Volume 1
Capítulo 8: Novos... amigos?
Ponto de vista de Neri Hofirman.
De um dia para o outro, o tempo mudou drasticamente; saindo de uma tarde quente e fresca para uma manhã nublada e fria.
Pensei que acordaria tranquilo, sem pressa, servido na cama com um delicioso café da manhã; afinal, iria para uma escola nova e, aparentemente, só voltaria nas férias. Fui enganado pelas minhas próprias expectativas.
Mary quase derrubou a porta do quarto com seu show ensurdecedor — causado pelo impacto entre duas panelas — enquanto a minha mãe gritava, como quem comemora, para que eu me apressasse em me vestir.
O resultado? Um Neri assustado e em pânico, caindo da cama, enrolado na coberta e confuso. Confesso ter achado que o mundo estava acabando.
— O que estão fazendo?!
— Se esqueceu que sua vida vai virar de cabeça para baixo hoje?! — Mary respondeu. Sua animação era quase palpável.
— Pensei que a minha vida tinha virado de cabeça para baixo a quase uma semana — retruquei ao me sentar na cama.
— Aí que está, pequeno irmão! — Ela agarrou o meu rosto e se aproximou de forma assustadora. — Você ainda não viu nada…
— Ok, Mary. Já chega. — A minha mãe a afastou e afagou o meu cabelo. — Vai se trocar e pega as malas, tá bom? Seu pai está esperando.
— E a Elizabeth? — questionei.
— Já está avisada, pode ficar tranquilo. Sua irmã vai ajudar ela com as malas.
— Eu? Mas ela tem duas mãos perfeitamente funcionais. O que exatamente uma adolescente de quinze anos precisa, que seja necessário mais de uma mala?!
Ambas saíram do quarto, discutindo sobre o assunto. Me coloquei de pé, olhando ao redor. O meu quarto estava bagunçado; mas eu não tinha tempo de arrumar.
Procurei no guarda-roupas por algo que me protegesse do frio; nada que um moletom e calças não resolvam! Peguei as primeiras peças que vi e já fui vestindo. Olhei no espelho e percebi: estava todo de preto.
— Estou parecendo um emo…
Dei de ombros e calcei os tênis. Corri, peguei a minha mala e mochila, não eram grandes; mas cabiam tudo o que precisava. Passei o corredor como um raio. Estava mais ansioso do que imaginava para essa nova vida.
Chegando no andar debaixo, a minha mãe tomou as malas de mim e me empurrou para fora, afirmando que já estava na hora de partir.
— Sem tomar café?!
— Vocês terão de tudo para comer no trem, seria um desperdício tomar café agora! — Ela riu.
— Finalmente você chegou! — Elizabeth já estava lá fora, ao lado do carro.
Vestida com roupas casuais, como as minhas; só que ela não parecia estar saindo de um velório. Seu moletom era vermelho e a sua calça, branca.
Minha mãe se dirigiu até o meu pai, e lhe entregou as malas; que depositou no carro rapidamente.
— Não imaginei que fossemos sair tão cedo, então nem coloquei um despertador.
— Para que despertador, quando se tem sua mãe e irmã, não é mesmo? — Elizabeth gargalhou.
— Você acha isso engraçado?
— Mas é claro! — Colocou a mão sobre o meu ombro, ainda rindo.
— Crianças! — Minha mãe acenou para nos aproximarmos. Assim o fizemos, recebendo um abraço bem quente e apertado dela e do meu pai. — Vamos sentir muito a falta de vocês aqui! — Seus olhos estavam marinados por lágrimas.
— Também vamos sentir saudades, mãe.
— Antes do seu pai levá-los até a estação, preciso que saibam de algo. — Ela se afastou, fungando e olhando em nossos olhos. — Não confiem em nenhum Hofirman, além daqueles que são sua família.
— Achei que todos os Hofirman's fossem uma família só — Elizabeth indagou.
— Assim como uma sala de aula, empresa ou qualquer outro grupo de pessoas são divididos em subgrupos, o mesmo ocorre com os Hofirman's — o meu pai afirmou. — Não importa o quão amigável o sorriso no rosto do Gustav parecesse, ele era falso.
— Nossos sobrenomes estão profundamente enraizados em respeito e autoridade na sociedade sobrenatural — a minha mãe acrescentou. — Tentarão bajular vocês ao máximo, mas não se deixem levar pelos privilégios que lhes oferecerão
— Estamos entrando num ninho de cobras, pelo visto. — falei.
— Em suma, sim. Mas também existem pessoas boas lá fora! — Ela pôs a mão em meu rosto. Um sorriso amável se formou em sua face. — Quando encontrá-los, saberá que pode confiar a sua vida a eles.
Um turbilhão de emoções transbordou em meu peito. Nunca fiquei tanto tempo longe da minha família. Como faria agora?! Mesmo com a Elizabeth comigo; ainda assim, seria capaz de protegê-la? Aquele era um mundo mágico, cheio de seres perigosos e conspirações. Se eu não sou capaz de me proteger, como faria isso com outra pessoa?
— Pai… eu não sei se…
Um pequeno projétil passou voando a milímetros do meu rosto, deu a volta no carro como um besouro barulhento e se chocou abruptamente contra a mão da Mary; que estava sentada no banco da varanda.
— Você ser fraco agora, não significa que continuará sendo fraco no fim.
Ela estava a, no mínimo, dez metros de distância. Não gritava, então como conseguia ouvir com tanta clareza o que dizia?
— Elizabeth. — Mary fez um sinal, colocando a mão sobre o bíceps. — Sabe bem o que fazer! Não deixe meras palavras dizerem o que você deve sentir ou não. — Novamente o projétil voou em minha direção, me acertando dessa vez. Levei a mão até a testa, achei que estaria sangrando; nada aconteceu. — Você é um Hofirman, não é tão frágil quanto pensa.
Dei um sorriso. Era incrível o fato de que ela conseguia ser doce e rude ao mesmo tempo.
— Não vai se despedir deles? — meu pai gritou.
— Não gosto de despedidas! — retrucou em mesmo tom, acenando para nós. — Vejo vocês no final do ano!
— Nada de ficar com o meu quarto! — reclamei.
— O que?! — Fez um sinal, como se não tivesse escutado.
— Nada de ficar com o meu quarto!
— O que?!
— Nada de…
— Sabe que ela está zoando com a sua cara, não é? — Elizabeth interrompeu.
Grunhi, peguei uma pedra no chão e joguei em sua direção. Ela desapareceu, de repente já não estava mais na varanda.
— Mas… o que?
— Uau… — Elizabeth balbuciou.
— Vamos lá, pessoal. Já estamos atrasados.
Meu pai fez um sinal para que entrássemos no carro, o que fizemos sem pestanejar. Elizabeth sentou no banco de trás e eu, no carona.
Colocamos o cinto e meu pai deu a partida. A minha mãe acenou, e eu acenei de volta. Olhei para a pedra que Mary havia lançado em minha direção; estava caída na calçada, partida ao meio. Levei novamente a mão até a testa, nenhum ferimento… Talvez ela tenha razão.
Foi breve o tempo que passamos no carro, em direção a estação. Faltava poucos minutos para chegarmos.
Segundo o meu pai, pegaríamos o trem 76-WB na estação local; mas não pude deixar de perguntar como um trem, que nos levará a uma escola cheia de sobrenaturais, estaria numa estação comum de cidadezinha.
A resposta estava nos tickets, que ele tirou do porta luvas e nos entregou. Eram dourados, com um brasão no meio, dividido em três partes, com três mascotes: um lobo, uma raposa e uma coruja.
— A locomotiva é envolta por uma nuvem espeça, que impede aqueles que não possuem as passagens de vê-la.
— Tenho a impressão de já ter visto algo parecido em algum livro antes… — Elizabeth respondeu.
— Muitas vezes, alguns comuns tem leves vislumbres do mundo sobrenatural. Pensam que faz parte da criatividade deles e levam isso para os demais comuns de forma escrita. Sem falar dos sobrenaturais que se escondem no mundo comum e são famosos.
— Isso não seria errado?
— Eu chamaria de estratégia — comentei.
O debate sobre aquilo ser algo correto ou não se prolongou por uns cinco minutos, antes de avistarmos a estação. Meu pai procurou uma vaga próxima e estacionou. Descemos, pegando as malas no porta-malas e logo nos despedimos do meu pai.
Diferente da minha mãe, ele não chorou. Nem mesmo lembro quando foi a última vez que o vi chorar… Mas isso não significava que ele era amargo ou que o seu coração fosse duro como uma pedra; pelo contrário, era uma das pessoas mais incríveis e gentis que já conheci.
Ao dizer isso para ele, em meio aquele que seria o nosso último abraço pelos próximos meses, pude vers os seus olhos tremerem. Ele afagou o meu cabelo e disse que sentia orgulho do garoto que eu era e de quem iria ser.
— Sei que você pode muitas coisas, Neri. Mesmo que não confie em si como deveria, e pode confiar, ainda tem aqueles que acreditam e acreditarão em você.
Aquelas foram as suas últimas palavras, antes de eu contemplar o carro se afastando de nós na estrada. Fomos, então, para o interior da estação.
Embora ela parecesse pequena, vazia e antiga por fora; no interior era grande, cheia de pessoas com pressa e moderna.
Elizabeth e eu nos encontrávamos no grupo daqueles que pareciam perdidos, sem saber para onde ir. Sentamos em um banco próximo, largando nossas mochilas e malas aos nossos pés.
— E agora?
— Meu pai disse que a resposta está nas passagens, lembra?
Ela pegou a passagem que estava em seu bolso e segurou a frente dos olhos, como uma máscara.
— Assim? — perguntou, rindo da própria bobagem; o que eu não deixei de fazer também.
Balancei a cabeça negativamente, afirmando que não deveria ser algo tão óbvio assim. Peguei o ticket que me fora dado, nada aconteceu. Pisquei e, de repente, estava em outra estação, quase que outro mundo.
Mais trens, mais pessoas. Parecia um lugar completamente novo, com locomotivas movidas a vapor, apitando; enquanto os maquinistas diziam que estavam prestes a partir.
— Elizabeth… — sussurrei, me colocando de pé, extasiado com o que via.
— Aí… meu… Deus…
Parecia tão surpresa quanto eu. Olhávamos ao redor, como pequenas crianças que vêem um parque de diversões pela primeira vez.
Nos entreolhamos, os seus olhos brilhavam de animação. Pulamos de alegria, pegamos nossas malas e não perdemos tempo em procurar por placas que nos indicassem aonde estava o trem 76-WB.
Corremos por umas três ou quatro plataformas antes de eu avistar uma pequena plaquinha pendurada no tento com a inscrição “76-WB” bem nítida, em letras douradas.
— Ali! — Apontei.
Fomos apressados até o trem, animados com o que nos esperava; mas pelo visto não eramos os únicos. Dois adolescentes, um casal, passaram correndo ao nosso lado, pareciam ter a mesma idade que nós. Ambos vestiam roupas casuais e bem gastas, com toucas sobre as cabeças.
A garota paralisou, se virando para nós. Seus olhos fixaram na Elizabeth e se iluminaram como um cristal, enquanto um sorriso largo se formava em seu rosto. Aquela reação nos fez parar, a minha amiga me olhou confusa.
— Alex! Alex! — A garota segurou o rapaz ao seu lado.
— O que foi, Mical? Nós já estamos atrasados!
— Olha! Ela é…
— Pelos deuses… Um Snow! — O garoto estava extasiado com o encontro.
Aparentemente, aquele foi o primeiro vislumbre que tivemos do que nossos pais nos disseram; a fama que os nossos nomes carregavam.
— Você é a Elizabeth, não é?! — A menina se aproximou, segurando as mãos dela. — Filha do grande general Jack e irmã do imbatível Meufrin Snow!
— Imbatível Meufrin Snow? — ambos repetimos, perplexos com aquelas palavras.
— Mical! — o moço a puxou para longe da Elizabeth. — Isso por acaso são maneiras?
Ele se ajoelhou, puxando a Mical para baixo, que imitou o garoto.
— Perdoe-a pela grosseria, Princesa de Gelo… Nós nunca estivemos diante de alguém com tamanha importância, como a senhorita. Ela não sabe agir com o devido respeito!
— Princesa de Gelo? — questionei.
O rosto da Elizabeth estava completamente vermelho, parecia que explodiria a qualquer instante.
— Por… Por favor, levantem. Não precisam agir assim! Sou Elizabeth Snow, sim. Mas eu não tenho a menor ideia do que estão dizendo!
A admiração dos dois foi substituída por uma confusão profunda. Ambos se olharam, pareciam não entender o que ela dizia. A garota se colocou de pé e olhou para a Elizabeth.
— Como assim não faz ideia do que estamos dizendo?
— Até semana passada, eu nem sabia que tinha poderes… — Levou a mão para atrás da cabeça, em sinal de constrangimento.
O garoto se levantou, o que me fez perceber a semelhança entre os dois adolescentes misteriosos, já que a expressão estampada em seus rostos eram iguais.
— Todos a bordo! — gritou um maquinista que saiu do trem 76-WB. — O trem sentido WallBright partirá em cinco minutos!
— Aí, droga! O trem! — o rapaz quase berrou. — Elizabeth Snow, foi um prazer conhecê-la! — Se curvou, tirando a touca, atitude imitada pela garota; o que nos revelou grandes e pontudas orelhas, com cabelos ruivos e ondulados. — Somos os irmãos Alex e Mical Wastly, do Clã Wastly!
Elizabeth ainda parecia constrangida. Mas era educada o suficiente para retribuir o cumprimento; imitando o gesto dos dois irmãos.
— O prazer foi meu. Esse comigo é Neri Hofirman, da família Hofirman!
Iria seguir o seu exemplo e me curvar também — seja lá o porquê de todos estarem fazendo aquilo — mas fui barrado pela face de horror dos irmãos Wastly.
A Mical caiu de joelho, já o Alex tremia completamente. Todo o respeito que pareciam ter, naquele momento, foi sobrepujado por um medo anormal.
— Está tudo bem? — perguntei, dando um passo em direção a eles, que se afastaram dois em resposta.
— Es… Está sim… Está sim… — Alex se afastavam lentamente. — Um Hofirman…
Ele tremia. Ainda assim, teve forças para ajudar a irmã a se levantar.
Não deu tempo de nos despedirmos. Eles correram para dentro do trem, jogando as passagens na cara do maquinista, que tentou os impedir, mas falhou miseravelmente.
— Ei! — reclamou, se virando para nós. — Nem todos tem bons modos hoje em dia, não é?
Olhei para a Elizabeth. O que diabos havia acontecido ali?!
Lembrei, então, das palavras da minha mãe:
“Não confiem em nenhum Hofirman, além daqueles que são sua família.”