Volume 1
Capítulo 13: Ocultos como rostos tímidos
Só se lembrou que havia adormecido quando abriu os olhos. Pior, lembrou-se que agora tinha uma vida controlada por Vanessa e suas ideias absurdas.
Bruna tinha seu livro em mãos, inutilizado por tanta chateação. Nem se importou com o sermão da professora, menos ainda se deu ao trabalho de inventar uma desculpa quanto à sua irresponsabilidade com a tarefa de casa; e bem sabia que não teve opção.
— Está tudo bem com você? — A mulher disse depois das broncas, mas antes que a raposa pudesse inventar qualquer porcaria, ela continuou logo. — Você não deixaria uma tarefa de dois pontos passar à toa.
“Dois pontos? Era um trabalho?” A expressão controversa de Bruna fez a mulher imediatamente se desculpar: — Tudo bem, não pergunto mais. Te salvo meio ponto se me fizer um favor. Mas eu peço que não deixe de ser a boa garota que era.
Desistindo de refletir ainda mais em cima daquelas palavras, Bruna apenas aceitou. A tarefa era simples: verificar se os alunos fizeram o dito trabalho e carimbar a folha se assim fosse.
Mas apesar de simples, arrancou à força o resto de dignidade que lhe restava. Os semblantes que a recebiam não eram gentis e mais de uma vez se sentiu desprezada, isso porque tudo que tinha de fazer era carimbar.
Esqueceu todo o constrangimento quando chegou à carteira de Lukas logo depois da sua. Ele a aguardava com um riso ansioso e quase não se continha para falar:
— Desculpe, professora, eu estava cheio de preguiça. Não pude escrever nada. Estamos no mesmo barco agora.
Ele tinha uma perigosa capacidade de alegrá-la, mesmo num dia tão ruim. Relevar isso novamente jogava Bruna em angústia.
Ela tentou se distrair, seguindo com a brincadeira e demonstrando seu poder ao carimbar uma folha aleatória.
— Estou ganhando meio ponto por isso. Trouxa.
Arrancou-lhe um riso de ironia quando, mesmo assim, carimbou de novo outra folha.
Bruna estava quase na última carteira, na qual sentava-se o mesmo garoto que dividira o assento do ônibus com ela certa vez. Iria avaliar tão rápido que ele nem teria tempo de notá-la.
Mas algo familiar chamou sua atenção. Recordou que era o mesmo garoto que a viu surtar sozinha na sala naquele dia raivoso.
O garoto que fizera a redação inteira com uma letra feia demais pra valer dois pontos. Desproporcional, irregular e desorganizada, sem padrão, que se misturava em cursiva e bastão.
Ninguém menos que o remetente do bilhete.
Aquilo desconcertou seus ligamentos e por um momento Bruna estremeceu. Por um momento, ponderou que o carimbo poderia secar a tinta bem naquela hora, só para se demorar mais lá e se dar uma chance.
E o que estava pensando? Ele mesmo não lhe dedicava um vislumbre. Ele deveria estar pensando o que todo mundo pensava. Deveria sentir nojo também.
Diante da possibilidade, apressou-se e, com um desnecessário esforço para se mover, afastou-se dele para cumprir com suas ordens.
Com sorte, era a última fileira e não teve de fingir sobriedade para meio mundo antes de terminar tudo.
Não foi difícil gravar seus modos. O garoto sentava-se como um delinquente, não devia tirar uma nota maior que a média e isso era só mais um motivo para levar em conta seu possível desprezo por Bruna.
Seu peito estava martelando e parecia a ponto de sufocar, mas ela não entendia o porquê da sensação. Respirou fundo, tentando sutilizar e compreender melhor.
“Todo mundo tem letra feia, ora essa.” Já deveria ter jogado o maldito papel fora e esquecido seu significado fútil. Aquilo não era nada, porque se fosse, ele teria a encarado, no mínimo.
Uma última vez, a raposa dedicou-lhe um olhar só para se certificar de sua própria tolice, levando em conta que ele deveria estar tão indiferente como antes.
Só que não. O viu esquivar-se rapidamente, num fulgor amarelado que correu pelo escuro do capuz até se esconder no mesmo. Olhos, dourados como ouro.
Seria mesmo uma idiotice pensar naquilo?
— Psiu, acorda. — O estalar de dedos de Lukas foi como um estouro, assustando-a. — Se perdeu em outro mundo e esqueceu de se despedir?
Sorriu, tímida, correndo os olhos para longe dele.
— É, acho que sim.
Sem se contentar em apenas espiá-lo a aula toda, na primeira badalada do sino Bruna correu seus olhos para ele, o misterioso jovem de letra horrorosa.
Estava obstinada a não ceder de vergonha e esperaria que ele a olhasse de volta. Iria medir o nível de sua coragem.
Ele ainda permanecia lá, imóvel como se nem houvesse ouvido, aguardando que todos saíssem para que pudesse se mover. Um hábito de felinos, apesar da pele bizarra diferenciá-lo de gatos normais.
Não teve tempo, porém, para esperar ver um movimento dele. O próprio fluxo de pessoas ao seu redor a induziu a se retirar. Foi no banco-frita-ovos que Lukas a questionou: — O que houve com você?
Dizer a verdade não parecia boa opção, por razões que não compreendia muito bem. Não queria que ele achasse que estava apaixonada ou algo do tipo, até porque não existia sentido nisso. Era apenas um bilhete bobo.
— Estou ótima, eu acho — respondeu a ele. — Pareço mal?
— Você está meio distraída. Alguma coisa te fez mudar. — Certa malícia provocou um sorriso. — Quem foi?
— O q-quê?
— É sério, parece que esqueceu de tudo ao seu redor. Além de que, foi depois daquele serviço de meio ponto. Acha que me engana com essa cara de brava? Eu sei que aconteceu algo que te fez pensar.
“Maldito, ele acertou!” Não iria dizer que o que a fazia parecer brava era a vontade de estapeá-lo. Sem muitas opções, contou-lhe do bilhete, ainda que não falasse de sua curiosidade apaixonada pelo remetente.
— Peraí, como assim reconheceu a letra de um bilhete que recebeu há mais de quatro meses? — riu, incrédulo. — E eu aqui me achando por ter adivinhado.
— Acho que agora tenho uma chance de ter mais um amigo. — Ela não notou que meio centímetro do sorriso de Lukas se fechou. — Quer dizer, nunca fui boa com amizades, muito menos em puxar conversas, mas sinto que devia responder.
— Pretende falar com o dono ou devolver na mesma moeda?
— Não sei se tenho coragem pra isso.
Outro riso perverso estampou seu rosto.
— Olha só, tímida em conhecer o admirador secreto!
— Não inventa! E vê se fala baixo, idiota!
— Falar baixo? Então você não quer que saibam...
Bruna se retraiu. Era uma afirmação. E quase certeira.
— C-claro que não! Q-quer dizer, eu não gosto de ninguém! E eu não sei se irei atrás de quem escreveu, certo?
— E o que estava escrito, afinal?
— S-só perguntava se eu havia esquecido o livro naquele dia. — Seus olhos caíram para o chão, evidenciando certa delicadeza. — Parece que havia, sim, mais alguém que reparava em mim. E eu apenas demorei pra perceber.
Ele nada disse por um bom tempo. Havia alta chance daquela situação resultar em um romance e Lukas odiava esse talvez. Mesmo assim, disse a ela: — Então não deveria sentir medo.
Bruna lhe dedicou um olhar esperto, tentando retornar à sua pose de orgulho:
— Não estou com medo. Posso ir quando quiser.
— Você praticamente esperou meio ano pra descobrir de quem realmente era. Se pode ir quando quiser, por que não foi ainda?
Ele tinha um ponto forte.
— Ah! E o que eu falaria? — Ela debochou com as mãos. — “Olha, recebi seu bilhete, vamos ser amigos?” Não funcionaria! Já foi quase meio ano, droga.
— Aja naturalmente. O que você diz quando vê alguém?
— Não sei, foi você que começou o papo aquele dia.
“E de um jeito bem estranho, aliás.”
— Então o que vai fazer a respeito?
Ela deu de ombros, sendo genuína na resposta: — Eu não faço a menor ideia.
— Como assim?
Veronicca ainda não estava enfurecida, porque Léo ainda não contara sobre o carimbo.
O cheiro de quando ela se aproximou, o momento em que uma madeixa caiu sobre os olhos e ela a pôs no lugar... Não conseguira nem respirar.
— Leonardo, já se foram meses e você nem pra chegar perto! Sei lá, podia ter deixado algo na mesa dela, devia ter dado um jeito.
Ele suspirou longamente, silenciando-a.
— Olha, V, eu não consigo. Ambos estão bem juntos, estão felizes. Eu não devia interferir. Minha presença de nada adiantaria, muito menos o que sinto por ela.
Veronicca não soube o que dizer. Concordar não seria maravilhoso, discordar também não oferecia opções de trajeto melhores.
— … Mesmo que pareça impossível, preciso tirar isso da cabeça.
— Impossível não é. Por que não tenta continuar de uma vez se tem tão pouco a perder?
— Porque, às vezes, não ter coragem é bom.
Sim, ela concordava com isso. Não ter coragem não era o mesmo que ter medo. Alguém que não sabia quem, em um lugar que não sabia onde, em um tempo que não se lembrava quando, lhe disse algo a respeito disso.
“Faltando alguma coragem impedimos a nós mesmos cometer loucuras das quais nos banharíamos de arrependimento mais tarde. Se eu tivesse sido menos corajoso, ninguém sofreria tanto…”
Houve muita coragem envolvida para destruir sua família, uma destruição necessária. Aquele sobrenome não devia ser perpetuado tão somente pelo peso que carregava.
Veronicca não sabia muito mais que isso, mas Leonardo sabia o bastante para se convencer de que qualquer ousadia era capaz de causar um imenso caos.
Nem mesmo se lembrava do rosto de seu pai. Fora obrigado a apagar tudo aquilo, inclusive os próprios sentimentos, para que a ordem fosse feita. Apagar seu nome, que fora sepultado nas cinzas de um antigo documento.
O que restou dessa história se distorcia e revezava entre tristeza e obsessão, uma fissura por uma vida normal e anônima. Se apaixonar não estava dentro das possibilidades.
— Ela não tem razão para falar comigo e eu, não quero incomodar ninguém. — Léo finalizou, esperando que o assunto morresse ali. No entanto, Veronicca abanou a cabeça, entristecida.
— Não diga bobagens. Você não incomoda, nunca incomodaria ninguém. Você só tem medo. Só isso.
A vontade de negar era imensa, mas não devia. Ela não entenderia suas razões e seria muito complexo pôr em palavras sendo que mais da metade era segredo.
Mas não precisou de muito esforço para insistir na desistência. Como se lesse seus olhos, Veronicca prosseguiu:
— Acho que, pelo menos por hoje, devíamos seguir o padrão da sociedade e esquecer isso. Só por hoje.
Estaria ela insinuando que deveriam sair de casa? Soava catastrófico. Os olhares que recebiam eram piores que vaias. Isso quando não os confundiam com mendigos ou ladrões.
— Melhor não. Eles ainda não chegaram e não devemos sair sem avisar.
Veronicca agarrou seu braço e o obrigou a tombar pra fora do sofá.
— Já mentiu melhor, Léozinho.
De fato. Seus “pais” não davam a mínima pro que acontecia ou deixava de acontecer em casa. Mesmo assim, não deixava de soar uma péssima ideia.
— Ah, não... — o moleque gemeu. — Me deixa aqui. Tô com preguiça.
— Que preguiça o quê, anda logo e vai tirar esse capuz!
Ela o puxava tanto que, em algum momento, se desequilibrou e foi sugado pelo chão, quando deixou-se rir do próprio tombo. Sequer estava usando o maldito capuz.
Os rasgos nas costas da roupa ventilam sua pele, esvaindo todo o calor que o caos da cidade incidia.
Leonardo corria um pouco a frente da irmã, sussurrando-lhe ordens enquanto ela o seguia, pululando de alegria. Veronicca parecia não levar a sério o perigo que corriam e tinha de lhe dizer o tempo todo o que não fazer.
Mesmo que qualquer viela fosse vazia a essa hora do dia, ainda havia a chance de trombar com alguém pior que a polícia ali. Vigdra era cheia de trombadinhas, ainda mais os drogados.
Léo não sabia se era pior ser encontrado por um ou ser confundido com um. Principalmente porque eram obrigados a cobrir a estranha pele com capuzes nada menos que suspeitos.
As muitas esquinas do beco os proporcionavam o sigilo que precisavam e não demoraram muito pra achar um canto realmente distante de passagens públicas.
Mandando um bilhete a deus pedindo que o livrasse de problemas, Léo permitiu que Veronicca se prendesse às suas costas, se preparando para o salto.
— Pronta?
— Sempre.
E então, ele libertou suas asas, ascendendo ao céu com o poder que não tinha direito de exibir como troféu.