Volume 1
Capítulo 5: O Rei de Kodekalain
— Priya, você poderia me contar exatamente como você veio parar aqui?
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Naquela noite, Priya havia acabado de terminar o banquete.
Estava de bucho cheio e mal conseguia se mover.
— Aaahh… ai minha barriga, não aguento mais!!
Soltou a fivela do cinto para poder ficar mais confortável e arrotou.
— Não exagere, filha. — Disse Rohan, o rei de Kodekalain. — Às vezes eu acho que você esquece a sua posição.
Ele limpava sua boca delicadamente com um guardanapo. Sua etiqueta contrastava com seu tamanho impositor. Tinha dois metros e vinte de altura, ombros extremamente largos, e seus caninos se expunham cada vez que abria a boca. Tinha a pele azulada e olhos de iris amarela e esclera negra assim como a filha. Na cabeça, dois gigantes chifres se contorciam.
— Papai, eu sei muito bem minha posição, é por isso que eu não me importo. Afinal de contas, quem é que vai reclamar da falta de etiqueta da princesa?
— Eu.
— Ah, você é o único, papai.
O rei de Kodekalain sorriu para a insolência da filha, mas seu olhar tinha um ar de preocupação.
— Ah! — suspirou —, minha filha, o que farei com você?
Eles estavam sentados a uma mesa retangular exageradamente grande. Seu pai estava numa extremidade, ela estava perto dele, sentada na cadeira adjacente. Estavam sozinhos, exceto por um mordomo da casta obsidiana que ficava numa porta afastada — o salão também era exageradamente grande. Gigantes lustres luxuosos reluziam pendurados a uma altura incrível.
Eles ficaram em silêncio por um tempo, até Priya dizer:
— Papai, como está indo seu plano de vingança contra os humanos?
O rei sobressaltou, fazendo os talheres sobre a mesa tilintarem. O mordomo obsidiano, na porta ao fundo, virou a cabeça na direção deles. Rohan abanou a mão, indicando que não havia nada com que se preocupar. Então, virou-se para a filha.
— Co-como você…
— Eu ouvi você através da porta, sua reunião…
O rei teve que parar e controlar sua respiração visivelmente alterada.
— Por que você estava me espiando?
— Eu não estava, papis… — ajeitou a postura — eu queria sair com você aí eu fui te procurar. Além disso, se era um assunto tão secreto assim, porque qualquer um que passasse poderia escutar?
— Havia soldados em cada ponta do corredor. — O rei estava com os cotovelos sobre a mesa, mãos juntas, cabeça baixa.
— Oh. — Ela disse, então sorriu como quem não quer nada.
— Você entrou pela janela?
— Hmm… talvez?
— Você não anda por aí usando sua forma de demônio, anda?
— Eu, é… eu-eu…
O rei juntou as mãos em posição de oração e olhou a filha de soslaio. Tinha um olhar preocupado, assustado. A filha, no entanto, agia como uma criança que foi pega roubando doces.
— Me diga tudo o que escutou.
— Nada de mais… foi só que você que você odiava os humanos e que… e que… queria dar um golpe de estado em Tabélia. E… tomar o poder… só isso. Eu acabei ficando desinteressada e fui embora.
O rei suspirou, aliviado. Se reclinou no encosto e pôs uma mão sobre o braço da cadeira.
— Hmm… Ah, minha filha — ele esticou o braço e acariciou suavemente a bochecha dela, levando seus cabelos negros e lustrosos para trás da orelha —, e pensar que algum dia você será a heroína salvadora desse reino.
— Oh, he he. Isso não é muita expectativa para uma pessoa só, não?
Rohan sorriu.
— Talvez. Mas, no fim das contas, como a casta mais elevada dos demonianos, temos que estar dispostos a fazer certas coisas que possamos considerar desagradáveis. Tudo para o bem da nossa raça.
— Ah, claro — ela disse, olhando pra saída. — Acho que eu… tô com sono — ela forçou um bocejo. — Vou indo dormir, papai.
Priya se levantou e beijou o rosto do pai, ele sorriu.
Ela se afastou, mas ele ainda ficou na cadeira, pensativo.
Priya atravessou os vários corredores até seu quarto. Ela não sabia ao certo se era a digestão da comida ou o que, mas estava realmente ficando com sono.
Antes de se jogar na cama, parou em frente ao espelho para ficar admirando a si mesma.
— Você é tão linda. — Falou, deslizando os dedos entre os cabelos e sentido seu aroma. — Você não foi feita para trabalhar. Apenas pessoas pobres e feias trabalham.
Um leve ranger de portas fez Priya sobressaltar.
Ela notou que a fonte do barulho eram as portas envidraçadas que davam acesso a varanda. Estavam abertas, a luz prateada da lua se estendendo sobre o carpete do quarto. Tirando isso, apenas algumas velas discretas iluminavam o quarto, que serviçais haviam ascendido momentos antes.
No geral, Priya sempre foi uma menina medrosa no que tange o sobrenatural. Qualidade essa que para um demônio causava vergonha, então ela nunca admitia.
Ela caminhou até a varando e olhou para além do jardim.
A capital de Kodekalain estava pontilhada de luzes acessa em inúmeras direções. O ar estava frio e isso de alguma forma aumentava seu medo irracional.
Ela encolheu os ombros.
Era uma vergonha mesmo ter medo de qualquer coisa que fosse. Os poderes demoníacos da casta safira eram de longe os mais poderosos dentre todas as castas. Ela sozinha era sua própria proteção.
Ela suspirou e voltou para seu quarto.
Fechou as portas devagar.
Ela não sabia explicar, mas sentiu ter visto alguns pontos reluzentes na escuridão. Seu coração aumentou o ritmo. Ela se dirigiu para o candelabro mais próximo, mas quando levantou a mão, um braço surgido da escuridão agarrou o seu. Energia demoníaca disparou da mão dela, uma massa energética negra — que parecia mais negra que a escuridão — com bordas azuladas. Foi involuntário, advindo do seu medo. A chama negra explodiu numa tapeçaria na parede.
Um adversário a agarrou por trás, por debaixo das axilas. Ela iria incinerar seu próprio corpo em chamas demoníacas, mas alguém jogou algum líquido em seu rosto que imediatamente a deixou em um estado de torpor. A jogaram na cama, não conseguia nem sequer gritar. Ela começou a evocar energia para sua forma demoníaca.
Seus agressores riam.
Eram dois demonianos da casta rubi, pele avermelhada.
— Você é uma menina um tanto… energética — disse um deles, as palavras ondulavam em seus ouvidos.
O mundo girava ao seu redor, mas ela ainda tentava evocar seus poderes. Se conseguisse mudar sua forma… teria uma chance palpável.
O outro pegou um dispositivo de metal que possuía um diamante no meio de três pernas metálicas. A forma oval do diamante lembrava o que os demonianos da casta obsidiana e rubi usavam em seus peitos.
— Não… — ela conseguiu murmurar.
— Sim, você vai ter o que merece, sua princesa arrogante. Vai entender a dor pela qual passamos. Ha ha ha ha ha!
Ele empurrou o dispositivo com toda a força contra seu peito. Ela sentiu agulhas adentrarem sua pele. O dispositivo, então, pareceu empurrar o diamante com uma força violenta, como se tentasse encaixá-lo a força em seus ossos. A dor era inacreditável. Sentia ter seus poderes sugados. Quando ela teve a energia de gritar, eles tamparam sua boca com um pano imundo. Lágrimas desceram suas têmporas. Se debatia, mas isso parecia apenas apetecê-los.
— Ha ha ha ha ha! — Eu usaria você aqui e agora, se o preço por você não fosse tão bom.
Ambos riram…
A dor pulsava por cada nervo do corpo, partindo do ponto em seu peito. Ficou intolerável. Ela se contorcia na esperança de aliviar alguma coisa, mas era inútil.
Enfim, desmaiou.