Asas ao Vento Brasileira

Autor(a): Akarui K.


Volume 1

Capítulo 12: Reflexão

“Veronicca, você não precisa mais dizer que ainda tenho chance. Se intrometer é mais fácil do que parece. Tudo correu perfeitamente bem pra ELES.”

Ao acordar de suas preguiçosas onze horas de sono, a primeira coisa que viu foi o bilhete sobre sua mesa. 

Quanto aos próprios sentimentos, Leonardo nunca fora de muitas palavras: quase sempre se comunicava de maneiras indiretas para conseguir traduzir o que sentia, principalmente para a irmã. 

Ao tocar o papel, a gatinha soube exatamente o que havia acontecido. Depois do café, aguardou-o com um livro, mesmo estando perturbada demais para lê-lo. 

Tê-lo feito acreditar que daria certo só aumentou seu sofrimento. O pior é que isso estava em uma de suas previsões e, portanto, deveria ter evitado. 

Odiava quando cometia a tolice de quebrar os próprios ideais de sabedoria emocional, principalmente quanto ao irmão, que sempre continuava seco como uma pedra sem saber lidar com o que sentia.

Felizmente, não demorou muito para que a porta se abrisse e ela pudesse, enfim, assumir a culpa e se responsabilizar pelo vexame. 

Bem oposto ao que seu coração dizia pra fazer, permaneceu quieta. Esperou-o chegar, atirar violentamente a bolsa contra a parede e jogar-se na cama para finalmente ir até o seu encontro. 

Era mais tranquilo quando o abordava assim, dado que Léo era mais preguiçoso deitado e por isso se rendia mais facilmente.

— Ei. — Veronicca murmurou, em tom confortante.

— Vai embora. Não tô afim de conversar.

— Então por que me avisou o motivo? 

Olhou-a, incrédulo de que mais uma vez perdera uma discussão antes mesmo de começar. Ele afundou o rosto de novo, falando contra os lençóis: — Porque quero desistir. Só quis deixar avisado.

— Sendo assim, aceito. Também aceito um abraço.

Sem pressa, Léo aceitou a proposta, deixando que ela se sentasse ao seu lado para acolhê-lo. 

Nunca diria à irmã o quanto se sentia triste ao tocar o seu corpinho, que lembrava o de sua mãe em seu pior estado. 

Em silêncio, ficaram lado a lado por tempo suficiente para que ela, então, compreendesse perfeitamente a situação. Veronicca até conseguia segurar bem o que sentia, só nunca controlou sua língua:

— Mas você sofre sem motivo. Não deu um passo sequer. Isso é decepcionante, Leonardo.

Seria suficiente para fazê-lo pensar. E mais uma vez, a gatinha acertou.

Desde pequenos, os dois jovens felinos eram unidos. Se apoiavam em quase tudo, mesmo que suas personalidades se revelassem opostas ou suas razões divergissem entre si. 

Diante dos dramas do irmão, Veronicca vivia dizendo que Leonardo era adorável. Ele se recusava a aceitar mesmo um elogio tão superficial — até porque, ele podia ser tudo, menos isso. 

Uma coisa que o tornava um tremendo idiota era o pavio curto: explodir facilmente o fazia bombardear palavras impensadas e nem mesmo sua adorável timidez podia pará-lo quando se irritava. 

Mas havia algo capaz de fazê-lo se arrepender de tudo de ruim ocorrido em sua vida inteira: lágrimas — sejam suas, alheias ou desconhecidas, o manipulavam como uma marionete boba. 

E sempre era Veronicca a verdadeira controvérsia. Ela lhe causava o mesmo temor que as lágrimas mesmo sem derramá-las uma vez sequer. Decepcionar a única pessoa que importava no mundo era devastador.

— Eu... Prometo que da próxima farei dar certo.

Num piscar de olhos, ela se endireitou, satisfeita.

— Como esperava.

Era uma sexta-feira ensolarada. “Perfeito, tem dois dias para adiar sua pena, maldito sortudo.” 

Não seria de todo um problema, só precisava da confirmação dele, que por mais que soasse insegura ou até mentirosa, a daria um bom motivo para fazê-lo repensar. 

Chamava isso de controle psicológico: se uma promessa fosse feita, naturalmente vinha o peso de não quebrá-la. 

E se essa promessa fosse para a única pessoa que daria sua vida, essa se tornava muito mais forte e o controle psicológico também. 

Um ciclo. E um segredinho só seu. 

Veronicca sempre foi o xodó da família, potencialmente de todo mundo — ou pelo menos achavam isso só porque era pequena. 

Desde a infância, a gatinha fazia os outros contentes demais para que alguém reparasse na doença fatal que a possuía — e também neles, seus estranhos cabelos, escorridos como uma cascata e lustrosos como óleo.

Nunca foi explicado a existência de tamanha peculiaridade, mas o mundo tinha outras preocupações mais preocupantes do que a bizarra peruca natural da garota. 

E estavam ocupados demais pra tentar entender por que era tão simpática. E tão positiva. E tão feliz. Não tinham tempo pra pensar que, porventura, sua amável euforia pudesse ser uma bela de uma atuação.

Já Leonardo, não a compreendia. A sensação de não ser querido o cutucava. Ouvia pelos cantos os resmungos dos seus pais adotivos, depois das broncas, que por si só já eram desagradáveis. 

Mesmo assim sua irmã insistia em acreditar que não havia problema. Afinal, eles só estavam agindo como pais.

Falsos pais de dois moleques que precisavam de carinho, que não tinham mais ninguém no mundo a não ser um ao outro. Era uma tarefa difícil, ainda mais se não fosse espontânea. 

Léo via-se em uma bolha separada daqueles que o criavam. E tentava a todo custo puxar Veronicca para dentro para ter alguma companhia que concordasse com ele. 

Para ele, uma lástima forçada parecia pior do que tudo.

Andar pelas ruas fazia suas roupas deixarem de feder a mofo, embora os irmãos não o fizessem frequentemente por conta dos olhares estranhos que recebiam. 

Viviam no quarto mais fundo da casa — onde normalmente seria o porão, um lugar úmido o suficiente para conter o calor da cidade. 

Por escolha ou não, só tinham um ao outro, afinal, seus “pais” estavam ausentes o tempo todo. 

Veronicca fora privada de frequentar a escola por motivos de “segurança”. Não queriam que ela sofresse do mesmo mal da mãe, ou, em outra perspectiva, acabasse por causar outro acidente. 

Era o suficiente para minar sua vontade de se misturar com a sociedade e o que o irmão a ensinava era sua única experiência de mundo. 

Veronicca poderia dizer que isso era ruim, mas não vira o bastante do mundo externo para se importar. Ou apenas viu o suficiente.

Sendo um ano mais nova, era bem menor que o irmão — Leonardo era anormalmente gigante para um gato. 

Magra a nível ósseo e leve como pena, ela sumia no próprio manto capilar. Suas mãos eram tão finas que viam-se largos vãos em seus dedos. Para o irmão, segurá-las era como pegar gravetos congelados, já que mesmo com as luvas podia-se sentir o frio anormal da menina. 

Mesmo numa cidade quente como Vigdra, Veronicca não era muito capaz de se aquecer e mesmo sob o sol dizia sentir calafrios. O motivo real era proibido de ser mencionado, tal que seu projeto de família permanecia negacionista a isso como se fosse resolver o problema.

Somente em casa Veronicca despia suas mãos e braços, apenas quando percebia que Leonardo não estava atento com isso. Mas sempre que reparava, ele a mandava vestir as luvas de renda imediatamente. 

Não adiantava relutar. Vestia-as como se fossem sabão e não gostava disso também. Sua vontade era suprimida pelo ideal ridículo de segurança. Mas ponderar sobre isso também não trazia resposta alguma.

Logo, a tão  temida segunda-feira chegou com seus raios matinais. 

O gato acordou em sua rotineira antecedência e numa rara vez beijou a testa de sua irmã, que num sono profundo jazia. 

Estava disposto a fazer algo diferente hoje, mas seus ânimos foram ceifados por uma triste descoberta.

A raposinha desmantelada não estava lá. Não ouvira sua voz durante a chamada, tampouco a vira em qualquer corredor. Se pegou pensando no que podia tê-la feito se ausentar...

— Bruna! Como você ainda está aí, levante-se!

Acordou de um ímpeto: onde é que estavam as cobertas, por que raios a cama era tão fria e dura? “Ah, eu estou no chão.” Nem deu tempo de pensar se fora ele que a jogou ali, pois o lobo seguia esganiçando: — Já são sete horas, por que não acordou? 

— Você devia ter me acordado! — rebateu.

— Você tem suas obrigações, pirralha — bufou em resposta, como se dissesse que aquilo era um absurdo. Não queria admitir que ela tinha razão. 

Bruna ignorou a fala e trancou-se no banheiro. Pouco tempo depois, ouviu-o se escorar na porta.

— Escuta, eu fui bonzinho e te perdoei, mas não garanto que Vanessa vá tolerar essa falta.

— Ah, se eu der sorte, ela chega depois do meu horário de saída.

— Não conte com isso. — Ele se retirou e o restante da frase foi um eco. — Sugiro que esteja preparada pra um treino árduo, caso contrário, cê tá lascada.

Ele teve razão, afinal. Vanessa não tolerou aquele atraso — que além de tudo se deu por mera preguiça. 

Bombardeou-a com sermões, injustos dado que faltou um mísero dia em um ano inteiro. E o pior ainda estava por vir; diferente de tudo que esperava, trancou-a no quarto. 

No começo, achou maravilhoso não ter de falhar dezenas de vezes para encher o ego da loba, mas depois de uma hora, já se via entediada. 

Na verdade, esfomeada. “Ela não pode me deixar morrer de fome.”

— Claro que posso.

— Vanessa, pra ela, aquilo é quase tortura. — Lucas tentava convencê-la. — Sabe muito bem que ela prefere mil vezes tentar te dar uma surra e falhar do que ficar parada o dia todo... E provavelmente passar fome lá, argh, eu tô indo alimentar ela!

— Dar comida eu até autorizo. Mas se começar a puxar conversa, quem te puxa sou eu. — Ele saiu, resmungando qualquer xingamento. — E pelos cabelos, ouviu?!

Quando Bruna o viu aparecer com um prato, quase curvou-se perante aquela divindade, louvando-o por finalmente libertá-la de seu sofrimento.

— Ah, você me salvou. — ela disse depois de lamber o prato. Um pouco abismado com o monstro que a fome a tornava, ele apenas riu. fazendo menção de se retirar, ele deu-lhe as costas. 

— Espera aí! — Ela pediu. — Qual o significado desse castigo estranho?

— Por hoje, não faço ideia. Mas se fossem outros motivos, saberia perfeitamente. Chama-se meditação. 

Foi ótimo. Passou um dia inteiro trancafiada sem nem saber por que estava ali, presa como um monstro em cativeiro. 

Sua mente era sinônimo de chutar portas e revoltas agressivas, a rebelião da jarra d'água. A loba sabia como torturá-la e iria fazê-lo até onde bem entendesse. Deveria se acalmar.

Mesmo com toda sua fúria acalorando o quarto em vapor, parou de grunhir e rondar as quatro paredes. Quem sabe o bom comportamento a libertasse. 

De vez em quando, pensava na palavra desconhecida que Lucas dissera. Nunca leu nada igual e era um termo distante de tudo que podia imaginar. Contentava-se em pensar que uma hora Vanessa voltaria.

E voltou, estranha, não mais com seu ar escarnecedor de sempre: um severo olhar que não admitia discussões estampava seu semblante como uma escultura em pedra. 

Era difícil olhá-la assim, tão séria. Seu rosto acidentado a deixava pior do que já era.

— Pode me dizer o que significou todo o tempo que perdi? — Bruna iniciou, cheia de impaciência, sem brechas.

— Hoje eu já pretendia lhe ensinar sobre isso. — A loba respondeu. — E, bem, como matou aula e te conheço bem, até que foi uma ótima punição, mesmo que não tenha sido essa a minha intenção.

A loba gargalhou da carinha perplexa que recebeu. Se soubesse o quão ficava adorável, Bruna nunca a faria.

— … Nem tudo é só briga, minha cara brasa. Assim como o corpo, a mente também precisa de descanso.

— A minha precisa é de algo pra se concentrar, não desse tédio todo. — A menina bufou, birrenta.

— Um dia ela lhe será útil.

— Fala da tal da meditação?

— Sim. É uma forma de repousar a mente, esquecer problemas, ignorar pensamentos fúteis... É um estado neutro, em que tudo se esvai, restando somente a calmaria.

— Você, falando de calmaria? Não me faça rir.

— Bruna, isso é sério. Não irei lhe obrigar pois sei que você, com essa brutalidade toda, jamais conseguiria. Isso serve mais como um relaxamento total do que como treino e seria bom que aprendesse a conter essa sua mente antes de cometer loucuras. 

Lentamente, seus passos-cliques levavam Vanessa para a porta. 

— Não pense que estou brincando. Se continuar com essa fúria toda, um dia vai explodir e arcar com as consequências.

— Você ainda não respondeu minha pergunta.

Vanessa parou, ainda de costas. Pôde sentir a agressividade mesmo naquela frase simples. Abanou a cabeça em desaprovação, tornando a andar enquanto dizia:

— Não tem uma finalidade exata. Mas só de olhar pra você, percebe-se que é necessário.

— Argh, mas o que deu nela hoje?

Praguejou pela milésima vez, aprisionando Lucas — o tutor — como um ouvinte em seu quarto enquanto ajeitava-se para finalmente dormir. 

— Me fez perder um dia todo à toa! Como vou ter tempo de fazer minhas lições agora? 

— Talvez ela quisesse te ensinar algo novo...

— Algo novo eu aprendo se for interessante! Sentar no meio de uma sala e ficar horas sem fazer nada não me é nada útil! Sabe o bêbado que reflete a vida? Foi ela hoje!

O suspiro de Lucas demonstrava mais severidade do que aquela situação merecia.

— Querendo ou não, ela sabe o que faz e muito bem. Muitas vezes pode ter aparentado infantilidade, mas ela é mais sábia do que parece, mesmo que não seja como você esteja acostumada a ver.

A informação a irritou ainda mais. Não era plausível que alguém como Vanessa pudesse ser sábia, era só uma bêbada mal-amada que fingia que sabia o que fazia. 

Sabendo das consequências que teria se dissesse isso a ele, rebateu: — “Acostumada a ver”? Cê acha que eu sou uma princesinha que não entende as coisas?

— Exatamente por não ser uma é que precisa aprender o fundamento daquela meditação. Olha, eu não devia te dizer, mas ela acha que você está deixando de ser como era.

— Não me sinto nem um pouco diferente. Eu não mudei um fio de cabelo.

Do fio de cabelo, talvez tivesse razão. Mas realmente havia traços diferentes na raposa que se mostraram recentemente.

Esteve distraída, despreocupada, desfocada, tudo o que nunca fora. Porém, isso não era motivo para Vanessa tomar uma atitude como aquela. Todas as pessoas cresciam e mudaram, por que Bruna não podia mudar também?

— Escute, ela não te odeia. — Lucas continuou. —  Deixo logo claro antes que tente matá-la por isso. Ela só não vê mais em você aquela perseverança, acha que está se tornando uma... Idiota. Ela não quer que você deixe sua dedicação.

Bruna ficou em silêncio por um tempo, sem saber como reagir. “Não posso acreditar”. 

Todo o tempo que passou desde a saída do Das velas procurando vantagem na própria solidão era uma espécie de “comportamento ideal” para a loba. 

E todo o tempo que passara aliviando a mente com Lukas — seu grande amigo — significou uma espécie de regressão. O que, logicamente, significava que não podia ser ela mesma nem que quisesse, porque não soava ideal. 

Vanessa queria moldá-la a seu bel-prazer e não eram relevantes as buscas da raposa por um pouco de conforto em sua vida monótona.

— Então era pior do que eu pensava.

A raposa deitara-se enquanto o lobo contemplava-a, silencioso. Ela deu-lhe as costas propositalmente como um pedido de retirada. Por hoje, nada a faria mudar de ideia.

— Queremos o seu bem. Espero que você o compreenda como nós.

Era a única coisa que ele tinha a dizer, além de desejar em vão que tivesse uma boa noite.

 



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