Asas ao Vento Brasileira

Autor(a): Akarui K.


Volume 1

Capítulo 15: Se for

Qualquer que fosse o pedido de desculpas que desse a ela, não parecia boa ideia quando recordava do modo estúpido como se encontraram.

Pareceu grande coisa quando ela estava perto, no entanto, quanto mais elaborava o que diria à irmã, mais parecia que não havia nada a dizer sobre aquilo. Nada de bom.

Leonardo fora nada menos que um baita idiota. Se contasse a Veronicca, perderia seu couro antes que pudesse ter outra tentativa.

Bruna tinha feito um esforço de se aproximar sabe-se lá por qual motivo — motivo esse que sequer parecia emocionante agora dado que jogou tudo pelo ralo com ela. Nem para uma memória boa servia. Nem para uma fofoca. “Eu sou uma vergonha para minha existência.”

Mesmo assim, ainda pensava em tudo. Primeiramente, na razão dela ter ido: qual seria, afinal? Leonardo sequer parecia interessante a externos. Não era nem bonito. E a raposa muito menos vira qualquer ponto em comum com ele, já que ele não teve oportunidade de mostrar o hábito de leitura. 

“Quer dizer… isso é uma suposição”, Léo repensou. “Ela é da mesma sala que eu.”
Quando era obrigado a ler um parágrafo de alguma coisa, o gato enfiava o livro de romance no meio do livro didático e lia sem que o professor notasse sua distração. Qualquer um que preferisse fantasia a matemática faria isso.

Porém, Bruna sempre parecia muito focada no que fazia. Era improvável que notasse qualquer deslize do gato quanto a seus gostos. E, portanto, improvável que sentisse qualquer interesse nele.

Inquieto, a péssima noite de sono o jogou em sonhos onde ela zombava dele. “Mané, mané, mané!”, ela escarnecia, mordaz. “Você não consegue dizer nada porque é fraco e mané!” 

Doía, mas não lhe faltava razão. Tudo que devia ter feito era ter conversado decentemente, quando apenas deu-lhe as costas sem motivo. Sem forças para, de fato, fazer aquilo valer a pena. Se é que restava alguma força nele para esse tipo de coisa.

Estava no ponto de ônibus se convencendo de que não lhe restavam chances. Desperdiçara todas elas, mesmo com tantos avisos da irmãzinha. No fim, ela dizia a verdade sobre sofrer sem sequer ter tentado um passo.

No fim, era mesmo um covarde que não merecia lamentar nada, já que tudo era daquele jeito por culpa dele. “Se é que adianta tentar mudar alguma coisa.”

Quando o ônibus virou a esquina adiante, foi tomado por uma imensa vontade de correr de volta para casa. A locomotiva parecia um dragão, vindo em sua direção e abrindo aquela imensa boca barulhenta fedida a jovialidade. E era obrigado a entrar nela.

Estava decidido a não olhar ninguém; seus olhos iriam se dirigir apenas ao seu lugar convencional e seus pés seguiriam ordenadamente até ele, sem tropeços. No entanto, isso nem de longe foi o que aconteceu.

Um buraco na via fez o ônibus pular, quase o levando de cara ao chão em menos tempo do que podia raciocinar. De joelhos e escorado no primeiro banco próximo, Leonardo tentou se erguer, murmurando xingamentos a tudo que envolvesse o trânsito.

Mas, ao subir o olhar, se viu encarado por duas pedras de ônix cruelmente instaladas ao seu lado.

“Aguardo suas desculpas, mané.”

A vergonha ocupou seus ossos com um fervoroso tremor, quase como um vulcão em erupção. O calafrio que lhe percorreu o corpo queimava como choque. Ela o fitava, imóvel, com certa expressão de espanto que soava quase cômica.

— Machucou aí? — ela perguntou, sem erguer um músculo para acudi-lo. Impossibilitado de esconder o rosto, Leonardo apenas se levantou e estapeou os joelhos para limpar a poeira. Um ardor inesperado o fez sibilar de dor.

— Argh, achava que não, mas devo ter ralado o joelho na queda.

Dentre um riso esmagado diante do balanço do ônibus, ela brincou:

— Senta aí, senão vai cair de novo.

Omisso e agraciado pela situação, ele obedeceu, se ajeitando ao seu lado. Tímido, quase não podia mover os olhos para longe das mãos, unidas desesperadamente à bolsa em seu colo.

Sem saber como começar um assunto e agora batizado por um vexame, Leonardo não sabia o que dizer. Qualquer coisa que dissesse pareceria estúpido agora, ainda mais recordando o modo como se falaram a primeira vez.

Temia que ela notasse seu pavor e se esforçava para se manter imóvel. O balanço da locomotiva insistia em ir contra a resistência de seus ombros, que de maneira alguma poderiam encostar nos dela. Foi então que ela riu, quebrando o resto de rigidez que lhe preenchia:

— Er… Tá doendo muito? O joelho.

— N-não foi nada. — respondeu, quase sem conseguir abrir a boca. — Acontece mais do que você imagina.

— Não acredito em você. Quem anda de ônibus sabe as manhas de não cair.

Desbancado pelo argumento ridiculamente óbvio dela, Leonardo mais uma vez silenciou.

Diante da reação dele, Bruna também não soube o que dizer. Era excepcionalmente talentosa em deixar as pessoas sem saída — e isso, neste momento, estava sendo péssimo para sua convivência.

Pensando melhor, o modo como falara com ele aquele dia não fora nem de longe a melhor abordagem que poderia ter feito. Revendo a memória, pôde perceber que fora apenas incisiva e exigente, características inimigas de pessoas tímidas.

Já que ele não parecia simpático nem orgulhoso o bastante para continuar por conta própria, decidiu insistir mais um tanto:

— Então, andei reparando que você lê no intervalo…

“Ela reparou que eu leio?!”, pensou ele, extasiado. Do modo como as coisas iam seguindo, o dia só podia ser um sonho… ou um tremendo de um pesadelo, recordando o tropeço miserável que rasgou seu joelho.

— Ah, leio. — Raciocinando a demora de processamento, com pressa buscou seu livro na bolsa. — É-é um romance de época entre uma professora de uma escola militar e um veterano, que é aluno dela e tem planos contra o sistema de seu reino.

Bruna riu graciosamente diante da proposta, se segurando para não dizer que aquilo não se parecia em nada com a imagem que tinha dele. Pegou o livro para analisar a capa enquanto perguntava mais:

— Parece bonitinho. E caótico. Mas não parece ter um final feliz.

— E não tem, mesmo.

— Espera, você já o leu?

Recordou imediatamente que aquilo devia ser um segredo, mas não adiantava mais mentir.

— É, quase isso.

— Como “quase”? Ou você leu ou não leu. Ou alguém te contou o final.

— Tá, eu já li ele, sim. Só não queria que me achasse idiota por isso.

Bruna se sentiu levemente culpada por, novamente, ter lhe cobrado algo por acidente. 

— Não, não é isso. — Tentou reverter a situação. — Eu também costumo ler mais de uma vez. Sabe, pra entender melhor a história. Eu só não faço isso com romances porque… Ah, perde a graça, né. O legal é o sentimento.

— Bem, da primeira vez que eu li, eu odiei. Mas eu gostava dos trechos bons, então voltei a ler por eles. E você, o que costuma ler?

— Geografia.

“Que horror”, Léo pensou, no que sua boca contrariou:

— Que legal.

— Não precisa mentir. — Ela bufou um riso. A fala o fez pensar na possibilidade de ela ter notado seus olhos, porém ela sequer o olhava. O tom de voz não deve ter sido convincente o bastante.

— Não, eu acho legal mesmo. Digo, o fato de você se dedicar a isso. É pra poucos.

— Muitas das coisas que eu faço são pra poucos, mas isso é menos legal do que parece.

Ter algo em comum com ele sustentou a conversa o suficiente até se soltar de verdade e a coisa toda ficar natural. Ele era mais simpático e delicado do que lhe parecera daquela vez, o que a deixou mais curiosa para conhecê-lo. 

Apesar de tudo ter sido diferente do roteiro mental que inventara para esse momento, estava sendo gratificante e menos sufocante do que esperava. 

Bruna não encontrou oportunidade para entregar o bilhete e explicar que era por isso que o contatou, mas acabou se esquecendo disso mais tarde, tal que a conversa fluía bem.

O ônibus estacionou no pátio maior da escola e, como estava na primeira fila de assentos, a garota surgiu primeiro na porta. Lukas pretendeu sorrir ao vê-la de longe, mas a figura que a acompanhava com passos e palavras seguia ao seu lado.

Certa raiva preencheu seu semblante, no entanto, foi obrigado a vestir uma máscara de simpatia conforme se aproximavam.  

Normalmente, era ele quem a recebia com a primeira palavra, mas não ousou se pronunciar antes de saber com que situação estava lidando. Bruna os apresentou de modo amistoso, mas os olhos do jovem não despregavam dele, carregados de uma defensiva evidente.

Mesmo assim, o garoto se dirigiu a ele de modo tranquilo e até convincente. Era realmente mais simpático do que esperava e conversava bem sobre coisas interessantes, sem muita superficialidade. 

No entanto, pelo que tinha de experiência em ouvir conversas de adultos, havia um tom familiar na voz do gato que o fazia suspeitar. “É um garoto de opinião”, presumiu, investigativo. “E ele não parece dizer uma opinião real.”

Bruna seguia na frente nos corredores e, enquanto ela não os via, dedicou um olhar ao felino, somente para descobrir que ele já o encarava. Antes de presumir qualquer coisa, um detalhe intrigante tirou seu foco. “É impressão minha ou os olhos dele mudaram de cor?” 

Essa possibilidade o deixou amedrontado, tanto que desviou os olhos. O tom alaranjado parecia brilhar como a tocha de um caçador. 

Bruna sustentava certa frequência de falas até o momento em que se separou deles para uma ida ao banheiro. Sozinhos, quase guerrilhando contra os olhos dele, Lukas tomou coragem para manter a cordialidade, mesmo que desconfiasse de sua índole.

— Leonardo, não é? Ou é Léo de outra coisa?

— Por acaso seu nome é Lukas de outra coisa?

A rispidez quase o chocou, mas apenas quase. Agora começava a compreender qual era a real vontade do garoto. Por um breve instante, desejou muito poder usar seu sobrenome contra essa petulância, mas em atual momento, ele só significava vergonha.

— Certo, então… Está aqui há muito tempo?

— Alguns anos. Entrei por mérito meu.

Aquela frase lhe soou como uma alfinetada. Não sabia nada sobre o garoto, menos ainda o quanto Léo sabia dele. Sentia que qualquer coisa que falasse poderia ser usada contra si mais tarde.

— Saquei. Era legal quando ainda permitiam esse tipo de coisa aqui. Bem, como conheceu ela?

Tentou usar de um tom cordial, mas a pergunta pareceu ter surtido efeito oposto, pois os olhos do garoto agora se converteram em verde ao que um sorriso esperto delineou seus lábios.

— Ah, pegamos o mesmo ônibus. Me sentava perto dela quando ela puxou assunto.

— Entendo. Ela não costuma falar com ninguém do nada. Se não me engano, já se falaram uma vez, não foi?

Isso provocou um leve espasmo na bochecha dele, o que foi bem satisfatório.

— Não foi muito.

— Imaginei. Tudo que ela disse é que você foi bem idiota e que iria mais uma vez pra saber se era verdade mesmo. — De novo, certo prazer surgiu a partir do sorriso desfeito dele. — Parece que valeu a pena pra ela.

O felino suspirou, desviando o rosto como se manter contato visual o fizesse cometer alguma atrocidade. A forma de Bruna já era visível novamente na multidão e aparentemente olhava para ela.

— Pode crer que vou fazer valer. — Se pôs a caminhar. — Até logo, Lukas-de-outra-coisa.

Não lhe dedicou uma despedida. Antes que Bruna o visse, decidiu se afastar, permitindo a aproximação do gato que obviamente diria falsas palavras a ela pelo resto do dia. 

Se permitiria algum tempo sozinho antes de, inevitavelmente, dividir o ambiente com ele de novo, já que sabia que Bruna os obrigaria a sentarem próximos até o fim das aulas.

Isolado e longe de olhos alheios, se deixou pensar suas maldades livremente. Quase podia ler as emoções dele, raiva e cobiça. Além de toda aquela audácia surgida do nada, Léo ainda parecia ter mais pontos em comum com ela. Pelo menos pontos evidentes.

Suas palavras eram carregadas de duplos sentidos e segundas intenções, e agora Lukas tinha certeza de que o jovem era minimamente manipulador. Ele faria o possível para trazê-la para sua zona. E com “possível”, poderia chutar mentiras e distorções de situações.

Teria que reunir todo seu arquétipo de defesa para impedir isso, pois aparentemente, ser amigável não traria qualquer empatia por parte dele. Esperava que Bruna fosse tão esperta quanto parecia. 

Ao menos, podia esperar que seu tempo de amizade com ela fosse de maior valor que qualquer coisa que o recém-chegado pudesse oferecer, além de seus um metro e setenta.



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