Arcanum Brasileira

Autor(a): Gabriel Barrenha


Volume 1

Capítulo 6: A minha melhor amiga está amaldiçoada

Ponto de vista de Neri Hofirman

 

— Fui encontrado pelos batedores da família Tesla, a quatro quilômetros de distância do local onde a Tropa Snow foi massacrada. — O Sr. Snow nos mostrou uma cicatriz horrenda que havia na lateral do seu abdômen. — Despertei uma semana depois, com a minha esposa chorando ao meu lado. Fiquei incapacitado cinco meses antes de voltar a ativa, claro… Não mais como general dos Snow… Afinal, não havia mais ninguém. Aquela foi a última vez que liderei um batalhão. Anos mais tarde, me deparei com um terceiro marechal do Último Nifom.

— Então… não tem mais ninguém mesmo? — Elizabeth estava atônita com a informação. Mas como não estar, se até eu me pegava assombrado pela história contada?

O clima do ambiente não estava bom, era quase esmagador. Precisava dar um jeito de melhorar, mesmo que pouco, a situação.

— O senhor comentou sobre um Snow perfeito, mas o que seria isso? — questionei.

Minha mãe tomou a frente, trazendo consigo a resposta que ansiava.

— Nós temos poderes; mas isso não nos torna imunes a eles, até nós temos limite. Porém, de tempos em tempos, nasce um sobrenatural que é imune aos efeitos do próprio poder. Um Snow perfeito é isso; alguém que consegue liberar uma energia fria extrema sem sofrer efeitos colaterais. Ele não congela, não esfria, nem petrifica.

— Não é algo que se conquista. Você simplesmente nasce assim — o meu pai completou.

— Então não existe mais nenhum Snow que consiga tal feito?

— É claro que existe. — O olhar da Mary estava sobre Elizabeth, que mostrava clara confusão.

— Eu?! — ela grasnou. — Mas como sabem?! Nem consigo controlar esses poderes ainda!

— Os seus olhos — o Sr. Snow interrompeu. — Eles mudam de cor conforme o seu humor. Essa é uma característica única de um Snow perfeito.

Ele ajoelhou-se na frente dela, pegou a sua mão e pôs sobre a dele, com a palma virada para cima. Uma brisa fria os cercou; enquanto uma bola de neve se formava sobre a mão da Elizabeth, passando para uma esfera de gelo, derretendo em seguida numa pequena poça d'água aos seus pés.

— Você é a carta na manga da nossa família. — A olhou nos olhos. — Mesmo sabendo disso, eu não queria perder você como perdi a sua mãe… Por isso tentei, nestes últimos 15 anos, apressar o fim da guerra. Para que viva uma vida normal, sem ter que se preocupar em lutar num conflito que não é seu.

— Mas se eu posso ajudar, por quê me deixar aqui? — Seus olhos já estavam marejados pelas lágrimas. — Por que não me deixou ir com o senhor? Eu senti tanta saudade, pai… Nunca conheci a mamãe, o meu irmão nem age como um irmão e o senhor me abandonou… Como esperava que eu me sentisse?

O clima de luto parecia uma lembrança distante. A angústia que Elizabeth expressava era quase palpável. Olhei para os meus pais, que fizeram um sinal para eu me manter em silêncio. Mary, com o rosto virado para outro lugar, parecia não querer se intrometer.

O Sr. Snow abraçou a Elizabeth. Ambos choravam, enquanto ele sussurrava pedidos de desculpas um atrás do outro. Estava feliz por ver eles reconciliando-se; mas não entendi… Como ele havia pensado que tudo aquilo era para o bem dela?

Como se tivesse lido os meus pensamentos — e talvez tenha realmente feito isso —  Mary interrompeu o momento.

— Por que não conta a ela o real motivo de ter se ausentado por tanto tempo?

— Do que ela está falando? — Elizabeth perguntou, após afastar o pai e secar o rosto com as mãos.

O Sr. Snow a olhou, quieto. Suspirou e por fim deu a sua explicação, colocando-se em pé.

— Como falei, tudo isso aconteceu após o nascimento do seu irmão. Porém, anos mais tarde, acabei me deparando com outro marechal do exército inimigo; o pior de todos, para ser mais exato. Fox Yaga, a Feiticeira.

— Feiticeira?! — interrompi. — Tipo… Feitiçaria, magia de verdade?!

— Sim. E, se tratando da Fox, não tem ninguém melhor que ela nisso. É considerada a melhor feiticeira que existe há quase 300 anos. Mas continuando. — O Sr. Snow olhou-me, deixando claro que não queria ser interrompido novamente. — Quando a Raquel, sua mãe, estava gestante de você, ficamos em uma pousada durante uma viagem. Fox veio durante a madrugada, não para nos ferir ou ameaçar; mas lançar duas maldições. Logo após desapareceu, tão rápido quanto surgiu.

— Duas maldições? — Elizabeth quase sussurrou.

— Uma sobre você, e outra sobre a sua mãe… — O seu semblante estava sombrio, mais do que o normal. — A maldição que lançou sobre a Raquel foi a responsável por tirar a sua vida. A feiticeira disse que a criança nasceria saudável e viva; ao preço da vida da mãe, e assim aconteceu. No momento em que chorou pela primeira vez, ela deu o último suspiro… E sobre você…

Ele parou por um instante. Parecia lembrar de algo doloroso ao ponto de doer em sua alma.

 

“A princesa de Gelo se apaixonará,

Com um beijo, a morte sua vida ceifará,

Contudo, através disto,

Um novo guerreiro nascerá…”

 

O Sr. Snow recitou o verso de um poema; porém, não deveria ser um. Claramente se referia a maldição da Elizabeth.

Ambos ficamos boquiabertos com aquela informação.

— Passei os últimos 15 anos tentando anular ou reverter a maldição da Fox, mas parece ser impossível — ele afirmou com tristeza em seu olhar. — Quanto mais me esforçava, mais distante parecia o resultado.

— Fato é que a morte virá sobre você após um beijo — a minha mãe concluiu.

Elizabeth começou a gargalhar, estava nervosa. Deitou as costas sobre o sofá e pôs a mão sobre o rosto. Suspirou.

— Que confusão — disse por fim. — Então eu sou como uma princesa de conto de fadas?

— Não diria isso — Mary respondeu. — Num conto de fadas, o beijo é a solução; esse não é caso.

— Vocês nunca pensaram que ela poderia ter beijado alguém sem essa informação?! — questionei. — Foi uma irresponsabilidade!

— Fala sério! Que adolescente ama alguém? — o Sr. Snow retrucou. — Tudo o que sentem não passa de uma paixonite, que logo desaparece! Os sentimentos não agem em nós da mesma maneira que nos comuns. É tudo… muito intenso. Não desaparece, ou se quer racha, por qualquer coisa. É tão marcante, que depois de amar alguém… nós nao… amamos novamente da mesma maneira.

Cada palavra que saía de seus lábios pareciam carregadas de angústia e remorso. Antes, para mim, o Sr. Snow parecia uma pessoa tão fria e distante a ponto de abandonar a própria filha. Porém… olhando para ele naquele instante…

Minha mãe tossiu, assumindo a frente.

— Em suma, não tem como esperar que vocês amem alguém de maneira romântica, não com a idade que possuem. Não há um único relato sequer do fio vermelho unindo pessoas na adolescência.

— Fio vermelho do destino? — Elizabeth disse curiosa. A sua angústia foi substituída por um interesse repentino. — Isso é real?!

— Fio vermelho?

— Akai Ito — o meu pai afirmou. — É uma lenda japonesa. Ela diz que os deuses amarram um fio vermelho no dedo mínimo de duas pessoas ao nascerem, e o destino fará de tudo para que elas se encontrem e se apaixonem; independente do lugar, motivo ou momento. Nem mesmo o tempo é um empecilho.

— O fio se dobra, emaranha ou embaraça; mas nunca quebra — a minha mãe acrescentou. — É uma única vez, para toda a vida.

— E vocês acreditam que isso é real?

Essa coisa de fio vermelho do destino era difícil de se crer, para mim. Como podia acreditar em algo como aquilo?! Aceitar que tenho poderes já era difícil, quanto mais que existe algo místico que rege a vida das pessoas!

— Não achamos, temos certeza — o Sr. Snow respondeu. — Se falarmos com as três irmãs, elas confirmarão a existência do laço vermelho do destino. Mas nunca teve ninguém que encontrou a outra ponta antes da sua maioridade. Por isso não ficamos preocupados com essa questão do beijo; afinal, mesmo que a Elizabeth houvesse beijado alguém, a possibilidade de ser algo carregado de sentimentos é ínfima.

— É por isso que nunca se casou depois da mamãe? — Elizabeth questionou.

— Exatamente.

Ela recostou-se no sofá, suspirando. Estava pensativa sobre tudo aquilo.

— Um beijo… E como saberei que encontrei a outra ponta do fio?

— Você vai saber, querida. Nós sempre sabemos.

As palavras da minha mãe vieram cheias de carinho, expressas por um sorriso. Ela sempre teve um carinho em particular pela Elizabeth. Talvez tentasse compensar a ausência de sua mãe.

— Sempre sabemos, não é? — Um pequeno sorriso se formou em seu rosto.

O que… passava pela mente dela naquele instante?



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