Asas ao Vento Brasileira

Autor(a): Akarui K.


Volume 1

Capítulo 14: Interesse

O jovem sabia o quão os voos secretos deixavam a irmã contente, mas não a deixava saber que não gostava realmente deles. A verdade é que odiava o que tinha nas costas, principalmente odiava o fato de ter de escondê-las. 

Nada no mundo explicava sua estranheza, a menos que se enquadrasse na condição que também não era lá muito venerada em Oliphia. Isso só seria útil se, em algum momento, aceitasse a si mesmo.

Numa falha tentativa de se orgulhar, pensava que ninguém jamais poderia entender o valor daquelas asas e apenas por essa razão não era adequado mostrá-las. Bem sabia que não era verdade, mas a repetição disso o convencia.

As guardava sob calorosas camadas de pano, de modo que era impossível saber que elas existiam. Mesmo assim, Léo sentia olhares hostis contra ele. 

Sua pele também não era uma visão muito agradável. Um gato sem pelo algum no corpo, sem sua majestosidade natural, era absurdo de se ver. 

Além da suposta corcunda que o volume das asas fazia nas vestes e que o deixavam feioso e bizarro — isso era ruim o bastante para os outros e matava qualquer chance de se sentir atraente.

A escola era o lugar que arrancava do túmulo tudo que o tomava em ira. Não que estivesse ali para fazer amigos, mereceu sua vaga por competência. Mas as pessoas claramente queriam ser inimigas dele, o olhavam com evidente desgosto.

Odiava todos os olhos que ousassem se voltar a ele. Odiava aquele lugar, odiava a solidão que ele o trazia. Odiava apenas se lembrar que estava ali por seu próprio esforço, porque, afinal, se perguntava muito se ainda valia a pena tentar.

Sua voz permanecia tão oculta como um corvo na noite. Sempre partia em passos de aço para sua sala e ficava lá até que a aula finalmente começasse — o que fazia o eterno parecer pouco tempo. 

Se perguntava por que era obrigado a passar por tanta tortura. Poderia estar num lugar melhor, noutra cidade nos arredores da capital, mais próximo de conseguir dinheiro e independência e bem longe de pessoas tão tolas.

Mesmo sem uma perspectiva de futuro que lhe parecesse saudável, a falsa cortesia das regiões principescas soava muito melhor do que ser visto como monstro num ducado repleto de sabichões soberbos.

Mesmo que todos os dias sentisse que não deveria ansiar marés bravias, para manter a segurança de sua irmã, a ideia de ir para outro lugar e crescer intelectualmente não o deixava em paz.

Seus dias eram iguais como os de um anônimo. Não se ocupava com sonhos nem com vontades fulas, já que muito menos sustentava amizades por motivos óbvios. 

Tudo para que essa normalidade se mantesse e nunca corresse o risco de resgatarem informações sigilosas que prometera guardar a sete chaves.

Mas, dentro de si, outra pessoa gritava por uma liberdade que uma vida despretensiosa não permitiria. Queria um alvoroço, um motivo para seguir. E não o teria enquanto se contentasse com aquela parcela de riqueza.

Mantendo um semblante irado, demonstrava sem pudor o seu desprezo a todos aqueles que cochichavam quando ele passava. A repetição daqueles dias o fazia querer saltar da janela.

Mas hoje houve algo diferente, algo que o tirou de pensamentos tão negativos. Afinal, se deus lhe deu um coração, não permitiria por um segundo que ele não pulsasse por algo.  

Esperava encontrar a sala vazia, mas ao entrar deparou-se com ela. Sempre quieta, concentrada em mais um de seus livros. 

Não queria atrapalhá-la só porque sua revolta queria ver o mundo pegar fogo: apenas desta vez, não atiraria sonoramente a bolsa na cadeira. 

Ainda assim, a raposa notou sua presença e fitou-o — mesmo do outro lado da sala, Léo sentiu-se encurralado. O mais interessante é que ela sorria, doce como seu perfume do qual ainda se lembrava desde o dia no ônibus. 

O sino o assustou mais do que esperava e seu coração não parava de saltar dali em diante. Mandá-lo se aquietar era como obrigar um inseto a parar de zunir. 

“Ah, ela sorriu. Sorriu pra mim”. 

Não conseguia acreditar. Pelos deuses, não conseguia nem se concentrar: tinha oito problemas matemáticos simples para resolver, sendo que não entendia porcaria nenhuma. Não porque era ruim e sim porque estava com a cabeça em outra coisa. 

Então, de novo recordou porque desacreditava tanto. Devia ter sido só um delírio de ódio, sua mente plantando coisas para fazê-lo se acalmar. 

“O que era um único sorriso pra mim se ela sorri o tempo todo praquele idiota? “

Não demorariam a namorar, isso se já não começaram. Léo murmurou um palavrão a princípio, irritado com sua própria bobeira. Deixou trocentas novas mortes para a própria mente, imaginando sangue, fogo e sofrimento, explosões, carros capotando, e matar, e matar. Até que teve de sair de novo.

Decidiu poupar seu livro da ignorância da raiva e largou-o na bolsa, prevendo que passaria o dia escondendo-se nos próprios joelhos, já que não tinha cabeça para ler nada.

Mal imaginava que perdera a chance de ver com seus próprios olhos um outro desejo se realizar. Sentiu uma presença diante de si quando um leve calor dominou o ambiente. 

— O-oi. — Uma voz familiar iniciou, trêmula. O jovem permaneceu quieto e o silêncio se estendeu. 

“Está dormindo”, ela quis acreditar.

— Posso me sentar ao seu lado? — A menina insistiu, ainda ignorada. “É tímido”, pensou. Tinha de ser. Ninguém podia ser tão mal-educado em plena sociedade atual. 

Mas e se fosse? Queria não pensar nisso. Tinha de ter certeza primeiro: tinha de ouvir sua voz de qualquer jeito. Precisava, já que seu esforço tinha sido  tão gigantesco só de estar ali diante dele.

Injuriada em esperar em vão, apenas acomodou-se ao seu lado, fingindo não se importar com nada. Prosseguindo com a estratégia de Lukas, Bruna continuou a dizer: — Me pergunto se não sente calor com esse manto. 

Quente, quente demais. Leonardo fervia. Limitou-se a abanar a cabeça, sem imaginar o quão isso a enchia de alegria.

— C-como se chama?

O que era pra ser a mesma voz calma e firme de antes foi um ralo murmúrio incapaz, um fio tão fino a ponto de arrebentar. Bruna abaixou a cabeça, de repente sentindo-se muito fraca. 

— Me diga você.

Por impulso, ela olhou-o. Sua voz era tão doce que se perguntou de onde veio tanta suavidade, ou de onde havia tirado tanto pavor. 

Bruna não controlou o sorriso quando viu o capuz meio puxado, deixando à mostra o sorriso bem delineado de um gato. 

De tantos que vira na vida, era o primeiro que conversava, mas nenhum deles era como o jovem: sua pele, lisa como um véu, pousada gentilmente sobre o crânio. 

As covas das bochechas pareciam mais fundas e uma leve alteração de tom ao redor dos olhos o tornava quase um defunto — mas seu sorriso compensava. 

Não o achava feio, não como pensou que fosse ser um gato sem pelos. Olhando-o assim, quieto, assustaria qualquer um que não estivesse interessado em, apenas, ouvir o que ele tinha a dizer.

— Bruna. Henriqueta — respondeu, desconcertada. — É um prazer. E você? 

Do mesmo modo, ele quase engasgou ao dizer: — L-Leonardo.

“De perto ela é ainda mais bonita. Sorrindo, então...”

— Como vai, Leonardo?

— Vou b-bem. Quer dizer, melhor agora. — “Hein?” — Não! Q-quero dizer… As pessoas parecem ter medo de mim. Achei que todo mundo tivesse. Nunca imaginei que alguém fosse vir.

A raposa não conseguiu não rir diante daquela inocência.

— Não, não tenho medo de você. Pelo contrário, vendo agora você parece bem... Delicado.

Leonardo não soube onde enfiar a cara. A afirmação o deixara tanto bravo como tímido. Para se vingar da saia justa, seu tom foi nada menos que ousado quando citou:

— E eu estou com bastante calor.

“Ah.” Bruna sentiu-se tola por esperar que ele não soubesse. Por conta própria, ele continuou a dizer:

— Não olho porque não quero, mas não posso controlar os ouvidos. Mas não se preocupe, não dou a mínima pra isso. São todos um bando de idiotas, esse pessoal daqui. Mesmo depois de tanto tempo, ainda não conseguem compreender que são tão gente como a gente, que não há motivo algum para temer.

Aquela frase tinha um significado mais profundo do que parecia. Mas quando abriu a boca para questionar, uma badalada do sino tirou seu foco. Fim do intervalo.

O gato aproveitou-se disso para levantar e fugir, fugir de tudo que Bruna tinha conquistado. Logo já estava preparando um passo, e outro, e outro, indo devagar corredor afora. 

Acabaria tão rápido quanto começou. Estava indo embora bem diante dela, como um medíocre, um idiota tão idiota quanto todo o resto.

Mas aquela frase não era apenas uma filosofia, Bruna tinha certeza de sua intuição. Rapidamente se ergueu e pôs-se a segui-lo para uma despedida digna.

— Te vejo... — subiu o olhar. — D-depois...

Ela queria dizer mais, mas não conseguia. De repente o corredor ficou tão escuro que a raposa se sentia uma formiga. 

Nunca o vira de pé e não imaginou que fosse tão alto. “Se ele quisesse me afastar, eu voaria longe”. 

Mas não iria permitir aquela desfeita.

— Você já vai? — incitou, decidida a vencê-lo. — Foi um desprazer. Se quiser conversar de forma digna qualquer dia, nós pegamos o mesmo ônibus. Aguardo suas desculpas, mané.

E foi, empertigada como um soldado, orgulhosa de sua falta de bom senso e de sentido. Leonardo sorriu, chocado. 

Ela realmente era um oponente à altura.

Com o rosto apoiado na mão, Lukas brincava com a caneta nos dedos, olhando-a sonolento como se não tivesse nada de mais útil a fazer. 

Quando ela apareceu, com seu rosto alegre que no momento o fazia apertar os punhos de ira, apenas subiu os olhos, tentando demonstrar apenas preguiça ao dizer: — E morreu?

— Não. — O entusiasmo dela seria contagiante se Lukas não estivesse tão ofendido. — Mas foi tenebroso. Eu irritei ele e ele me irritou, não falamos nada de verdade. Tentei convidá-lo pra conversar mais tarde, mas acho que fui grosseira de novo. 

— Não está satisfeita? Ao menos ninguém pode dizer que não tentou.

— É... Vai ver, ele é que nem eu e não sabe conversar bem.

Um esguio cilindro de prata entalhado com mosaicos geométricos com uma ponta cheia de tinta capaz de perfurar olhos: sua valiosa caneta nunca lhe parecera tão mortal. 

Resignado, Lukas sorriu. Não iria dizer nada, sabia que o que pensava seria grosseiro. Ela que decidiu conhecê-lo, então decidiria se prosseguiria se frustrando com outras tentativas.

Ele não conseguiu disfarçar a gota de ciúme que pairou no que disse:

— Vai ver ele se sentiu ameaçado com você indo atrás dele do nada...

— Deixa de ser besta! Não estou indo atrás de ninguém, Lukas!

— Malévola.

— Não, não é isso! Só disse que eu não… Argh! — Ela grunhiu, enraivecida. — Você tá misturando as coisas!

E só agora o silêncio se fez, com a exigência da aula iniciando. Lukas odiava-o por ser tão inoportuno — o silêncio, diga-se de passagem. 

Não era obrigado a ficar feliz com a coisa toda. Bruna claramente estava interessada, caso contrário, não toleraria um moleque aleatório sendo grosseiro gratuitamente.

Bufando algumas vezes, tentava se concentrar na lição sem transparecer que queria sumir com alguém em específico. Olhou algumas vezes o fulano no fundo da sala.

Se fosse para ser, seria. E se fosse para travar uma guerra com ele, travaria.



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