Cowalski foram casuais e confortáveis. Ele evitava tocar no vampirismo da menina — literalmente — e dava-lhe muitos conselhos bons, também incentivando-a a desabafar seus problemas caso eles a atordoassem.
O processo da gatinha realmente foi longo na Lifanos, nada que já não fosse esperado. Muitas pessoas avaliaram sua pele e a opinião de vários médicos foi solicitada.
Ter visto Bruna lá tinha sido a única coisa boa do dia, já que ela realmente parecia uma garota legal, além do que os sentimentos de Leonardo lhe faziam ver. Sentiu que a deixou nervosa e por um minuto isso a perturbou, mas sabia que a veria de novo em breve e poderia consertar as coisas.
Por falar no irmão, desde que conhecera o persa cinzento Veronicca não trocava muitas palavras com ele. Léo estava se dedicando aos estudos para a candidatura a Lifanos, já que não era comprovadamente enerion para ter algum privilégio nisso, coisa que Veronicca considerava errôneo.
“Não é como se ter um par de asas nas costas fosse coisa normal para mamíferos.”
As únicas coisas que o professor e o jovem compartilhavam era o conhecimento, pois Cowalski era professor e isso parecia útil a Leonardo. Sabia que ele não gostava do velho, assim como não gostava de ninguém que ousasse invadir seu espaço pessoal
Léo sabia que Veronicca devia estar “absorvendo”, mesmo que por acidente, o conhecimento do persa, coisa que a faria ir mais longe que ele caso competissem em uma prova teórica.
Não que ela precisasse disso para ingressar na academia, mas o fato ainda o intrigava. Não lhe parecia justo alguém que sequer tinha interesse nisso tivesse mais oportunidade que ele. Mesmo assim, relevava por ser apenas sua irmã, apenas uma garota doente que precisava daquilo.
No fim, a carta da Lifanos não chegou para ele este ano e teria de se contentar com um colégio normal mais uma vez. Ver a irmã mais saudável, mesmo que apenas por aparência, o fazia ignorar a frustração e apenas se dedicar mais.
— As ruas daqui são bonitas, não acha?
Veronicca olhou abruptamente para trás, assustada. Estava debruçada na janela da biblioteca de Andreas, observando o movimento da rua e os grupos de amigos usando uniformes vermelhos ou verdes.
Seu irmão devia estar saindo de casa naquele exato momento, vestindo as mesmas roupas e indo na mesma direção, caso tivesse sido aprovado.
— Não esperava que fosse te achar aqui — ele continuou.
— Considerando que o amante de livros é você. — A menina completou, sorrindo para disfarçar a culpa. Leonardo devia estar péssimo consigo mesmo, ela podia sentir no modo como ele encarava os jovens na rua.
— É, parece que minha chance se foi. — Debruçou-se no sofá, olhando a janela junto dela. — E pensar que eu estaria usando aquelas roupas. Ah, será que eu ficaria bonito nelas?
Leonardo era magro e alto, praticamente um caniço com braços. Veronicca sempre achou seu irmão bonito, sua cara de leão depenado era a coisa mais estilosa do mundo. Com certeza ficaria atraente com aquele macacão evidenciando seus ombros adolescentes em desenvolvimento.
— Terrível — disse mesmo assim para zombá-lo.
— Argh, aquela prova era impossível. Quem me dera saber as respostas. Às vezes queria ter seu dom.
— Talvez aquela seja a maior escola da região. E a melhor. Dá pra ver que você queria ir pra lá.
— Mas sabe que nem ligo? — Seus olhos esverdearam sob aquela afirmação, mas Veronicca decidiu não avisar. — Eu sempre estudei em escolas comuns, não tem problema se eu passar mais um ano nelas.
— Eu sei que você queria. Mas o que eu não entendo é o que um magricela desengonçado como você iria querer num exército.
— Achei que soubesse. Aquela escola não é só um monte de armas e soldados. Sr. Cowalski me explicou que é possível se formar em vários ofícios da nobreza, como escrivão ou até conselheiro.
— Mas, bem, você não necessariamente tem de estudar lá, existem outras escolas que formam pessoas desses ofícios.
O sorriso dele sumiu.
— Eu sei. Mas é que só lá eu poderia ser um mensageiro escrivão, a profissão que nem existe. Só eles entenderiam o que desejo.
Veronicca deitou o rosto no parapeito, fechando os olhos.
— Não é impossível se você tentar, Léo. Nenhuma das pessoas que descobriu seu “defeito” se assustou com ele.
— É quase óbvio que enojam. Eu já sou feio e ainda nasci com penas nas costas.
A voz envelhecida de Andreas surgiu na conversa, chamando a atenção de ambos:
— Se alguém considera uma enfermidade como defeito, o único defeituoso é este ignorante.
— Ah. Olá, Andreas. — Léo cumprimentou-o secamente. — Eu não me lembro de ter pedido seus conselhos.
Diante da insolência, o velho apenas riu baixo.
— Bom, garoto, peço desculpas por isso. Sei que desejava muito a Lifanos. Não está dentro do meu escopo nem de médico nem de professor te colocar lá dentro, afinal sua deformação pode ser ocultada e não interfere na sua saúde ou de terceiros.
O gato o fitava como uma criança emburrada, mas não parecia negar o que ele dizia.
— Mas isso não significa que você não possa lidar com esse par de asas sozinho. Há grandes parques e florestas por aqui. Não é como se você fosse enferrujar. — Andreas deu as costas, se retirando do recinto com um último dizer. — A menos que você queira que elas enferrujem.
Logo quando avistou a primeira bandeira, Bruna vibrou de empolgação. A academia estava claramente lotada, com inúmeros pontinhos verdes circulando pelas calçadas e dentro do pátio frontal, todos aqueles que vieram para o mesmo teste de Bruna. “Quase todos enerions.” — pensou. — “Quase todos como eu.”
Lucas havia mandado que Bruna levasse roupas comuns, embora não fosse necessário — contrariou-o fingindo esquecer onde havia guardado a bolsa, sendo que a escondera propositalmente só para não ter de levar.
Depois de marcar sua presença assinando uma imensa lista na secretaria, foi encaminhada para uma área específica, provavelmente a turma na qual dividiria o teste.
Ao chegar, seu sangue ferveu de empolgação. Para uma pessoa que há pouco achava a si mesma uma raridade, era absurdo ver tantos deles tão de perto. Quase nem pareciam reais.
Muitos deles acabaram de se conhecer e mostravam suas habilidades, brincando com o que eram capazes diante das novas amizades. Havia um garoto desenhando teias com a ponta dos dedos, dividindo uma cama de gato com seu amigo.
Outro mais distante criava pequenas explosões coloridas e brilhantes na palma das mãos. Uma garota solitária soltava fumaça negra pelas narinas conforme respirava — Bruna ponderou que ela não parecia ter opção de esconder a condição.
Um garotinho gracioso brincava com um prisma vermelho em seus dedos, fazendo-o girar e reluzir fulgores nas três garotas à sua frente, as surpreendendo e arrancando seus suspiros.
Bruna riu baixinho, orgulhosa do que via mesmo sem muito tempo para apreciar. Eles pareciam tão felizes em ser eles mesmos que poderia se esquecer de todas as vezes que detestou o próprio calor.
As turmas foram divididas em cerca de quarenta alunos, separando os veteranos dos novatos para que não houvesse repetições. Quando todos foram guiados até a respectiva área de treino, mandaram que se enfileirassem como um batalhão.
Bruna teve o azar ou sorte de ficar bem ao lado da ovelha fumegante e constantemente sentia cheiro de fuligem. Olhando de perto, era possível perceber que ela há muito desistira de se banhar. Sua lã já fora branca como a neve, encardindo-se de um cinza com a névoa preta que era obrigada a expirar.
Estavam aguardando o tutor, então todos tinham uma última chance de papear com seus colegas. À sua esquerda, dois melhores amigos não calavam a boca. Bruna sentiu-se idosa ao lembrar-se que já fora exatamente igual a eles. Olhou-os de relance, recordando brevemente a imagem de Leonardo e Lukas.
Um tempo depois, o silêncio se fez quando o tutor pisou o pé no campo de terra batida. Um chimpanzé calvo e baixo, com um olhar carrancudo que já denunciava seu comportamento.
Apresentou-se como Nicholas Phaldengart, profissional de Teoria — provavelmente pelo seu jeito torto e meio bambo de andar não tinha muito a ver com a prática.
Mesmo assim, ele caminhava pela extensa fila de alunos como se tivesse a autoridade de um general, além de agir como se odiasse a todos buscando palavras ofensivas para impor sua superioridade. Chegava até a ser cômico. Rezou para não ter aulas com esse cara.
Após seu espetáculo mandão de meter medo, da direita pra esquerda, Phaldengart começou a chamar cada um dos alunos para que mostrassem suas habilidades.
Alguns disseram necessitar de certas condições para o feito, fato que novamente trouxe a lembrança da gêmea Michelle à mente de Bruna, dado que ela só poderia mostrar alguma habilidade se recebesse outra contra ela. Antes que mais lembranças viessem, evaporou com a gata para evitar distrações.
Como o chimpanzé havia começado pela direita, a ovelha fumegante logo teve sua vez. Bruna estava ansiosa para ver o que ela seria capaz de fazer. Ela optou por apenas explicar, quebrando as expectativas da raposa:
— Sou capaz de produzir uma neblina tóxica que aos poucos impossibilita os sentidos. Qualquer um que apenas tenha contato ficará com sequelas respiratórias ou com a pele irritada, podendo ter graves problemas... Depois.
Sua voz era tão rouca que parecia ecoar na própria garganta. Ponderou que seu dom era tão desgraçado que ela mesma sofria as causas do próprio veneno.
Bruna rezou que a fumaça que saía da boca dela enquanto falava não fosse contagiosa nem tivesse a mesma capacidade da fumaça proposital.
O chimpanzé mandou-a recuar — satisfeito ou provavelmente temeroso — e deu um passo pra ficar diante da raposa vermelha.
— Você.
Bruna, que tentara parecer o mais concentrada possível, quase surtou de aflição quando um desconcerto a fez se esquecer do que fazer. “Eu deveria ter planejado algo enquanto eles falavam!”
Hesitante, deu um passo à frente. Não sabia o que falar ou se devia falar. No fim, era a menos concentrada de todos ali e agora passaria vergonha improvisando.
Quando abriu a boca para falar, novamente a imagem de Michelle lhe invadiu. Por alguma razão, desta vez não conseguiu ignorá-la.
— Eu crio, domino e controlo o fogo, também sou imune a ele.
O chimpanzé arregalou os olhos no que até parecia espanto, mas depois levantou as sobrancelhas como se a desprezasse.
— Você quis dizer dobra, mocinha.
Dobrar o fogo? Já ouvira falar, mas não sabia se era um sinônimo de controlar. E mesmo que soubesse, a especialista do mais alto escalão lhe dissera que criava do nada, aquele velhote raquítico não deveria erguer o tom daquele jeito.
— Não — corrigiu-o. — Eu crio.
Com certeza devia estar soando a menina mais esnobe da turma e isso era ridículo de se imaginar, no entanto, não podia de maneira alguma perder a postura ali. Ele não tinha o direito de contradizê-la. Se tinha, deveria ao menos fazer do jeito certo.
— Ah, se acha esperta? Então vamos. — Phaldengart cruzou os braços, dando dois passos para trás com ar de deboche. — Se exiba, já que quer tanto.
Aquilo a fez se enojar. Aquela nem de longe era sua intenção.
— Imagino que não seja necessário. Todos aqui explicaram suas habilidades, inclusive esta moça disse que praticamente criava sua névoa. Então por que eu também não poderia criar minhas chamas?
— Porque fogo é um dos elementos da natureza. — A jovem respondeu como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. E era, pra todos eles ali, menos pra Bruna. — Não se cria a natureza, se dobra.
O chimpanzé a agraciou com um aceno e voltou seu rosto enrugado à Bruna.
— Você deveria saber disto já que dobra o fogo. — Passou adiante, nem se dignando a mandá-la recuar e já passando para o próximo aluno.
Bruna ouviu risos baixos pelos cantos da mente, sem saber diferenciar se eram reais ou sua própria vergonha. Brevemente, quis que a imagem assustadora de Michelle causasse um infarto nele, ao mesmo tempo que a amaldiçoou por tê-la feito pensar que poderia sair dizendo coisas como aquelas sobre os próprios dons, que sequer entendia.
Finalizando-se a apresentação, a parte interessante começava a deixar a turma eufórica: a prática.
Foram separados em oito grupos de cinco pessoas e juntos teriam que destruir diversos alvos espalhados pelo campo. Soava simples, mas havia alvos de tantos tamanhos e formas que era mais fácil achar uma agulha no palheiro do que identificar um deles.
Quando se explodia um, já havia outro flutuando pelo céu e quando se estraçalhava este, já havia outros cinco espalhados pelo campo novamente. Seria exaustivo concluir aquela tarefa sozinho.
Bruna ficara no mesmo grupo da ovelha, no que chegou a pensar que ela não teria muito o que fazer graças à maneira que seus poderes trabalhavam. Porém, descobriu-se redondamente enganada.
Com um espirro dela quando todos vacilavam, todos os alvos — de madeira ou metal — se derreteram em segundos, ao que ela destruiu os restantes com chutes violentos. Foi uma cena tensa de se assistir, ainda mais vendo tão de perto. Ponderou sobre a forma na qual ela deve ter descoberto o dom e a ideia lhe deu calafrios.
No fim de tudo, Bruna esperou que todos houvessem reparado que não puxava suas chamas de fogueiras existentes. Quando o último grupo entrou, um garoto chamou a atenção da raposa ao encará-la fixamente ao posicionar-se no campo junto de seu grupo.
Não era nenhum moleque tímido flertando, o felino ostentava um olhar esnobe e pretensioso. “Deve ter sido um dos que riu”, pensou, considerando que sorria com desdém ao fitá-la. A esse treino, não assistiria.
A próxima etapa seria um aquecimento coletivo, rápido e constante. Havia algumas corridas de obstáculos, um desafio feito para cansá-los. Habituada ao que Vanessa a mandava fazer, se saiu bem até o último instante, exceto por uma série de flexões que a derrubou.
Prostrada, esperando o corpo relaxar, o cheiro de fuligem novamente invadiu suas narinas. Também exausta, a ovelha estava diante dela e esboçou um riso quando notou isso. Intimidada, ergueu-se logo e deu as costas para ela, irritada com o deboche.
No aquecimento, o felino que a encarou saiu vitorioso, parecia ter energia para mais outra leva. Para seu azar, a atividade não servia para competir desempenho e o tutor seguia anotando muitas coisas nas pranchetas.
Enfim, receberam vinte minutos de descanso para que pudessem reconhecer o ar fresco. Logo depois de se afogar no bebedouro, Bruna vislumbrou o oposto de fulgor passar no fim do corredor; uma das gêmeas sombrias vagando pelos locais nos quais os alunos não deviam ir.
Teve o impulso de correr até lá, já que sentia uma falta inexplicável de suas palavras. Ser menosprezada por aquele papel amassado em forma de macaco lhe deixou no máximo inquieta, e não pôde negar que desejou Michelle ali para contradizê-lo.
Implorou para que seus vinte minutos não estivessem acabando quando virou o corredor atrás dela. Foi surpreendida pela sua silhueta maligna aguardando-a como se já soubesse que viria.
— Srta. Michelle. — disse, aliviada em ver os olhos azuis. Não chegou a pensar que poderia ser Evellyn em vez dela e se agraciou pela sorte.
— Sua visita me agrada, raposa.
Bruna suspirou cabisbaixa como se falasse com uma confidente, apesar da doçura inexpressiva da felina.
— Me desculpe por questionar de novo, mas criar um elemento natural por acaso é errado?
Ela arregalou os olhos como se fosse a última pergunta que aguardasse ouvir dela.
— Presumo que não, em íntegra. No entanto, por conta de um instinto religioso, até outros enerions podem enxergar a criação como algo errado, exclusivo apenas a deus, pois a natureza é livre e meros mortais têm apenas a capacidade de manuseá-la.
— Você me fez parecer especial, mesmo que eu não tenha gostado muito. Porém hoje acabo de descobrir que apenas dizer criar a natureza é um ato equivocado ou até... Desrespeitoso.
— Não se incomode com isso. Está relacionado ao passado e não é minha função te fazer entender. Quanto a Phaldengart, ele é um idiota mesmo, se acostume. — Bruna suspeitou que aquela mísera contração de bochecha deveria ser um sorriso. — Volte ao seu posto antes que sofra as consequências.
A raposa agradeceu-a num suspiro decepcionado, tornando a caminhar pro seu campo. Apesar do motivo ser algo tão tosco como religião, pelo menos entender Phaldengart a fez se sentir minimamente compreendida.
Desta vez, o chimpanzé iria avaliá-los pessoalmente durante um combate corpo-a-corpo e outro com suas habilidades.
Seriam lutas curtas que ocorreriam mutuamente: os pares combateriam entre si livremente, tendo de se preocupar apenas com as sequelas da luta ao lado e com os golpes de sua luta.
Seria fácil para Bruna se os outros realmente fossem habilidosos como pareciam não ser. Estava acostumada com a destreza de Vanessa, que devia pesar o dobro de seu peso. Estava em vantagem contra a maioria dali, apenas esperava que o chimpanzé não decidisse colocá-la com o tigrinho metidinho ou...
— Cassandra Ébano.
A coincidência a fez engasgar. Era a ovelha, aquela que seria capaz de derretê-la em cinco segundos se quisesse, isso se não preferisse deixá-la febril pelas próximas três semanas.
O primeiro combate não permitia dons, então a ovelha não podia fazer mal algum à saúde de Bruna — a menos que respirar perto dela já fosse um risco. Portanto, afastou a aflição, confiaria plenamente nos ensinamentos de Vanessa; sabia que aquela mulher era a mais sábia nesse quesito. Buscando algum orgulho no que estaria prestes a executar, sorriu quando se pôs diante da oponente.
— Raposa contra ovelha. — A jovem ressaltou enquanto assumia posição de combate. — Uma bela disputa, não acha, deusa da criação?
— Deixa que eu dobro o fogo enquanto você dobra sua língua.
A ousadia lhe forneceu um riso espantado de volta. Enquanto aguardavam o som do apito, Bruna a analisava bem. Perderia a luta caso ela acertasse apenas um chute, em vista da força que aquelas pernas pareciam ter.
No alongamento pôde observar que ela tinha certa destreza nas mãos, além de ser bastante alta. Seria como disputar contra Vanessa: Focar em se defender até que encontrasse uma brecha para acertar-lhe um soco no estômago, para depois descer o cotovelo na coluna e imobilizá-la no chão com um joelho na garganta e...
— O que você tá olhando? — gargalhou ela, no que Bruna franziu a testa. Não iria cair naquela distração: o apito soou imediatamente após a piadinha e a viu preparar a perna para desferir um chute violento. Agachou a tempo, desferindo uma rasteira da qual ela também esquivou.
— Hm, você é rápida — comentou, buscando descontração. Bruna não iria iniciar um bate papo ali, sabia que ela queria distrai-la para, então, tentar o mesmo truque.
Aguardou o próximo ataque pronta a se defender, o que aparentemente teve um efeito grosseiro em Cassandra, que desfez o sorriso e partiu pra ofensiva com fúria nos olhos.
Bruna defendia-se como podia, era exatamente como lidar com os socos velocistas de Vanessa. O tamanho da garota até lhe fazia recordar Leonardo e o medo infantil que sentiu dele — isso a fez rir.
Quando encontrou uma falha, desferiu um soco bem no meio da testa dela. Teria sido engraçado se ela não tivesse se aproveitado do impulso pra virar um mortal pra trás e acertar seu queixo com a ponta do casco.
Não foi capaz de atordoá-la, porém doeu como o inferno. Não sairia do teste bonita — ao menos a área de acerto foi pequena o bastante para lhe dar apenas um hematoma.
— Obrigada pelo galo. — A ovelha disse, esfregando o local do soco.
— Disponha. — respondeu sarcasticamente, massageando o queixo.
Era de se admirar que Cassandra não investisse tanto em suas pernas, até porque era boa com os braços, apesar de não serem tão fortes e, por isso, era fácil desvencilhar-se de seus ataques.
Seu maior defeito era que não lutava a sério. Parecia gostar que alguém estivesse preparado para seus golpes e bolava estratégias equivocadas enquanto lutava, criando uma experiência própria de combate ou simplesmente se entretendo.
— Você luta amistosamente. O que isso significa pra você? — Bruna decidiu agradá-la com um diálogo.
— Aquelas em que todo mundo se ferra mas ninguém liga — respondeu no mesmo tom brincalhão. — E depois riem do quão foram tolos enquanto se enchem de cachaça.
Bruna riu ao se recordar de Vanessa e sua garrafa de uísque.
— Será que na guarda terei lutas assim? — Propositalmente deixou um devaneio para ponderarem juntas.
— Você pensa longe, raposinha. Não pense que exércitos toleram vagabundagens.
— Não considero lutar livremente vagabundagem. — Passou um chute por cima dela, já esperando que ela se esquivasse. — E parece que você também não. Diz aí, o que pretende?
— Depois de socar seu bucho? — Tentou e falhou graças à esquiva de Bruna. — Nada de muito útil. Só estou aqui porque quero me conhecer mais, descobrir os meus limites ou o que há além deles... E só depois pensaria em algo. Já você, parece ser uma bela planejadora...
A ovelha bloqueou uma sequência completa de socos, fazendo Bruna rir, incrédula.
— ... Que vive com seus truquezinhos. O que será que vai acontecer quando eu puder ter os meus?
Era assustador só de lembrar. Cassandra deve ter percebido o segundo de hesitação de Bruna e o usou por um breve momento para murmurar, mais pra si mesma do que pra raposa:
— O mundo me odeia por isso.
Bruna desviou do chute violento que mirou seu focinho; certamente este teria destruído sua mandíbula. O segundo apito soou, a deixa pra Cassandra abrir um sorriso largo e libertar sua fumaça arroxeada.
Bruna acendeu suas mãos em chamas, encarando aquele demônio diante de si decidida a não encostar em um milímetro sequer naquela fumaça, nem que a mantivesse distante pelo calor.
No entanto, não era com apenas isso que deviam se preocupar: todo tipo de explosão, feixes de luz, discos cortantes e até cristais vermelhos que surgiam do solo tornava tudo aquilo uma bagunça.
Esperava que o senso comum alheio estivesse calibrado, pois qualquer bocejo de Cassandra significaria o fim de todos. Bruna não se demorou mais, partiu para cima dela com seus braços flamejantes, assustando-a com o calor que eles emanavam.
Conforme a ovelha ia esquivando, sua boca entreaberta intencionalmente ia deixando resquícios da névoa que demoravam a se dissolver. Cada golpe de Bruna a fazia mergulhar cada vez mais o rosto nas pequenas nuvens. Ao raciocinar o detalhe, passou a segurar o ar e somente respirar dentro de suas chamas, o que fez Cassandra rir.
— Eu jurava que você era meio burrinha, mas essa me pegou.
A fumaça se propagava rapidamente pelo ar, mas as chamas a absorviam e ganhavam mais calor, não da mesma forma que uma combustão por gás, mas como a intensidade de um feitiço. Bruna deduziu que ela estivesse se segurando por conta deste detalhe.
Os discos prateados do felino agora sádico cortavam toda a arena, dado que seu adversário foi obrigado a correr por sua vida. “Que babaca”, ambas pensaram ao mesmo tempo.
Bruna e Cassandra foram obrigadas a parar a própria luta por conta disso e acabaram por mergulhar naquela multidão de explosões; estavam ferradas. Os cristais vermelhos do mesmo garoto galante surgiam como estacas — ele já não parecia tão gracioso agora.
Cassandra tinha dificuldades em esquivar deles, tanto que um chegou a ferir seu braço superficialmente. Notando a dificuldade dela com os obstáculos, a raposa se aproveitou deles para ganhar distância dela.
Os cristais eram similares às árvores gigantes dos fundos do orfanato, era como se houvesse feito isso a vida toda e se esqueceu do propósito do teste. Durante seu percurso íngreme, olhava lá abaixo, já sem intenção de se envolver.
Agora tudo era uma luta misturada, não fazia mais sentido buscar seu alvo. E quando menos esperava, viu uma figura enfurecida saltar dentre a nuvem de explosões do campo, pronta a abocanhar Bruna pela garganta.
Cassandra emergiu do caos esbaforando sua névoa consigo. Seu pulo foi tão alto que ultrapassaria a altura do cristal ao qual Bruna se agarrava. Apesar de tudo — inclusive da aparência medonha da ovelha — ambas riam de euforia.
A raposa, num ato impensado, pulou do cristal incendiando as próprias mãos, pronta para degolá-la e garantir o próprio almoço.
No entanto, o último apito soou. As chamas se dissiparam para longe como se escorregassem de seus dedos, ao que observou o campo de batalha se encerrar da mesma forma, com os cristais vermelhos se dissolvendo em poeira e os incontáveis feixes de qualquer elemento desaparecendo.
Isso enquanto Bruna e Cassandra ainda estavam em pleno ar indo na direção uma da outra. Ambas tiveram o impulso de olhar uma última vez para o chimpanzé lá embaixo, que abanava a cabeça enquanto assistia ambas se chocarem como bonecas.