Asas ao Vento Brasileira

Autor(a): Akarui K.


Volume 1

Capítulo 1: Apenas uma criança

Sua amabilidade era insuficiente dentro dos padrões sociais. Estava perdida entre o conceito de moleque e o de bicho-do-mato e encontrar alguém para interagir soava complicado. Ainda colocaram a culpa disso nela, de todo modo. 

Não era como se crianças pudessem definir uma personalidade socialmente aceitável para poder conviver em paz. De forma genuína, a raposa apenas agia como queria e isso parecia errado por algum motivo. 

Ser criança era uma droga e, aparentemente, continuava a ser a única que pensava assim. Bruna achava tão fácil para eles se divertirem uns com os outros enquanto ela tinha de caçar meios para tornar seu dia interessante. 

Era errôneo se revoltar com isso porque sempre acabava apanhando, chorando, ficando emburrada e tornando a fazer as mesmas coisas na tentativa de obter algo mais divertido nelas. 

Queria que todos sumissem com sua maldita felicidade para que não precisasse invejá-los, mas uma ideia sem prática era sempre uma ideia, porque a prática muitas vezes era caótica — apenas em seu caso.

Sua aparência era o oposto de extraordinária, porém insistiam em desacreditar disso, lhe enchendo de apelidos para exaltar seus defeitos, já que ninguém fazia questão de lembrar seu nome. 

— Faísca, Faísca! Esse tomate se parece com você! — Qualquer criança dizia, atirando a fruta na parede e apontando para a gororoba. — Olha! Agora tá igualzinho!

Parecia ser uma filha bastarda, mesmo sequer conhecendo a palavra em si. E agia como uma também, odiando seus irmãos como o demônio odiava a deus.

Mesmo que os punisse de mil formas, não era suficiente para pararem com as zombarias. A menor oportunidade de ficar sozinha servia de bálsamo e aliviava tamanho estresse, desnecessário dado que era apenas mais uma criança — como eles, apesar de diferente deles. 

Contudo, ainda havia alguém que gostava de conversar, além dos insetos que só zuniam em resposta. Para Bruna, Lucian era o cara. O achava forte e bonito e queria ser forte e bonita como ele também. 

A águia vivia ocupada com as lenhas, mas não deixava de lhe dar certa atenção quando podia. Gostavam de conversar sobre qualquer porcaria que acontecesse ao redor, como o quanto as formigas eram feiosas e ficavam deliciosas quando assadas. 

Bruna confiava nele para reclamar dos seus fúteis dias de luta enquanto ele a ensinava a lidar com isso da forma mais rudimentar possível. 

Na visão dele, a garota tinha um gênio forte e sempre foi diferente das outras crianças, desde o modo como fora encontrada e salva até seu jeito de ver o mundo.

Ademais, dividiam o quarto desde que ela tinha uma cabeça de maçã. Não havia muito espaço no quarto das meninas e tinham de enfiá-la em um canto que a permitisse ser isolada do caos infantil, dada a fragilidade de um recém-nascido. 

E o eleito desocupado responsável por essa tarefa era ele, então não tinha muita opção de ficar longe da menina de todo modo.

A curiosidade dela despertava nele alguma razão de procurar resposta para tantas perguntas. “Por que crianças perguntam tanto? Eu adoraria poder dizer que não tenho tempo para isso”, ele pensava repetitivamente. 

Obrigado a ser paciente, explicava cada qual com seu quadrado para a raposa, que sempre sustentava o mesmo assunto com pelo menos mais três questões. Ser amigo dela era realmente coisa de desocupado. Mas gostava mesmo assim.

De todo modo, ter companhia para o trabalho era ótimo para impedi-lo de pensar besteiras. Bruna perguntava tanto que o convenceu a ensiná-la o que eram armas brancas e por que aquele monte de madeira no quintal nunca era jogado fora. 

Pequenas coisas o convenciam a seguir lhe dando atenção. Ela dizia que os apelidos pareciam bem mais legais quando eram ditos por ele. O que só significava que ele era a única pessoa que ela realmente gostava. 

Sendo aliada do cara encostado e odiada por todo mundo, Bruna estava sempre de castigo. Só era divertido bater em alguém quando os ouvia gritar, porque depois era ela que apanhava e ainda tinha que ouvir uma lição de moral. Toda vez era a mesma coisa.

Os sermões eram dados por uma professora chata de linguagem, mas em maioria, Alva, a gata anã. 

A primeira mulher até era interessante, mas sempre parecia estar jogando no outro time, por isso Alva seguia sendo sua preferência, apesar da rispidez.  A velhinha era matriarca na grande mansão e geria o orfanato com menos de um metro e trinta de altura, o que era engraçado na visão da menina. 

De tantas vezes que a via, conseguira descobrir metade das informações que precisava nos breves momentos que a distraía de sua finalidade.

— Você sabe que eu já sei de tudo isso aí. — disse a raposa a ela certa vez. — Por que continua dizendo sempre as mesmas coisas? 

— Repito pra que você se lembre, garota.

E sempre saía da sala pronta para esquecer tudinho, indo contar para seu pai as fofocas das outras cuidadoras e como havia surrado o último idiota que a irritou. Pois, afinal, estranha como fosse, o interesse em se moldar para caber em vestes comuns seguia ínfimo.

Não comemoravam os aniversários como todos os outros, afinal ninguém dali tinha uma data de nascimento exata. Era necessário um único bolo para saciar as crianças, de todas as formas. A ideia era apenas comemorar a vida — gostavam de chamar de “dia de todos”. 

Lucian não era de se entrosar nas comemorações, mas não podia negar que gostava da garota e vê-la isolada sempre o incomodava. Pretendia presentear Bruna com algo que ela pudesse carregar para a vida toda e se lembrar dele. 

No entanto, ela não tinha gostos sutis. Não era fácil pensar em algo para uma criança que o único divertimento era se sujar e fugir de banhos. Pensando nisso, ele girava e contemplava o pequeno cubo de madeira que pretendia esculpir. 

Tinha certeza de que ela iria detestar um pingente e atirar no lixo quando desse as costas. Joias eram uma radical oposição ao que a menina comportava. E além disso, parecia gostar de nada, já que até as roupas ela roubava dele. 

“Eu vou errar e ela vai odiar”, pensava, sem muitos argumentos contra isso. A única coisa que parecia provável era o ódio da garota contra o presente e suas palavras sobre o quanto ele falhou em demonstrar que a adorava. 

— Lucian.

O susto foi inevitável, já que esquecera totalmente a porta aberta. Não tinha hora pior para Alva aparecer. 

— O que foi? — respondeu, impaciente. — Estou ocupado agora. Não tenho tempo pra seja lá o que você for pedir.

— Eu não ia pedir nada. — Ela dava de ombros, em tom de deboche. — Só quero entender por que está tão longe das crianças se a sua criança está sozinha agora.

Ele bufou e se ergueu, recolhendo o objeto na mesa e escondendo-o na primeira gaveta que viu. A gata anã, intrigada, cruzou os braços e adentrou o quarto, decidida a entender o drama.

— O que há com você?

Alva sempre foi boa com ele. Peitou contra quaisquer oposições sobre a permanência de Lucian no orfanato. Ele não tinha um bom histórico nem com confiabilidade nem com crianças, mas queria uma chance para recomeçar.

Sua história era odiável e, no mínimo, revoltante. Poucas pessoas a conheciam e Alva era uma delas. 

Lucian surgiu desarmado e com claras cicatrizes de uma vida difícil, recusá-lo não estava dentro do que a gata levava como lema de vida. E se não fosse pelo poder decisivo que tinha na mansão, a águia estaria fadada a morte. 

Por isso, Lucian devia a ela nada menos que seu serviço e algumas boas explicações, a tudo que ela perguntasse e sobre qualquer coisa. A velha nunca ofereceu risco, mesmo que pudesse, então era o mínimo que ele devia fazer.

— Ela não é minha garota.

Isso podia parecer óbvio a alheios, mas não para ela. Era uma frase carregada de um significado sombrio.

Lucian tivera uma filha antes de Bruna. A única coisa que sabia era que a menina falecida também era uma raposa, o que justificava a relutância dele em assumir que servia de pai à Bruna.

— Ela é tão igual a Henriqueta que não consigo pensar que ela goste de mim. — continuou ele. — Ela… Eu sinto o tempo todo que estou falhando. Eu não estou dando atenção tanto quanto podia. Ela vai achar ridículo qualquer coisa que eu fizer.

— Você fala daquilo que guardou na gaveta antes de eu ver?

Envergonhado, ele se calou. A gata foi ao local que mencionou e encontrou o pequeno cubo de madeira ali.

— O problema é isso? — questionou ela.

— Se fosse, era ótimo. — Ele deu as costas, incomodado com a tentativa dela de advinhar. — Bruna é tudo que eu odiava na Henriqueta. Às vezes até acho que a odeio, mas… não é verdade. 

Alva achou aquilo horroroso, mas o sentimento não a levaria a lugar algum se quisesse mantê-lo são.

— O que você odiava nela?

— Eu não sei bem. Sempre parecia que ela estava ali para me julgar e isso me dava raiva. Mesmo que ela e a mãe não soubessem nada sobre meu irmão, eu me sentia julgado. Então me afastei delas. Das duas. As ignorei até me afastar de verdade. Nunca me achei digno do amor delas.

Alva colocou o cubo sobre a mesa, diante dele. Os frios olhos da águia contornaram as arestas do objeto por longos segundos.

— Henriqueta não gostava de nada que eu fazia. — ele prosseguiu. — Porque eu sempre estive ausente.

— E por que acha que vai continuar igual, Lucian? Não é como se desse pra voar pela janela agora. Você está caindo em armadilhas de novo. 

Ele permaneceu calado. Sua garganta se movia como se ele quisesse dizer mais alguma coisa, mas as palavras não saíam. “Não dá pra dizer isso agora, quando parece que tudo está tão bem”, ele seguia pensando. 

Alva o fitava com seus límpidos olhos felinos como se soubesse de seus segredos. Ela não questionaria até que ele decidisse contar por conta própria. A velha sempre agiu deste modo e por isso era tão boa com as crianças.

“Mas ela será boa comigo se eu contar tudo?”

Não estava nada pronto para isso.

— Espero que ao menos tente. — Ela finalizou, sem demonstrar qualquer mudança de semblante. E com razão, como sempre. Não podia cometer o mesmo erro duas vezes e deixar a confiança da garota se esvair entre seus dedos.

Fosse o que fosse, poderia pensar nisso depois. Tinha de checar se ela não tinha comido muito mais fatias além do que cabia. Era pra isso que estava lá, afinal.

Bruna esteve calada demais no dia de todos. Era chato responder que apenas não tinha dormido muito bem. Em breve eles saberiam que a desculpa não era consistente. 

Viveu o dia que costumava ser o mais alegre do ano atrofiada numa cadeira no canto, escondida dos olhares que tanto a esnobavam. Todo ano que passava parecia cada vez pior envelhecer, porque cada vez mais, tinham menos pena de estragar seus dias.

Tentar fugir da realidade se revelou uma péssima ideia, porque ter dormido cedo no dia anterior implicou em um barulhento despertar. 

Era normal ver muita gente acordada, mas não tão perto, comendo ao seu lado e inventando novas formas de dizer o quanto seu cabelo era feio e bagunçado. Não demorou para que se retirasse para tentar comer no quintal, longe de tantos gritos altamente irritantes. 

Poderiam dizer que um milagre a tirou da cama cedo, mas a palavra fora proibida desde que a raposa surgira — e fizeram questão de que ela soubesse disso, e também de que era para ter morrido antes de chegar ali. 

Fingiram não notar nenhuma estranheza, ou apenas não se importavam o bastante com isso. Exceto alguém, que sabia como irritá-la de verdade quando não notava seus dias ruins.

— Qual foi, garota, tá morta? — Lucian atiçou de propósito, sacudindo seus ombrinhos. — Levanta daí que quem come no chão é bicho!

O máximo que recebeu de resistência foi um severo olhar odioso. Bruna tinha olhos pretos como uma fera selvagem, mesmo sendo uma raposa. Era a única coisa que a diferenciava da doce criança de outra época, a que realmente considerava filha. 

Temia aqueles olhos mais do que qualquer um, mas isso não o impediu de se irritar com sua insolência.

Agarrou-a dali e a jogou no ombro, levando-a para longe de seu pão inacabado. Iria dar-lhe uma lição de moral mais relevante do que uma conversinha tola. Para esse tipo de criança, era necessário outra abordagem.

— Caramba, me deixa! — ela esperneava, socando seu ombro.

— Nem vem! Agora você vai trabalhar. Já está na idade certa pra parar de drama, guria.

— Eu tenho só seis anos! O Cauê tem o dobro e não faz nada além de encher o saco — bufou, ainda tentando se soltar. Qualquer que fosse o argumento, não impediria Lucian de seguir com o plano para tirá-la de perto daquele poço de crianças zombeteiras.

— A-a-a, sete. Com essa idade, eu já ajudava meu velho em algumas coisinhas...

— Coisinhas. — resmungou ela. — Não trabalhos.

O único privilégio que tinha em ser rejeitada era deixar de ter estudos, mas isso não a salvava de dias como aquele. Agora sozinhos do lado de fora, ele se preparava para encher seus ouvidos de coisas pouco interessantes para ela.

Bruna até gostava do que Lucian falava, mas só quando ele ainda estava falando. Na prática, era cansativo; apenas olhar a pequena pilha de peças para esculpir lhe fazia arder os punhos.

— Certo, certo, ouça bem!

Empolgado como uma criança de sete anos — e ela relutante como um rabugento de trinta -, Lucian lhe explicava, pela milésima vez, o básico de sua ocupação diária. 

Segundo ela, não existia um “básico” para os lenhadores, já que seu único trabalho era decepar árvores. Recordou de novo a pilha de lascas e um calafrio lhe correu o corpo.

Lucian passava uma pedrinha de amolar na lâmina do machado, sempre no mesmo sentido, enquanto contava-lhe o quanto ser um decepador de árvores podia ser divertido. 

Ele sabia como fazer render a conversa e logo Bruna estava curiosa novamente, perguntando tudo que achava perguntável.

— Por que está passando a pedra no machado? — Ela começou.

— Pra afiar. E cortar mais fácil.

— E é só isso? Achei que fosse algo mais difícil, já que as árvores são grandonas. Ah, e ainda tem aquelas gigantes ali, deve dar uns dez de você ao redor do tronco delas, imagine o trabalho que dá decepar um negócio daquele...

— Não, já disse que é impossível decepar uma árvore, Bruna! — Retomou a paciência com um suspiro breve. — Olhe, a palavra decepar não tem nada a ver com lenha. Tudo bem, talvez quase. A árvore simplesmente vai se separando aos poucos… Argh, é melhor eu te mostrar logo.

Ultrapassaram o limite seguro do quintal e iam afundando os pés floresta adentro. Já que era apenas uma demonstração, qualquer tronco que fosse estreito serviria bem para o serviço, independente da umidade. 

Bruna esticava o pescoço para arredores empolgada com a ideia de estar onde ninguém de sua idade podia. Ao encontrarem um alvo suficientemente bom, Lucian rodou o machado nos dedos, pensativo. “É gordinha, mas vai ter que servir. Se ir muito longe, vão comer o meu couro por colocar ela em risco.” 

Ainda estavam visíveis para o orfanato, então não seria de grande risco ensiná-la ali mesmo. Sacudiu o rosto para afastar a hesitação e tentou evitar pensar na chuva de xingamentos que levaria caso descobrissem onde pisavam.

— Certo, Bruna — iniciou, suspirando. — essa é uma tarefa que exige muita força. Vê a grossura dessa árvore? Tem que ser muito paciente para derrubar isso.

— Então você é forte só por cortar árvores?

— Mas é claro, pô! O que você acha que um lenhador faz?

— Decepa árvores.

A cada machadada, uma parada de cinco minutos para uma explicação. Contendo a ansiedade, Bruna ouvia tudo com atenção para se certificar de que não falharia. 

— Tudo bem. Você entendeu?

Com um aceno decidido, ela recebeu a pesada ferramenta. Por mais que seus bracinhos não o aguentassem, conseguia o manter numa posição ligeiramente favorável a si e ao que ia fazer. Na visão dele, ela mais parecia um cabideiro.

— Não, não é assim. — Pegou o machado e o posicionou na vertical ao lado dela. — Uma mão embaixo e outra no meio, entendeu? 

Ela obedeceu, dando a segurança a si mesma e a ele pra soltar. Quando o fez, o peso a obrigou a tombar para frente e cravá-lo no chão. Foi engraçado, mas ele se privou de risos pois fazia parte do aprendizado.

— Acha que consegue pelo menos uma vez?

Ela o encarou furiosa, ajeitando a própria postura e tentando encarnar qualquer guerreiro que tenha lido em seus míseros sete anos. Lucian rebentou-se de rir.

— O machado é mais pesado que você!

Foi suficiente para ela, que não era exceção em tolerar zombarias. Com aquele olhar irritado, punhos fervorosamente cerrados e a fúria estampada em seus olhos sinistros, mesmo que por um instante ela parecia uma guerreira.

— Eu consigo sim! — ela urrou, enchendo-o de felicidade. “Ah, orgulho do papai.” Quem diria que sua raiva lhe daria superpoderes: Lucian deu espaço, esperando a pequena grande vitória da menina.

— Vá em frente.

Obedecendo-o, Bruna pôs-se a caminho da maldita árvore sem desistir da perfeição de pose que conquistou. “Você vai ver, árvore feia.” 

Logo acelerou a corrida para ganhar um impulso favorável. Ergueu a arma com tudo que podia, descarregando todo seu ódio com um rugido e acertando-a com todas as suas forças.

O prédio lá atrás foi enfeitado pelos rostinhos que invadiram as janelas: todos olhavam numa euforia abismada, procurando o raio que deveria ter caído lá fora. 

A pequena Bruna se virou, de peito cheio, para todos que a subestimavam, sentindo-se altiva e gigante, a maior do mundo.

— Eu disse que conseguiria!

E, no intuito de decepar, ela conseguiu... explodir.



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