Arcanum Brasileira

Autor(a): Gabriel Barrenha


Volume 1

Capítulo 12: Um sonho um tanto quanto estranho

A Mical retornou para o seu quarto depois de alguns minutos; após isso, a Elizabeth e eu passamos um tempo no nosso dormitório, antes de ouvirmos uma voz soar pelo cômodo.

“Atenção, passageiros! Passaremos pela barreira que divide Arcanum do mundo comum; isso causará um lapso temporal, nos fazendo avançar poucas horas no tempo. Alguns efeitos colaterais podem ocorrer, tais como enjoo, vômitos, fome extrema ou cansaço excessivo. Fiquem tranquilos, pois logo passará. Se os efeitos persistirem, procurem por um de nossos funcionários. Atenciosamente, Companhia de Transportes dos Irmãos Blue”.

Um leve tremor chacoalhou a locomotiva inteira, conforme feixes e mais feixes coloridos inundavam o quarto todo. Os nossos corpos esticavam e encolhiam, se deformavam e tomavam forma novamente; as vozes pareciam estar sendo mixadas por um DJ num show de música eletrônica. Tentei segurar a Elizabeth, mas os nossos braços se fundiram e separaram-se, ao mesmo tempo, em que se tornavam intangíveis. Isso durou cerca de dez segundos, ou seriam minutos? Não sei. A minha noção de tempo se perdeu totalmente naquele evento psicodélico.

Quando finalmente terminou, tudo parecia normal. Ambos estávamos intactos, mas a Elizabeth correu até o banheiro. Pelo barulho, parecia estar colocando para fora tudo aquilo que comeu na última semana.

Cambaleei de um lado para o outro. Os meus olhos estavam pesados e o meu corpo, fraco; parecia eu que não dormia há dias, e a minha cabeça doía horrivelmente! Caí de joelhos, tentei, mas praticamente me arrastei até a cama. Joguei-me nela e, em segundos, apaguei.

Aquela teria sido uma noite longa e silenciosa… se não fosse pelo sonho que tive.

Eu estava no interior de algum edifício. Ele era exageradamente grande em todos os aspectos possíveis. Do chão até ao topo deveria ter cerca de cinquenta metros, com grandes e inúmeras estátuas de mármore que, com seis asas, sustentavam o teto de maneira imponente, segurando com as mãos enormes bandeiras, onde; em um brasão, um ser angelical deformado segurava o mundo.

Legiões de zumbis, demônios, soldados e bestas, usadas como cavalaria, estendiam-se quase que infinitamente por aquele lugar. O chão espelhado gerava a sensação dobrada daquele exército que, por si só, já era monstruoso.

Eram separados por um corredor decorado com um tapete vermelho que levava a uma escadaria, onde; no topo, um gigantesco trono de metal negro repousava sublimemente. Um homem forte e de vestes escuras estava sobre ele, encapuzado de uma forma que não me permitia ver o seu rosto.

As pernas cruzadas e o maxilar apoiado sobre o punho, revelavam o seu tédio.

As criaturas que compunham o exército começaram a bater os pés, como se marchassem. Duas colossais portas de madeira abriram-se lentamente no final do corredor, cedendo espaço para seis seres caminharem soberanos em direção ao trono.

Andavam de forma elegante e tranquila conforme os seres do exército prostravam-se diante deles. Chegaram em frente a escadaria e cinco deles ajoelharam-se; enquanto uma mulher, vestida com uma roupa que unia perfeitamente metal com um couro avermelhado, subia em direção ao trono. O seu cabelo parecia fluir e dançar pelo ar a cada passada que dava. Luvas escuras cobriam sua mão e antebraço. Quando chegou ao topo, posicionou-se ao lado do grande trono de metal e um silêncio mortal tomou conta do salão.

Os cinco que ficaram aos pés da escadaria tinham aparências tão peculiares quanto qualquer ser que compunham o exército que os cercava. Dois deles eram homens, ambos usando terno. Um rapaz de cabelos ruivos, alto e tão musculoso, que o seu terno cinza parecia que rasgaria ao menor movimento. O outro, um senhor pequeno e magro com o rosto fundo; os seus longos cabelos eram grisalhos e ressecados, vestia um terno marrom sujo e gasto. Uma longa cauda, banhada em metal e rodeada de espigões, brotava de seu quadril; como se fosse uma extensão da sua coluna, e um pequeno e fino par de chifre enfeitava a sua cabeça.

Ao lado deles, uma mulher com uma pele que reluzia como porcelana. Usando um vestido azul-escuro com uma grande saia encorpada, cheia de bordados e babados curtos; ela parecia uma debutante. Seus cabelos, numa coloração rosada, estavam presos num belo penteado.

Atrás dela, havia dois jovens de pele escura, um rapaz e uma moça. Diferente dos demais, eles pareciam ter a mesma idade que eu. O garoto calçava um sapato, calça e colete social de cor vermelha e camisa preta; todos com bordados brancos e dourados. O seu par de luvas de couro era enfeitado com o desenho de um pentagrama nas costas das mãos.

A garota vestia uma meia-calça e saia brancas com detalhes azuis, calçando uma sapatilha também azul. O colete, com bordados azuis e dourados, dava um contraste com a camisa branca que usava; segurava um cajado, onde uma esfera carmesim flutuava e reluzia na ponta. Ambos tinham cabelos bem curtos, numa tonalidade castanha, com longas e pontudas orelhas de elfos, semelhantes às do Alex e da Mical.

Eles estavam em silêncio. Mesmo quando a mulher de longos cabelos chegou ao lado do trono, nada foi dito. Seja por um dos soldados, por um dos seis seres ou pelo homem sentado. Todos num completo silêncio.

Passos pesados e apressados ecoaram por todo o local. Uma besta passou pelas gigantescas portas de carvalho; ela era veloz. Cruzou aquele corredor em questão de segundos, parando e ajoelhando-se ao lado dos demais.

— Perdoe-me, meu Senhor! — A criatura baixou a cabeça, largando a lança que segurava no chão.

Aquilo era enorme, mais que o Afonso. Parecia a fusão de um demônio bípede e um besouro-hércules. Enormes e grossas presas brotavam de seu crânio, cobrindo aquilo que acredito ser a sua boca, enquanto dois chifres estendiam-se paralelamente à frente do seu rosto. Na lateral do seu corpo brotavam dois pares de braços, ao menos se pareciam com braços, já que em cada mão havia três garras afiadas e longas semelhantes a dedos. Seis olhos grandes e escuros ocupavam grande parte da sua feição.

— Houve alguns imprevistos! Por isso me ocorreu este importuno atraso.

Sua voz era terrível de se ouvir! Cada palavra gerava a sensação de que dezenas de insetos moviam-se dentro dos meus ouvidos. Não pude deixar de notar que um vapor denso saía da sua boca enquanto falava.

— Que tipo de imprevisto poderia ser mais importante que uma ordem direta do seu Senhor, Hofir? — perguntou a mulher parada no topo da escadaria. A beleza dela era tão… divina e a sua voz, aveludada e suave.

— Não se preocupe — o homem no trono respondeu. A sua voz ecoava como uma trombeta diante do silêncio que se fez ao dizer uma única palavra. Ela fazia crescer em mim, um sentimento de nostalgia… Eu já a ouvi antes? — Tenho certeza de que Hofir jamais atrasaria, se não fosse nada realmente importante. Afinal, ele não mentiria para mim, não é?

O clima mudou de repente. Uma tensão tão grande e densa, quase palpável, tomou o ambiente. Mesmo que não fosse nítida qualquer expressão na face daquele ser chamado Hofir, estava mais do que claro o seu nervosismo.

— Está correto como sempre, meu Senhor.

A mulher ao lado do trono não parecia satisfeita com a resposta. Contudo, pareceu não querer insistir no assunto.

— Você tem alguma informação que nos seja útil, Cherry? — ela perguntou.

— As duas crianças embarcaram para WallBright hoje mesmo — a moça com vestido de debutante respondeu, pondo-se de pé, quase cantarolando. A sua voz era estridente e aguda. — O trem já passou pelo lapso temporal, então devem chegar pela manhã.

— Perdoe-me pela ousadia, meu Senhor e Grande Feiticeira Fox — o velho de terno marrom interrompeu. A mulher no topo da escadaria era a Fox?! A mesma que amaldiçoou a Elizabeth?! — Mas por que tamanha curiosidade com aqueles dois? Ambos são apenas adolescentes. Não representam perigo algum para nós.

— A garota é um Snow perfeito, Rumpel. E o rapaz, um Hofirman. Não está claro o motivo do interesse neles? — o homem de terno cinza respondeu.

— Um Hofirman sem poderes — Rumpel retrucou.

— Já existe um Hofirman sem poderes, e você sabe que ele é um problema, velho. Até você teria problemas ao enfrentá-lo.

— E você não, Eduard?

Uma fumaça negra saiu das narinas daquele que provavelmente se chamava Edward, o mesmo homem que causou aquela cicatriz horrenda na barriga do Sr. Snow! Ele não parecia contente com a resposta do velho esguio.

— A questão é justamente essa, Rumpel — Fox interrompeu. — Um Hofirman ainda é um Hofirman; com poderes ou não. E um Snow perfeito é um problema, mesmo que seja uma mera adolescente.

— Mas se eles podem se tornar um provável problema no futuro, não é só ir lá e matá-los? — o rapaz elfo questionou.

— E termos diversos Hofirman’s se levantando contra nós? Te falta sabedoria, criança! — Cherry afirmou.

— Pelo menos eu não sou uma velhaca que precisa sugar a vida dos outros para se manter jovem! — ele zombou.

— Ora, seu… — Cherry avançou contra o garoto, mas foi barrada por Edward; que a segurou com uma única mão. — Vem aqui que vou te mostrar a diferença entre nós, seu merdinha!

O rapaz e a garota gargalhavam enquanto Cherry se debatia ao tentar escapar das mãos do gigante.

O besouro demoníaco apareceu repentinamente ao lado dos dois elfos, acertando-os brutalmente com a sua lança. Ambos voaram numa velocidade surpreendente contra as portas de madeira ao final do corredor, abrindo um buraco no meio delas com a força do impacto e atravessando-as.

— Obrigado, Hofir. — O homem sobre o trono se levantou e começou a descer degrau por degrau, acompanhado pela Fox.

Um silêncio se fez. Cada ser naquele salão se prostrou instantaneamente, com os rostos tocando o solo. O som dos passos daquele homem ecoava de maneira ensurdecedora pelo local.

— Um Hofirman sem poderes ou um Snow perfeito… Que diferença faz? Vocês continuarão sendo aqueles que não conseguiram me trazer um único portador do espaço! — Ele deu um pulo no meio da escadaria e pousou em frente aos seus subordinados; o chão tremeu com o impacto de sua força. Ele agarrou o Edward pelos cabelos e olhou em seus olhos. — Já faz mais de duzentos e cinquenta anos que o Howard nos deixou, e nenhum de vocês conseguiu sequer chegar aos pés dele…

— Meu Senhor, nós…

Seja lá o que Cherry quisesse dizer, ela foi interrompida pelo chute que levou daquele homem, fazendo-a voar contra a legião de soldados, derrubando-os no processo. Nenhum deles ousou se mexer após isso.

— Apenas falem quando eu disser que podem falar!

Ele pôs a mão sobre o rosto e suspirou.

— Eu não ligo para essa guerra idiota que acontece lá fora… Apenas preciso de um único portador do espaço vivo! Será que nem isso vocês conseguem fazer?!

Fox, que apenas observava a situação, levantou a mão com sutileza. O homem expirou.

— Diga, Fox.

— Desde que Jefrey Caos desapareceu, há cinquenta anos, não tivemos notícias de um novo portador do Espaço; isso nos mostra três possíveis possibilidades. — Ela sinalizava os números com a mão. — Jefrey Caos está vivo. Não existem mais portadores do espaço. Ou o poder simplesmente não despertou ainda.

Desta vez, foi o Rumpel quem levantou a mão. Após uma sinalização daquele a quem chamam de Senhor, ele falou o que pensava.

— Mesmo que o Jefrey estivesse vivo, não passaria de um idoso, o que o tornaria menos perigoso do que um dia foi para nós.

O homem gargalhou.

— Agradeça por eu jamais o ter permitido enfrentar aquele cara! Caso contrário, você não estaria aqui para dizer tal baboseira!

Ele começou a subir as escadas, em direção ao trono novamente.

— Jefrey Caos era uma anomalia, alguém que não deveria existir… e; ainda assim, existiu. Dentre essas possibilidades, Fox, a provável é a de que o poder não despertou. Hofir? — O grande inseto ajoelhou-se instantaneamente ao ouvir o seu Senhor chamá-lo. — Permaneça de olho nos infiltrados que temos nas Grandes Escolas. Já conseguiu alguém para ocupar o lugar daquele que saiu de WallBright ano passado?

— Sim, meu Senhor! O nosso espião será um aluno do primeiro ano. Desta vez, optei por alguém mais novo; assim, não perdemos o nosso informante pelo pouco tempo que ficaria lá.

— Certo, certo. — Sentou-se sobre o trono novamente. — Agora… — Ele estendeu uma das mãos em minha direção; de repente, me vi voando em sua direção. Ele me pegou pelo pescoço, eu não conseguia respirar! — Você não acha que já ouviu demais?


Acordei ofegante, suando e tremendo.



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