Asas ao Vento Brasileira

Autor(a): Akarui K.


Volume 1

Prólogo - Como as cores despertam

As velas apagadas saudaram seus olhos no sutil despertar como pequenos fantasmas a observá-lo. Devia ser a primeira vez que tinha um sono tão calmo, sem pesadelos ou dor.

Consideravelmente alegre, Lucian cumprimentou as paredes ao caminhar, sendo um dos primeiros a acordar. O verdadeiro caos estava longe de acontecer, com as mais de vinte crianças ainda tombadas em sono profundo. Solitário, ele apenas podia — também pela primeira vez — desejar bom dia à cabrita velha a qual prestava serviço.

Trazer a lenha era seu trabalho, o que significava caçadas minuciosas para uma madeira firme e o menos úmida possível. Era o trabalho que ninguém queria fazer, aliás. Não que não fosse essencial, apenas significava que tinham de dar serviço à velha águia se quisessem que continuasse viva. 

E assim se seguia por anos, tempo suficiente para permiti-lo levar uma vida calma e lamber as feridas. Ou tentar.

A floresta parecia uma pintura em carvão, dessaturada mesmo num dia considerado quente. “Ou só eu vejo assim”, pensou. “Aqueles pirralhos devem ver tudo colorido e sinfônico como um circo, já que fazem um inferno todo dia”. Isso era o que o diferenciava delas: não conseguia lidar com a quietude da floresta do mesmo modo. Havia uma enorme diferença entre silêncio e paz, afinal.

Ao sair, suas narinas se preencheram com ares refrescantes, diferentes da habitual queimadura do frio. A neve estava tão baixa que parecia orvalho. Um dia atípico. Com certeza terminaria duas horas mais cedo e poderia continuar a leitura há dias aposentada, outra boa notícia do dia.

Seus passos relaxados o levavam para um monte de escombros em ferro e madeira. Dando um gole no café, estapeou a manivela da carroça mágica até que o fluxo começasse e, acompanhada de um pouco de poeira brilhante, o objeto se reajustou sozinho para a pose de um item funcional. 

Pilotá-la era sua parte favorita do dia, já que suas condições não lhe permitiam um carro. Jogando seus itens pessoais na carroceria, iniciou o trajeto sendo guiado pelo sol e pelos fragmentos de carvão que jogava no caminho. O carvão normalmente era perfeito para a neve, mas hoje estava baixa, então teria de redobrar a atenção.

Despercebidamente, quanto mais adentrava a floresta, mais o gelo sumia da grama. Poderia pensar que era uma simples mudança climática, mas vivia ali por muito tempo. Quase metade de sua vida. Tinha experiência o suficiente para ponderar que aquilo era impossível. 

Podia até ver pequenos feixes dentre as árvores, sendo que nunca fora tocado por um mísero raio de luz naquele fim de mundo arbóreo. Algo estava errado e tinha de averiguar a situação antes que jogasse seu único bem útil — a carroça — em um canto onde poderia ser interceptado. 

Decidido, desembarcou e pôs seus pés para trabalhar, carregando apenas seu machado e sua coragem para fuçar o ambiente.

Um tempo se passou até que a ausência de rastros descartou a ideia de estar, por acidente, em outro distrito. O lugar era pouco frio e as árvores eram boas, cortá-las não parecia má ideia. Mas antes que o machado se cravasse na madeira, algo tirou sua atenção e o fez olhar para trás.

Sentia-se observado, deslocado, como se estivesse em outro território; um local sagrado, proibido a mortais. Tinha alguma coisa errada ali. Naquelas cores, na luz do céu, no chão mais verde e ar mais abafado. E esse parecer não era nenhuma alucinação de suas sequelas mentais.

Foi então que, tão baixo como o som do seu próprio coração, escutou aquele choro. Uma criança soluçava em algum lugar.

A situação o deixou inquieto. A estranheza daquele dia o fez se questionar se aquilo era real. Esse mísero instante dessa ideia o colocou em estado ansioso. Olhava aos arredores sem saber de onde em exatidão o som vinha. Vinha de canto nenhum e, ao mesmo tempo, todos os lugares. 

“Não posso surtar agora. Não sei nem quantas milhas andei”, seu lado racional o lembrava. Nenhuma parede nem suas camadas de pano poderiam protegê-lo agora caso algo ruim acontecesse. 

Estava entre encontrar um pouco de sanidade ou paralisar no meio do mato, correndo o risco de ser pego por alguma coisa. Tinha de saber o que era aquilo, se era coisa da sua cabeça ou real. E nunca pediu tanto para que fosse um sonho.

Rodou o local até que se comprovasse a veracidade da coisa, que era constante e claramente audível. Depois de repetidos volteios, se viu rodeado pelo mesmo lugar onde o barulho deixou de aumentar. 

Felizmente, sua mente trabalhou rápido, mais do que acharia possível. Lentamente seu rosto subiu o olhar. Fitava as copas, incrédulo, ungido de um imenso detalhismo para evitar que o medo tornasse sua visão turva. De tanto olhar, parecia que elas giravam entre si e a ideia de ser um sonho tornou a surgir. 

“Eu devo estar enlouquecendo.” 

Quase como uma bronca, o esganiçar da criança o assustou em resposta.

Lhe faltavam opções, a única coisa que poderia fazer era esticar suas asas e olhar de cima. Bem, nada tinha a perder a não ser o tempo. O desembrulhar das penas surtiu em estalos audíveis, uma leve dor que o resgatou para uma ideia de realidade. 

“É impossível.”, reafirmava. “Ninguém que não tivesse asas subiria ali com uma criança…”

Os barulhos retumbavam em sua mente junto com o bater de suas asas; os gritos da criança ecoavam nas paredes de seu crânio. E tudo continuava aparentando uma grande ilusão, simultaneamente mentirosa e real.

Abatido por uma estrutura enorme, agarrou-se à primeira coisa que viu antes de entrar em uma formosa queda que garantiria sua morte. O hábito do trabalho pesado fez com que a pancada doesse menos que o normal, ao que seus sentidos se reajustaram e os ecos pararam por um instante.

Respirando fundo, firmou-se no galho, revelado mais espaçoso que sua cama. Voar novamente lhe trouxe certo atordoamento, mas outra coisa tirava sua atenção: a criança gritava quase em seu ouvido, provando-se mais possível que um dia ensolarado numa floresta congelada.

Seus passos o guiaram para o montinho de panos que lutava contra si mesmo. Era irreal o conforto da copa: uma espécie de salinha natural cercada o suficiente para impedi-la de cair e isolada o suficiente para evitá-la de servir de alimento a predadores. Um canto seguro.

“Mas por que raios alguém iria querê-la segura se a abandonou?”, ele pensou. Tristemente, concluiu que devia ser fruto da guerra.

Atendeu o pedido dos bracinhos impacientes. Vê-la de perto o fez ter certeza de que era um sonho — e por que não conseguia acordar? Primeiramente, as coisas estavam desprovidas de lógica e, em segundo lugar, a criança era uma raposa

Esse fato, por si só, já se parecia com alguma memória muito boa ou muito ruim da qual desgostava de se lembrar, pelo menos de forma consciente.

No entanto… seu cheiro era maravilhoso. Madeira queimada, o cheiro mais doce da morte, o que era bom de verdade. 

O sol invadia através das folhas, talvez marcando nove horas. Nem contou os minutos que esteve ali parado sentindo-a, olhando-a se aquietar e voltar para o sono. As mãos dele tremiam fortemente e ordenou a si mesmo que parasse. Funcionou, com o defeito de uma lágrima. 

Num piscar de olhos, o mundo pareceu se renovar. Só então notou o tecido em que a criança estava enrolada, maculado por uma extensa mancha de sangue que claramente não era dela.

Analisando bem, parecia uma escritura; letras familiares, ainda assim incompreensíveis, gravadas sobre o pano de modo desesperado. Nunca foi muito bom com palavras e não seria agora que aprenderia a ler outra língua, suas necessidades eram outras. 

Quando “acordasse” de fato, poderia tentar decifrar, reescrevendo tudo num papel e comparando com letras de verdade. Por enquanto, isso parecia tão irrelevante quanto sua obrigação, da qual se esquecera e certamente o faria tomar uns socos e o faria perder bem além das duas horas que disse a si mesmo que economizaria. 

Nada importava além daquela vida que mantinha em seus braços e o aquecia fortemente durante todo o trajeto de volta. Sentia-se banhado pelo sol e nada no mundo o faria se distrair da sensação daquele memorável momento, do qual não sabia se era mesmo um sonho. Agora, apenas pedia para que fosse diferente. 



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