Asas ao Vento Brasileira

Autor(a): Akarui K.


Volume 1

Capítulo 11: Dor de cotovelo

Bruna acordou desesperada sob a quantidade anormal de gritos irritados ameaçando revirar aquela cama com ela em cima. Por pouco, poderia perder o ônibus.

E isso se devia a um bom sono com razões específicas demais, dado que um charmoso par de esmeraldas a olhava durante cada minuto do dia anterior.

Graças a um desorientado que roubou seu lugar convencional no transporte, precisou sentar-se no único lugar vazio, aquele que podia lhe dar uma nova companhia até daqui a umas quadras. 

Em oposto à sala de aula, sentar-se na frente era pedir barulho: aqueles que embarcavam primeiro esperavam os amigos num lugar de fácil visibilidade. 

A locomotiva escolar parecia uma torcida esportiva onde o caos e gritos exacerbados ecoavam sem pausa dos grupos de colegas. Foi com uma expressão de desgosto que aquele que morava mais perto depois de Bruna subira no ônibus.

Se demorando na análise da locomotiva cheia, o último passageiro já mirava seu lugar, preparando-se mentalmente para ignorar uma pessoa tagarela que vivia erguendo-se para falar com quem estava atrás. 

Porém, algo inesperado o fez quase paralisar. A garota enerion estava ali, bem onde deveria ter outra pessoa. A ideia de dividir o microespaço com ela fez seu coração palpitar de nervoso. 

Fingindo naturalidade, sentou-se ligeiro ao seu lado. Foi impossível não notar tanto perfume: era como se estivesse no mais florido jardim com o nariz enfiado numa roseira. 

De vez em quando, a espiava, sem acreditar que estava mesmo ali. Com tudo que tinha de coragem, tentava ler as palavrinhas miúdas de seu livro. 

A única proximidade que tinham era separada pelo braço da poltrona que machucava seu cotovelo ossudo — e não era de toda desvantagem, já que suava tanto que tinha medo de que isso virasse um problema. 

Queria perguntar-lhe que livro era aquele que tomava sua atenção todos os dias, para então ter a audácia de dizer que queria estar no lugar do objeto — sendo um detalhe a sua imensa timidez, que o impedia de tornar esses pensamentos realidade. 

Queria fitar seus olhos sem que fosse a vinte metros de distância, mas não conseguia olhá-la nem por um instante sequer. 

Ocupou-se tanto pensando no que devia fazer que nem reparara que a resposta estava bem ali: pegou sua bolsa para tirar o livro, só assim ela perceberia que seu vizinho de banco gostava de algo em comum. Era a chance perfeita. 

Que seguiu apenas na mente: quando puxou a bolsa do chão, a raposa já havia guardado sua distração e erguia-se ao seu lado, aproximando o joelho para fora do banco e pronunciando um pedido de...

— Licença. — E foi o máximo que Léo conseguira, um único timbre. Um tanto agudo, sério e mais apressado do que gostaria. 

E tinha opção? Iria contentar-se só com ele, relembrando o tom exato em que foi pronunciado. Pelo menos esteve ali, perto por uns minutos, tentado a roubar-lhe um beijo caso ela o olhasse.

Bruna nem se lembrava o que via de tão legal em ficar só enquanto direcionava seus passos ao garoto que a esperava próximo do arco de entrada.

Apesar de, no fundo, ainda ter medo de tudo aquilo ser parte de um plano ridículo para apedrejá-la, Lukas prendia sua atenção como uma coleira prendia uma fera. 

Apesar de se darem bem em conversas, ele ainda não demonstrou querer falar de coisas pessoais, sendo tudo que Bruna sabia apenas que sua mãe era muito rígida.

Quanto à família, a raposa tampouco tinha alguma história legal. Aquele laço cordial com os lobos era tão seco que nem gostava de pronunciar o sobrenome, que nunca deixaria de lhe soar estranho.

Dedicando um pensamento a isso, tentava adivinhar qual era o sobrenome dele. Ele cheirava a nobre somente pelas roupas que usava e por sua — revelada involuntária — falta de habilidade em se portar como um garoto normal.

Mesmo assim, até que o papo rendia, saudável e jovial. Bruna ponderava que essas coisas tão simples não seriam consistentes numa pessoa com planos ambiciosos. 

Não fazia mesmo sentido que ele fosse alguém ruim — e aliás, mesmo que fosse, a raposa tinha plena capacidade de descer-lhe a porrada. 

Todos os dias, Bruna se pegava pedindo pra que ele não estivesse mesmo fingindo nada e que continuassem do jeito que estavam para sempre — uma amizade suave e inusitada, puramente confortável. 

E os dias foram passando, assim, os meses se foram e aquele medo bobo sumia conforme o conhecia mais e se encantava ainda mais pelo seu jeito simplório de ser.

Mesmo assim, não se permitira perder o foco por um minuto: ainda estudava com afinco, lendo e relendo capítulos — e qualquer um podia dizer que o fazia apenas para desenvolver assunto com ele depois.

— Não consigo entender por que você estuda tanto isso. — Ele disse enquanto recolhia o próprio material sem motivos. Pelo horário, estava prevendo o toque do fim da última aula. — Na verdade, não entendo por que se dedica tanto. Ainda há muito tempo pra você aprender, não precisa decorar tudo agora.

— Eu só gosto. Na verdade, comecei a estudar por causa do meu pai. 

Desabafava com ele tudo que preferia não “dar o braço a torcer” em casa. Como não trocava muitas palavras pessoais com os lobos, em algum momento elas surgiam para seu amigo.

— … Quero saber tudo sobre aquele lugar, o país dos céus. Também de outras nações, tem bastante coisa interessante a respeito de outros reinos. Sabia que Xiaghe é o primeiro mais rígido do mundo e que lá não há condados, apenas ducados? 

— Claro que sei. Aliás, Solária é o segundo, deve saber disso. Seu pai deve ter altos problemas lá. — Ele tentou beliscar sua fuça. — Espertalhona.

— Você sabe disso só porque te falei.

— Sempre soube. — o sino tocou, ele já preparado a esperava de pé. — Não é muito raro na minha vida ouvir sobre as atrocidades religiosas de lá. Mas seu pai era ateísta, não era?

— É... E acho que me influenciei um pouco. Sabe, talvez todos os deuses que creem por aí nem existam realmente, sejam só uma coisa pra explicar por que outras existem. Prefiro acreditar que existe apenas um deus e que ele criou tudo, sem que pudéssemos apenas deduzir sua existência única.

Lukas teria dito que o “único deus” já era mencionado em todas as religiões, o Supremo, com seus diversos nomes e papéis em cada “versão”, mas sabia que ela nem ligaria, como não ligava para nada que fosse apenas uma crença coletiva.

— E quem é que criaria o fogo senão a deusa do fogo?

— Eu. — Ela soltou uma risada insana.

— Mas, olha, parando pra pensar, seria bom que você também focasse na história dos reinos que você tanto ama saber. Já estudou a história de nosso reino?

— Ah, não, história é chato.

Ele gargalhou alto, jogando o rosto para trás. O gesto indicava seu hábito de reações mordazes, mas isso não a assustava mais como antes e agora só podia rir com ele. Se recuperando, ele voltou a dizer:

— … Como você pode achar a história chata se vive inalando geografia? É quase a mesma coisa... Só que melhor.

— Não é melhor coisa nenhuma. 

— Ah, pensa comigo. É mais legal medir uma parede ou construí-la? Quer dizer, a geografia mede o território... E a história explica tudo isso, desde o começo de tudo. Sacou?

— Hm, chato. Geografia não mede só o território, besta. Ela estuda também as finanças, a matéria-prima, quem manda em quê...

— Sabia que você é mais interessada nisso do que muitos nobres por aí, né?

Bruna franziu a testa, sorrindo ao reconhecer que a tosca comparação fazia jus à vida real.

— Que fato ridículo. Eu nem sou nobre e sou menos boboca que eles, há-há. É estranho saber que um plebeu poderia reger um estado melhor que um nobre e que não podem só por não terem título. Fico pensando como seria um país que fosse reinado por competência, não por nome ou dinheiro.

Era um idealismo bem inteligente, mas ninguém era muito simpático com ele, mesmo com a alta liberdade de adquirir conhecimento em Oliphia. 

Qualquer nobre que ouvisse aquilo teria pleno direito de expulsar ou mesmo prender por um crime chamado “alienação”, ou algo relacionado com ameaçar o poder regente. 

Lukas tinha pensamentos como aqueles não por inteligência mas por suas experiências, sendo que ainda sim se culpava por pensar nisso — ouvir aquilo dela o fez se sentir mais tranquilo quanto à rebeldia. 

— Aposto que, se você regesse um estado, ele seria muito bom... Até porque, todos poderiam andar de cabelo bagunçado sem se preocupar, porque veriam que nem a regente se preocupa. — Gargalhou até o momento em que um tapa de temperatura anormal estalou alto em seu braço.

A amizade fluía bem entre eles. Era comum vê-los compartilhar extensos momentos de conversa, mas não fazia o menor sentido para Léo que pessoas tão diferentes fossem mesmo tão amigas. 

Mesmo tão distintos, não havia um empecilho sequer, um único motivo para provar que nada daquilo seguiria bem. Ele tinha cara de nobre e claramente não estava no mesmo nível que ela. 

Cansado, arranjou forças para escrever qualquer porcaria à irmã antes de se deixar adormecer para esquecer a frustração. Será que também não estava no nível para agir como ele agiu? 

Pensar nisso era sabotador, odiava que o passassem para trás, mas odiava ainda mais que o fizessem sem nem imaginar que estava competindo também. 



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