Arcanum Brasileira

Autor(a): Gabriel Barrenha


Volume 1

Capítulo 5: Como fomos dizimados

Ponto de vista de Neri Hofirman

 

Acordei, e logo percebi estar no meu quarto. Era dia ainda, apaguei por alguns minutos?

— O que aconteceu? — questionei, ainda confuso enquanto me sentava na cama.

O que eu havia visto… foi real?

Ouvi alguns passos… Não, uma corrida em direção ao quarto. Olhei para a porta e lá estava a Elizabeth, ofegante. Um sorriso formou-se no seu rosto.

— Neri…

— Oi, Elizabeth.

Ela deslizou pelo batente da porta. Parecia aliviada com o que via.

— Finalmente acordou — suspirou ao erguer a cabeça, como se agradecesse.

— O que quer dizer com finalmente? — Me coloquei de pé e fui em sua direção.

— Você dormiu por 28 horas seguidas! — respondeu ao segurar a mão que estendi, levantando-se.

— 28 horas?!

— Parece que decidiu colocar em dia o sono atrasado — Mary rebateu, surgindo de repente no corredor.

Elizabeth e eu quase demos um pulo para trás, assustados ao vê-la. Como ela era capaz de não emitir um único som ao se aproximar?!

— Meu Deus, Mary! Quando vai parar com essa mania?! — reclamei.

— Se você não fosse o mais novo entenderia a graça. — Riu despretensiosamente. — Vamos lá. — Fez um sinal para a seguirmos. — Estão esperando lá embaixo!

Fomos à sala de estar, onde os nossos pais aguardavam; com os meus sentados no sofá e o Sr. Snow em pé, ao lado da estante de livros, folheando alguns dos que tinham lá.

— Finalmente acordou! — minha mãe comemorou, indo me abraçar.

— Pelo visto, pode ficar sem dormir a próxima semana — meu pai brincou ao fazer o mesmo.

— Não quero estragar o momento, mas precisamos colocar em dia alguns assuntos — Sr. Snow interrompeu, com os olhos fixos nos livros.

— Ah, sim! Certo! — minha mãe concordou. — Venham, venham!

Ela fez um sinal, indicando que sentássemos no sofá, o que fizemos sem pensar duas vezes.

— Por onde começamos? — Mary perguntou ao se aconchegar em uma das poltronas.

— Que tal por quem somos, nossas famílias ou algo parecido? — Estava curioso com a resposta.

Meus parentes direcionaram os olhares ao Sr. Neve, que logo percebeu. Ele suspirou, virando-se para nós; o olhar cansado e fatigado ainda permanecia em seu rosto. Meu Deus, o que este homem esteve fazendo nos últimos anos para acabar com tal expressão?!

— Vou começar com a família que me diz respeito. — Sua voz era fria e desanimada. Sentou ao lado da Elizabeth. — Nós somos… Ou éramos… o batalhão que ficava à frente nos campos de batalha, por séculos foi assim. A cavalaria que ia avante, com coragem e fervor contra o exército do último Nifom!  Os primeiros a chegar e os últimos a sair…

— O que quer dizer com éramos? — Elizabeth questionou. — Não somos mais guerreiros?

— Não. — Veio a resposta fria e direta. — Não porque queremos, mas porquê não existem mais guerreiros para formar uma cavalaria. — Ele olhou em seus olhos. — Só restam três…

—O senhor quer dizer...

— Você, seu irmão e eu. Não sobrou ninguém… A cerca de 20 anos, seu irmão havia acabado de nascer e eu saí em uma missão. Embora planejasse aquela como uma das minhas últimas missões como general da tropa Snow, não pensei que seria de fato a última.


Ponto de vista de Jack Snow - 20 anos atrás.

 

Nós cavalgávamos por entre uma floresta densa e escura. Era noite, mas não podíamos parar. Estava em nossas mãos o resultado do próximo embate. Nos disseram que o inimigo já estava caído, então só precisávamos chegar e dar o golpe de misericórdia!

Cinco mil soldados da família Snow, juntos num único propósito! Os adorados e venerados Anjos Escarlates; que banham seus cabelos brancos com o sangue dos inimigos, e não se curvam diante dos poderosos! Sentia em cada célula do meu ser que aquela era uma batalha decisiva. O futuro de Arcanum estava em nossas mãos, faríamos o Último Nifom desejar jamais ter se levantado contra nós! Então… como que… num piscar de olhos…

A floresta ardia em chamas, um calor forte o suficiente para sobrepujar todos os soldados da tropa Snow. Como isso aconteceu?!

Recebemos a informação de que a cavalaria dos Hofirman's do Oeste enfrentava os Sete Pesadelos, marechais do exército inimigo. Porém, quando me dei conta, toda a legião de soldados da família Snow estava caída no chão, mortos. Corpos completamente despedaçados, outros carbonizados até os ossos ou sem os corações no peito. Fomos completamente dizimados… nossos inimigos? Apenas dois!

A informação era falsa. Não éramos diferentes de um roedor se arrastando inocentemente até a ratoeira que arrancará sua cabeça. O sentimento de impotência consumia-me, nem mesmo conseguimos reagir! Um urro saiu dos meus lábios ao cair de joelhos, tomado pelo ódio e confusão de tal situação.

— Quem nos traiu?! Quem foi o maldito?! Vou matar você!

Eu era o único remanescente vivo. Por que eu?! Toda a minha família morta e dizimada em segundos, e eu não pude fazer nada!

Duas auras surgiram por trás. Podia sentir a força esvair do meu ser simplesmente por estarem ali. Eu tremia incontrolavelmente. Toda a raiva, ira ou ódio foram sobrepujados pela vontade de fugir dali, mas o meu corpo não obedecia. Um calafrio me fez entender que não veria mais a minha esposa e filho. Lágrimas molharam a terra entre os meus dedos.

“Droga… Se Recomponha, Jack! Você é um Snow. Não pode se amedrontar diante do inimigo!”

Soquei o chão na tentativa de criar em mim mesmo, uma fagulha de esperança. A esperança de sobreviver… Pela minha esposa e filho! Pelos Snow’s que partiram!

— No topo da montanha mais alta, ou no mais profundo abismo… O meu frio congelará. Nada escapará da minha sombra… quando o Zero Absoluto eu alcançar!

Toda a energia vital se concentrava na minha mão direita! Era um golpe arriscado, porém a minha única esperança. Ou eu morreria… ou teria sequelas graves o suficiente para desejar ter morrido. Mas como posso aceitar a morte sem ao menos sonhar com a possibilidade de ver a minha amada novamente?!

Eu não era um Snow perfeito, então certamente ficaria à beira da morte por usar o Zero Absoluto. Engoli em seco, o meu corpo gelado começava a petrificar.

“Pela Raquel e pelo Meufrin…”

Me virei rapidamente em direção aos seres atrás de mim. Minha intenção era liberar toda a energia acumulada num único ataque! Eles vão pagar por terem feito isso! Mas… era só um? Uma mulher!

Meu braço direito foi agarrado e torcido com brutalidade. Fui jogado contra o chão enquanto pisavam em meu pescoço, me impedindo de respirar.

— Por que está tão enfurecido, jovenzinho? — um homem perguntou. Era alto e forte, usava um terno, provavelmente preto; mas às manchas de sangue não permitiam distinguir a cor. 

Realmente eram dois! Mas quando foi que ele se moveu?!

A energia permanecia acumulada em meu punho, iria disparar! Se conseguisse acabar ao menos com um deles…

Me mover um único centímetro foi o suficiente para o grandalhão quebrar o meu braço em duas partes diferentes, fazendo-me berrar de dor. Lágrimas escorriam pelo meu rosto.

O homem gargalhava, parecia se divertir com a minha dor. Me largou, eu estava incapacitado.

— Quem diria que eu iria ver o general dos Snow choramingar como um bebê. — A mulher se aproximou. Ela vestia uma manta vermelha com capuz, em seu peito, o brasão do exército inimigo: um anjo com a face desfigurada e asas negras. — Não se preocupe, querido. — Passou a mão no meu rosto, antes de cravar as unhas nas minhas bochechas. — Não vamos matá-lo, o nosso Senhor não permitiu isso; o que é uma pena.

— O nosso trabalho era nos livrarmos dos cachorrinhos dos Hofirman's, Cherry. E já o fizemos.

A voz daquele homem estremecia até o abismo mais profundo do meu âmago. Como alguém poderia ter tal influência sobre uma pessoa simplesmente com sua voz?

— Eu sei, eu sei. Só queria brincar um pouquinho mais. — Ela me soltou no chão, decepcionada.

Tentei levantar, mas fui impedido com um golpe no estômago. Não sei o quão forte foi, apenas afirmo… Voei por dez segundos, antes de sentir o impacto em minhas costas. Uma dor excruciante percorreu o meu corpo, enquanto eu vomitava aquilo que parecia sangue; o gosto de ferro só confirmava isso.

Não pronunciava uma única palavra, apenas rolei pelo chão, grunhido de dor; engasgado com meu próprio sangue. Eu não sentia o meu braço, o toquei. Percebi que ele havia sido decepado, provavelmente com o impacto nas árvores ao meu redor. Mas aonde eu estava?

Não sentia cheiro de fumaça. Nem mesmo enxergava nada, estava tudo escuro, sem resquícios do incêndio que consumiu os meus soldados.

— Quem disse que você poderia levantar? — Ouvi a voz daquele homem novamente, se aproximando em meio a escuridão. Seus passos ecoavam como tambores.

Uma chama surgiu na palma de sua mão, iluminando os arredores. Estávamos numa floresta tão densa e úmida quanto a anterior, como eu havia ido parar ali?!

— O nosso senhor não nos permitiu lhe matar, pois pode acarretar algo que não está nos seus planos; mas isso não quer dizer que não possamos te incapacitar!

Um soco acertou o meu rosto. Apaguei.

Acordei sendo segurado pelo pescoço, estava sufocando! Tentei juntar a força restante que havia em mim, esperançoso que pudesse fazer algo; mas de nada adiantou. Não conseguia mover um único membro do meu corpo.

A floresta ao redor havia sido incendiada.

— Calma, Edward. — Cherry colocou a mão sobre o braço do companheiro. Ela parecia uma criança ao seu lado. — Não se descontrole assim, ou vai matá-lo!

Ele cedeu, me lançando ao chão. Eu ofegava, atordoado. Cometi um erro ao tentar me afastar deles, Cherry me puxou para perto de si.

— Não vamos te matar, mas vou arrancar um pedacinho de lembrança…

Seu rosto se distorceu de maneira horrenda, enquanto ela rasgava a minha barriga com as próprias mãos. Aquela situação só comprovou o que eu pensava a respeito dos líderes do exército inimigo.

Berrei de dor. A minha carne era arrancada por mãos nuas, numa crueldade sem igual.

— Vamos encerrar por aqui, Snow — Edward afirmou, enquanto ele e a companheira se afastaram. — Mande um abraço para sua esposa e filhos. — Se virou, me olhando nos olhos. — Agradeça por não irmos atrás deles também.

Ambos desaparecem num piscar de olhos. Me vi sozinho, com a floresta ao meu redor ardendo em chamas. Não tinha forças para me mexer, apenas lamentar a minha incapacidade diante de tal situação…

— Me desculpa, Raquel… Acho… Acho que não volto mais para casa.

Lágrimas escorriam pelo meu rosto, em partes pela dor física, outra pela angústia de saber que não veria mais minha esposa e filho… Ah… Se eu soubesse que seria a última vez que os olharia nos olhos.

Estava sozinho. A minha consciência esvaindo aos poucos. Uma fraqueza tomava o meu corpo, a dor… sumia… Essa é a sensação de morrer?



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