Arcanum Brasileira

Autor(a): Gbarrenha


Volume 1

Capítulo 3: Guerras passadas

Uma escuridão sem fim me cercava. Não sentia o meu corpo, não conseguia dizer uma única palavra, o único som era o do meu coração acelerado, soando como um tambor! Aonde eu estava?! O que será que a Mary havia feito comigo?! Aonde… Aonde estava a Elizabeth?!

Em meio ao turbilhão de pensamentos e emoções que invadiram o meu ser, não pude deixar de pensar que aquilo seria algo permanente; mas me enganei.

Ao longe, soou algo como um trovão, aumentando gradativamente. De repente, parecia que eu estava no meio de uma tempestade, e quem dera fosse só isso.

Os trovões eram tão fortes e sequentes que encobria quase totalmente o tinir agudo de metal ao meu redor. Um cheiro forte de sangue invadiu minhas narinas, enquanto gritos e mais gritos ferozes explodiam num coral!

Onde exatamente eu estava? E que tipo de sonho era aquele?! Seria uma alucinação causada pela queda? Eu havia batido a minha cabeça?

“Talvez… eu esteja em coma?” pensei.

Um ponto branco e brilhante, um único ponto branco e brilhante, surgiu em meio a escuridão, crescendo e expandindo em minha direção; se transformando naquilo que eu já imaginava:  Realmente era uma guerra! Mas... tão arcaica! Soldados em armaduras segurando espadas e machados tão grandes quanto eles mesmos! Parecia um evento para cosplay de RPG.

Uma enorme bola de fogo passou voando sobre a minha cabeça, pousando de maneira desastrosa num grupo de homens com túnicas e cajados. Eles corriam com seus corpos em chamas, para cessar logo os seus gritos com um baque abafado no chão. Nem a chuva era capaz de sobrepujar as labaredas que carbonizava os cadáveres.

Observava aquilo aterrorizado. Não parecia mais um sonho ou semelhante, o cheiro da carne queimada embrulhando o estômago me convencia disso.   Me virei, na esperança de fugir dali, mas um soldado, com o dobro do meu tamanho, pulou sobre mim.

Por instinto, levantei os braços e cobri o rosto; mas nada aconteceu. Simplesmente fui atravessado, como um espectro. O gigante caiu sobre um pobre mago, socando-o com tanta força que, com certeza, aquele cara deve ter morrido no segundo golpe.

Tentei desesperadamente parar aquele monstro, mas não o podia tocar, as minhas mãos o atravessavam. Foi quando parei, observando melhor o ambiente à minha volta. 

Uma tempestade caía,  raios e mais raios atingiam os soldados, investidas contras inimigos, feras bestiais correndo e dilacerando corpos, sangue jorrando para todos os lados; pintando o solo com sua cor escarlate, um fogo que consumia ferozmente tudo ao seu alcance! Mas… nada chegava a mim! Nem mesmo o sangue, vomitado por um soldado sem braços, me sujou.

O que era aquilo?! Chacina… Uma verdadeira chacina. Este é o termo mais próximo que consigo pensar.

— É um sonho… — consegui dizer por fim, enquanto um calafrio percorreu cada célula do meu ser. — Tem de ser! Não é possível que seja realidade! Isso… é cruel demais.

Um grito agudo soou por trás. Me virei rapidamente, me deparando com uma pequena pessoa, sendo destroçada, membro por membro, por uma fera animalesca que parecia ter saído direto do inferno!

Não suportei a visão e caí de joelhos, vomitando. Um pavor sem igual tomou conta do meu ser. Tremia sem parar, parecia que o chão sob meus pés cederia a qualquer instante. Parecia que meu coração iria explodir em meu peito. Comecei a chorar. Por que eu estava vendo algo como aquilo?!

— Você não parece nada bem. — Aquela voz era familiar. Era o meu pai, ele estava lá! Não parecia surpreso com o que via. Se abaixou ao meu lado e me envolveu em seus braços. — Nada disso é real, Neri.

— Pai? — Retribuí o abraço, desacreditado que estava lá. — Por que eu estou vendo isso?! O que é tudo isso?!

— Está tudo bem — afirmou, me afagando.

Não sei o que meu pai fez, mas os gritos, rugidos e trovões, o som do metal tinindo e os corpos sendo dilacerados, tudo havia cessado.

Me afastei devagar de seus braços e vendo, de repente; o mundo paralisado à nossa volta.

Não disse uma única palavra, a expressão em meu rosto mostrava a minha confusão. Meu foi o primeiro a falar.

— É uma visão criada através dos poderes da sua irmã... – Direcionou o olhar para os acontecimentos à nossa volta. — Ela melhorou bastante. Parece tão real, não é? — sorriu, ele estava orgulhoso.

— Você só pode estar brincando…

— Acho melhor te explicar desde o começo. — Se pôs de pé, consequentemente me levantando junto. Fez um movimento com as mãos e, instantaneamente, tudo se desfez numa fumaça negra e densa; dando lugar a um imenso vazio. — Como sabe, nós somos da família Hofirman, o nosso sobrenome foi a única coisa que não escondemos de você. — Fez uma pausa. — Lembra do que a sua irmã disse?

— Sim… Elizabeth e eu temos poderes.

Confesso que, mesmo diante do que vi, era difícil crer na questão de ser alguém com poderes; ao invés de um simples adolescente prestes a entrar na fase mais complicada da juventude, o ensino médio.

— O mundo que você conhece não é o que cerca a família Hofirman a mais de três milênios. — Se virou para o nada que se estendia sem fim à nossa frente. Fez um gesto com a mão e sombras densas e escuras começaram a formar imagens, como uma pintura viva que se movia de acordo com as suas palavras.

“No início, nós, os sobrenaturais, vivíamos em harmonia com os comuns. Embora tenhamos sido adorados como deuses em boa parte do tempo, isso não nos subia a cabeça. Na verdade, servíamos aos necessitados e protegíamos os fracos. Não havia divisão. Até o dia em que o céu abriu e as estrelas começaram a cair. O fatídico dia em que os nifons chegaram…”

— Nifons? — Estava deslumbrado com o show de sombras à minha frente. O pavor que sentia com aquelas cenas de antes desapareceu.

— Não sabemos o que são, de que planeta, realidade ou dimensão vieram, mas eles apresentaram-se a nós como seres incorpóreos; dotados de imensurável poder!

“O fato de não terem corpos físicos os limitava, não podiam fazer muito pelos habitavam deste mundo. Então, um grupo de sobrenaturais e comuns, ofereceram-se; esperançosos de que os nifons elevariam a civilização a um nível nunca alcançado!”

Meu pai parou por um instante, como se memórias de um passado distante e nublado passassem por sua mente. Respirou fundo, antes de continuar:

“Seus corpos eram possuídos em rituais e um ser completamente diferente e cheio de poder nascia. Capaz de inundar um vale inteiro, fazer o mais seco dos desertos florescer na maior das matas! Trocar continentes de lugar com um único movimento de sua mão! Tudo era possível, Neri! Até…”

As sombras pararam de se mover enquanto um calafrio percorria a minha espinha. Senti meu peito queimar e um suor frio escorria pelo meu rosto.

“Não havia mais oferendas. Nem sobrenaturais, nem comuns… Ninguém, nem a mais miserável das vidas queria ceder as suas memórias, alegrias e dores. Não queriam deixar de ser quem eram para se tornar outra coisa; mesmo que isso os transformasse em seres poderosas.”

— E o que aconteceu? - perguntei receoso.

— Eles forçaram a entrada.

“Para um nifom, um mortal não é mais importante que o bem maior. Se tivessem que possuir 10, 20 ou 100 corpos para ajudar outros milhares, assim seria! O que não esperavam é que as almas fossem resistir. Quando um corpo era possuído sem permissão e vontade da alma, ela era destruída pelo conflito interno; enquanto a consciência do nifom se perdia em meio a insanidade. O corpo se deformava de maneira grotesca e se tornava uma máquina de matar sem controle; porém o poder total não era liberado, surgindo um troller. Eles eram subjugados rapidamente pelos sobrenaturais mais fortes, com a ajuda dos nifons que não se corromperam.”

— Desde então, estamos em guerra contra esses tais troller’s, e aquilo que eu vi agora pouco é um exemplo de uma dessas guerras que aconteceu alguns, ou até milhares de anos atrás? — interrompi.

— Exatamente.

— Mas se os nifons eram tão poderosos e estavam ajudando na guerra, por que não vencemos ainda? Ou já vencemos?

— Nós não vencemos. Essa guerra acontece até hoje nos bastidores.

As sombras tornaram a se mexer.

“Quando os nifons perceberam que eram a causa de tudo, deram um jeito de sair daqui, voltar para o lugar de onde saíram, claro que não nos abandonaram à mercê dos troller’s. Eles os aprisionaram numa fenda do espaço-tempo, onde a vida não floresce, mas também não morre, um lugar impossível de se escapar… Porém, houve um que fugiu antes de ser capturado. Aparentemente, ele parou de lutar contra a insanidade e se rendeu a ela. O seu corpo deixou de ficar deformado e se tornou um nifom completo. Ficou escondido por séculos antes dos nifons irem embora, e quando por fim aconteceu, ele se revelou. Foi o responsável por trazer a ruína a impérios inteiros e rasgar civilizações com as próprias mãos.”

— Não sabemos ao certo o que ele quer, mas pelo visto estamos atrasando os seus planos. Nunca estivemos tão perto de vencer! — Meu pai parecia alvoroçado. — Como também nunca estivemos tão perto de perder… Tudo dependerá dos próximos passos nos anos que virão, daqueles que participarão da guerra ao nosso lado.

Ele se virou para mim e me encarou:

— Você e a Elizabeth são peças fundamentais nesse jogo. —  Estendeu a mão em minha direção. — Quero saber se posso contar com você ao nosso lado.

Estendi a minha mão para apertar a dele, mas uma voz soou em meu interior, reverberando cada célula do meu ser: “Não caia nessa, garoto.” Uma voz masculina, parecia tão cansada. Antes de tocar a mão do meu pai, me vi cair num poço de escuridão, fazendo-o desaparecer da minha vista. A última coisa da qual me lembro, foi de ouvir a mesma voz novamente: “Essa guerra não é nossa.”



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